Um Tempo Pra Respirar
Por muito tempo eu fui um bicho. Todo atleta de alto rendimento é um bicho — e isso guarda uma imensa contradição. Porque a gente começa no esporte por amor. Um amor puro, genuíno, infantil até. Mas de repente, sem se dar conta, você se torna um competidor. E a partir desse ponto não importa mais se ama ou detesta o que faz.
Não interessa se chegou ali por causa de uma paixão, uma bênção ou uma vocação. Tampouco se aquilo te deixa triste ou feliz. Se quebra ou fortalece o seu corpo, sua mente e a sua alma. Você é um competidor, um atleta de alto rendimento com uma missão, que, no meu caso, é nadar. Nadar da maneira mais explosiva que eu puder e bater na borda da piscina antes dos meus adversários.
Eu não preciso gostar. Preciso ir lá e fazer.
Prazer? Dane-se o prazer.
Bem-estar? Dane-se o bem-estar. É a glória que conta.
E aí, quando o prazer e o bem-estar são trocados pela glória é que tudo começa a ficar perigoso.
Não me entendam mal. O pódio olímpico é um momento sublime de realização e conquista. Até hoje, quando penso na minha medalha de bronze nos 50 metros livres em Tóquio, eu acho que é um filme, que não aconteceu comigo. Fico muito emocionado. Mas também lembro de como foi depois.
Chegar na Vila Olímpica, entrar no meu quarto, estar sozinho, flutuando com aquela bomba de endorfina circulando dentro de mim, olhar no espelho e dizer: “Você conseguiu, cara!”. Aí voltar pra casa e começar a assistir à segunda semana da natação pela TV. Em alguns dias não haverá mais Olimpíada, acabou. A tua euforia também.
No mês seguinte, ninguém mais tocará no assunto. Aquela conquista tão significante, tão cheia de sentido, passará a ser só uma tag no Instagram. Você alcançou o cume do Everest, tirou uma foto, desceu e começou a se perguntar:
Como um fato tão lindo na minha vida se tornou tão “irrelevante”?
Como o planeta ousa girar do mesmo jeito que girava antes?