A Estrela Que Não Desiste de Brilhar

Players Tribune

Tá pra fazer um ano…

Eu não esqueci e acho que nunca vou esquecer da sensação terrível que foi.

Sempre que penso nisso me dói a cabeça, as pernas, me dói a alma, sabe?

Era uma sexta-feira, fevereiro do ano passado. A atmosfera no clube pesava de tensão e desânimo. A gente vinha daquele balde de água fria monumental no Brasileiro de 2023 — deixar o título escapar daquele jeito, como pode?! —, não tinha engrenado no Carioca e, dois dias antes, na quarta, empatamos na Bolívia pela Pré-Libertadores.

Meu Deus do céu, pra onde estamos indo?

Aí de manhã as notícias começaram a chegar: 

“Torcedores picham Engenhão e pedem saída de jogadores”

“Protesto nos muros do Nilton Santos” 

“Torcida irritada com o Botafogo”

Pim, pim, pim, pim, meu celular parecia uma metralhadora de notificações.

Texto, áudio, vídeo, chamada não atendida de tudo quanto é lado. E o pior: fotos das pichações. Eu fui passando uma por uma.

“Time sem sangue” 

“Covardes”

“Pipoqueiros”

“Saiam do Botafogo” 

Só tinha sentimento ruim escorrendo junto com aquela tinta spray no muro do nosso estádio. Raiva, decepção, revolta, desilusão. Eu olhava as fotos na tela do meu celular e não acreditava ao ver meu nome ali:

MARLON FREITAS RALA FDP. 

Mano, eu fiquei sem reação. Das profundezas, olhava pra cima em busca de socorro. Olhava à procura do meu pai, o cara que sempre me socorreu em horas de aflição como aquela.

Marlon Freitas Players Tribune
André Mourão/The Players' Tribune

Seu Itamar de Freitas tinha 54 anos quando partiu, vítima de câncer, em 2017. Eu era jogador do Fluminense, estava voltando de um empréstimo ao Samorín, da Eslováquia, sem lugar garantido no time, ainda começando como profissional, cheio de dúvidas sobre o futuro. Fui vê-lo no hospital e mal consegui ficar no quarto. Meu pai, que era um cara forte, pau pra toda obra, sempre bem disposto, agora ali magro, debilitado, na cadeira de rodas. 

Eu saía pra chorar no corredor e voltava.

— Pai, domingo tem jogo contra a Chapecoense na casa deles. Mas vou pedir ao pessoal do clube pra não viajar. Quero ficar com você.

— Nada disso. Vai sim. Vai jogar, pô! É o nosso sonho, não é?

— Mas, pai…

— É o nosso sonho ou não é, Marlon?

Era. Desde sempre. Na minha lembrança mais antiga eu estou na carcunda do meu pai indo para um jogo dele na várzea em Magé, onde eu nasci. Dali de cima eu via o mundo todinho: o campo de terra, os amigos dele sorrindo, a galera chegando com as sacolas, o isopor, aparelho de som, uma animação que dava gosto. Aí ele me punha no chão, eu entregava as chuteiras ressecadas dele, ia pro meu lugar de gandula atrás do gol e felicidade maior não existia nessa galáxia. Nem em qualquer outra. 

Bom, fui pra Chapecó. Treinei bem pra caramba e o Abel Braga, então o técnico do Fluminense, deu o time pro jogo: eu de titular. À noite, no hotel, desci pra fazer um lanche e quando voltei pro quarto o Scarpa e o Luquinhas, meus amigos mais chegados, estavam lá. Eu entendi na hora.

Caraca, mano, meu pai!

Tentei ver quem estava me ligando no celular e não consegui, porque as lágrimas embaçavam tudo. Passei a madrugada em claro esperando o voo de volta pro Rio que o pessoal do Fluminense conseguiu pra mim.

Cheguei de manhã no aeroporto, baita chuva, neblina, tudo fechado pra pousos e decolagens. Arrumaram outro voo pro meio da tarde, cancelado também. Fui sentar num canto da sala de embarque, sozinho e perdido, sem saber pra onde ir.

Quer saber? Ainda dá tempo, eu vou pro jogo. Meu pai queria que eu jogasse. É por isso que não tem voo! Então eu vou jogar.

Quando voltei, o Abel conversava com as lideranças do time.

— Professor, o senhor tinha me relacionado de titular. Quero jogar.

— Não precisa, garoto. 

— Pô, professor, me deixa jogar. 

— Tem certeza? Você está bem?

— Não sei. Mas é isso que eu tenho que fazer.

O Scarpa chega junto na resenha e reforça: “Deixa ele jogar, professor”. A palavra dele tinha peso no grupo e eu fui pro jogo. Quando subi pro campo, fizeram um minuto de silêncio pelo meu pai e, por mais que eu quisesse abafar, no último degrau da arquibancada dava pra ouvir o meu choro.

Então eu olho pra cima pra dar uma respirada e, numa nuvem volumosa e brilhante, vejo o rosto do meu pai sorrindo. Gargalhando. A minha referência na vida, meu conselheiro, meu confidente, meu melhor amigo, o cara com que eu dividia todas as minhas alegrias e tristezas.

Seu Itamar sempre esteve por perto, nunca faltou. Lembrei que anos antes era ele comigo em Xerém no dia de uma dessas tristezas, que foi quando me mandaram embora do próprio Fluminense depois de uma semana de testes. Pra mim, ainda um garotinho, era o fim da vida. Pra ele, o começo:

— Filho, eu sei que essa é uma hora dura. Mas escuta bem o que eu tenho pra te falar. O nosso sonho vai se realizar aqui, justamente aqui onde ele está sendo interrompido hoje. Faz tempo que essa convicção bate no meu peito: você vai ser jogador profissional e vai ser dos grandes. Eu ainda vou te ver jogando no Maracanã. Mas pra isso você tem esmagar todos desafios que vão aparecer pelo caminho. Todos! O de hoje é só o primeiro.

Guardei as palavras do meu pai no lugar mais protegido do meu coração e desde então recorro a elas pra me conectar com ele e comigo mesmo, nos bons e nos maus momentos. Sinto uma saudade imensa dele, que teve tempo sim de me assistir no Maracanã.

Quando cheguei aqui, minhas metas se encaixavam bem nas do clube àquela altura. Desejo de ganhar títulos, ser protagonista no futebol nacional, disputar Libertadores… Enfim, devolver o Botafogo à grandeza histórica dele.

Marlon Freitas

Naquela tarde em Chapecó em que eu comecei jogando de titular, o rosto sorridente dele na nuvem me pareceu uma mensagem que só eu podia decifrar: “Tá vendo, moleque! Eu não falei? Você está no lugar onde sempre quis estar e é por isso que eu estou feliz. Agora vai jogar! Eu vou estar do teu lado”.

Era como se dali em diante a minha vida tivesse decidido andar só pra frente, nunca mais pra trás, e de todas as experiências, incluindo as que me jogassem no fundo do poço, eu tiraria o gás pra continuar caminhando. Os desafios me moveriam. E quando não houvesse desafio, eu inventaria um.

No ano seguinte, 2018, pintou outro. O Abel me chamou e disse que talvez fosse melhor eu ir pra outro clube. Porque eu era um jogador que precisava jogar pra me aprimorar e ele achava difícil encontrar espaço pra mim no Fluminense naquela temporada. Fui emprestado pro Criciúma, que tinha caído pra Série B do Brasileiro. Não fiquei chateado. A sinceridade do Abel de certo modo me tranquilizou. 

Beleza, vou encarar.

Fiquei seis meses no Criciúma e depois me transferi pro Botafogo de Ribeirão Preto. Disputei o Paulistão, o que me deu mais visibilidade, e aí veio o Brasileiro de novo. Das 38 rodadas, só fiquei uma fora. O Abel tinha razão. Evoluí muito tática e tecnicamente podendo ter uma sequência grande de partidas. Mas lembro que antes de começar o campeonato falei pra minha esposa: “Esta é a última vez que eu disputo a Série B. Tá na hora de voltar pra primeira divisão e continuar o sonho de menino que aos domingos eu sonhava na carcunda do meu pai, lá em Magé”.

Quando aceitei a proposta do Atlético Goianiense, no início de 2020, eu tinha duas melhores, financeiramente falando, de outros times da Série B. Mas o Atlético era a minha porta pra Série A e o meu coração, onde estavam guardadas as palavras do meu pai, me dizia que essa era a estrada.

Vivi três temporadas maravilhosas no Atlético Goianiense. Acho que foi o clube onde eu mais treinei na vida. É insano como se treina lá, faz parte da filosofia do clube, que é bem simples e realista: “Aqui a gente precisa pelo menos correr mais do que os caras dos times grandes, porque tecnicamente eles são melhores. Essa é a nossa única chance”. Isso cria um ambiente bem desafiador: todo jogador chega ali querendo a mesma coisa, que é jogar bem, aparecer e ir para um time maior. E pra isso tem que correr por ele e pelos companheiros.

Então, o dia a dia no clube tem esse ingrediente ao mesmo tempo solidário e competitivo. Para um cara como eu, que se move à base de desafios, era um prato cheio. 

No Atlético eu evoluí mais, agora na capacidade de ler o jogo, estudar os lances, os adversários, de respeitar o clube que te dá boas condições de trabalho e de me comunicar com a equipe e o treinador, já que me tornei capitão. Por isso chorei pra caraca quando fui embora. Chorei abraçado às tias da cozinha, aos roupeiros, ao pessoal da limpeza, aos amigos. Eu sabia que na base dos dois títulos goianos que eu conquistei no Atlético estava essa identificação com o clube, com os funcionários e a torcida. Foi um aprendizado e tanto, eu estava feliz, mas precisava de um salto maior. Um salto para um lugar onde eu pudesse rechear ainda mais a minha bagagem.

Um salto para estrela mais linda que existe.

Torcida Botafogo final Libertadores Buenos Aires
Yuri Laurindo/The Players' Tribune

Cheguei no Botafogo já me desafiando. Quando vesti a camisa do Fogão pela primeira vez, no dia da apresentação, eu estabeleci a minha primeira meta: provar que jogadores da Série B têm condições de jogar na A, eles valem sim o investimento.

Jogar todo mundo sabe, o que acaba determinando o sucesso ou o fracasso é o ambiente, o sistema de jogo, as lesões, as condições de trabalho, como cada um lida com o carinho ou a pressão da torcida, a relação com o treinador, o profissionalismo, todas essas coisas… 

E a minha meta se encaixava bem nas do Botafogo àquela altura. Na verdade, as metas do clube eram bem maiores. Investidor estrangeiro, novo modelo de administração, desejo de ganhar títulos, ser protagonista no futebol nacional, disputar Libertadores… Enfim, devolver o Botafogo à grandeza histórica dele.

Como eu estava nesse espírito também, perfeito. Pra completar, a diretoria deixou claro que estava escolhendo a dedo os jogadores pra nova fase do clube.

“Se te escolheram é porque tem coisa reservada pra você”, era como se eu ouvisse a voz do meu pai.

E, por fim, eu estava voltando pra casa, pro Rio de Janeiro. Ia contar com a família por perto, com os velhos ombros conhecidos onde eu poderia me apoiar quando as horas mais sombrias viessem. Porque elas viriam, sempre vêm. Eu só não achava que eu mesmo, num erro besta, me empurraria para o fundo do poço.

Tô falando da maldita piscadinha na partida contra o Palmeiras, vocês lembram. O jogo em que abrimos 3 a 0, tomamos uma virada inacreditável e perdemos o título do Brasileiro de 2023. Eu não gosto de falar a respeito, mas vou contar pra ver se exorcizo isso da minha vida. Não quero carregar mais.

Hoje em dia, agora que fomos campeões, tem torcedor do Botafogo e de outros times que chega pra tirar foto comigo dando uma piscadinha. Isso me chateia bastante. Porque a impressão que ficou, e muita gente disse assim, foi que eu desrespeitei o meu clube, o adversário, o futebol. E eu nunca fui esse cara. Eu não quero ser esse cara. Pelo contrário. Isso aqui é o meu sonho de menino. O sonho do meu pai. O futebol é sagrado pra mim. Então vamos combinar uma coisa: se quiser foto comigo dando piscadinha, nem cola porque não vai rolar. A lembrança desse episódio me dói demais, porque eu sei que errei. Não por maldade, mas errei, e agora que aprendi na dor eu gostaria de enterrar esse erro pra sempre.

Botafogo Marlon Freitas capitao
Yuri Laurindo/The Players' Tribune

Bom, foi assim. Eu sofri uma falta no meio de campo quando o jogo estava 3 a 3. O nosso time estava chateado, mas o resultado ainda nos mantinha na disputa do título. Aí o zagueiro do Palmeiras chegou gritando que não foi nada, que eu tinha cavado e estava fazendo cera. Coisa normal de jogo.

Em vez de retrucar com palavras, bater boca e tal, eu, ainda no chão, dei a piscadinha pra ele. Como se dissesse: “Isso aí, irmão”.

Soou como um deboche e por isso me arrependo tanto. Eu deveria ter dito algo pra ele, o jogo de futebol é muito falado o tempo todo, mas por impulso fiz o gesto. A coisa tomou a proporção que tomou e eu fiquei marcado individualmente por isso, se já não bastasse ter ficado marcado no plano coletivo pela perda do título e aquele fim de ano melancólico pra todos os botafoguenses.  

Eu sentia tanta vergonha que nas férias comprei passagem pro lugar mais distante que encontrei: Tailândia. Mas quase não aproveitei. Passava os dias pensando que tinha dado razão para aqueles dirigentes que duvidam que jogador de Série B consegue aguentar a bronca na Série A. Não chegava a ser um passo atrás, mas se eu quisesse continuar andando pra frente eu precisaria recomeçar do zero.

Decidi que se tivesse a chance de continuar no Botafogo em 2024, e como eu queria continuar!, eu sorriria pouco, pra não correr o risco de sorrir na hora errada, e festejaria só no final — festejaria os títulos, não jogos.

Por isso vocês me viram ao longo do ano sempre correr sozinho pro vestiário ao término das partidas. Era hora de agradecer, fazer a minha oração, e pensar no adversário seguinte. Seguir trabalhando duro, com muito foco e pouca distração.

Quando voltei pro Rio depois das férias, muitos jogadores tinham saído e outros tinham chegado. O Tiago Nunes, nosso treinador, começou a escolher os capitães e eu era um deles. No meu primeiro jogo como capitão, tirei uma foto da faixa, que estava sobre o uniforme, no meu cantinho no vestiário, e mandei pra minha esposa com uma mensagem: “Vou de capitão do Glorioso hoje. Que Seu Nilton Santos me ilumine”. E acho que em conchavo com meu pai lá no céu, ele me iluminou mesmo, porque eu continuei capitão com a chegada do novo técnico, o Artur Jorge.

Marlon Freitas Artur Jorge
Pedro Vale/The Players' Tribune

Mais do que isso: eu encerraria a temporada como o único remanescente de 2023 no time titular campeão brasileiro e da Libertadores em 2024. Com o Artur Jorge, além de exercer a liderança dele dentro do campo, eu passei a falar ainda mais com os companheiros antes dos jogos. E foi justamente num momento desses em que estamos só nós, jogadores e comissão técnica, prestes a subir pro campo, e o capitão dá a letra, que eu retomei definitivamente a estrada da minha vida.

Palmeiras x Botafogo, Allianz Parque, 36ª rodada do Campeonato Brasileiro.

A gente fecha a roda no vestiário e eu começo a falar. Não lembro de todas as palavras, mas repeti muito coisas como… 

“Tinha que ser aqui!”

“Tinha que ser contra eles!”

“Sempre duvidaram de nós e nós estamos aqui, porque eu acreditei em você, você acreditou nele e a gente cuidou um do outro!”

“Tinha que ser aqui!”

Tudo seguido de um monte de palavrão, né?, que nessa hora é difícil evitar.

Foi naquele jogo do returno contra o Palmeiras que eu realmente senti que tinha dado a volta por cima.

Marlon Freitas

Eu ali, tomado pela adrenalina, ouvi até o Mister dizer baixinho: “Vai ser aqui, c*****!”. O resultado, vocês sabem: 3 a 1 Botafogo, vitória que nos colocou de volta na liderança do campeonato.

Ainda tinha a final da Libertadores pela frente. Expulsão do Gregore aos 30 segundos na final, 30 segundos de jogo!, a nossa capacidade de reorganização rápida pra resistir com um jogador a menos, pra só então gritar “É campeão!” junto com aquela multidão botafoguense impressionante que invadiu a Argentina.

Mas foi naquele jogo do returno contra o Palmeiras que eu realmente senti que tinha dado a volta por cima. Ter vencido daquele jeito, na casa deles, depois de tudo que aconteceu no ano anterior, transformou o meu nome pichado no muro do Engenhão em uma lembrança velha, um dos tantos desafios que meu pai avisou que eu teria de esmagar.

Marlon Freitas campeao Libertadores
André Mourão/The Players' Tribune

Ninguém mais tiraria da gente aquele título brasileiro, que, para mim, era um questão pessoal.

Eu me sentia em dívida comigo mesmo. Por sorte percebi rápido que essa parada de “questão pessoal” é bobagem, uma vaidade. E quem me mostrou isso foi a torcida do Botafogo durante as comemorações dos nossos títulos. Eu olhava aquele mar de gente emocionada nas ruas do Rio, nas arquibancadas, no aeroporto quando voltamos de Buenos Aires, e imaginava quantos ali estavam celebrando também por seus pais, tios e avôs que partiram sem ver o Botafogo campeão de novo. Eu pensava nisso e sabia exatamente o que eles sentiam. Meu pai me assistiu no Maracanã, mas não pôde me ver campeão pelo time do Garrincha, do Didi, do Jairzinho, do Gerson, do Zagallo, do Seu Nilton.

Mas a vida é assim e eu me orgulho de estar no lugar onde sempre quis estar. A vida é o Botafogo: uma estrela que não ilumina o tempo todo, mas jamais desiste de brilhar.

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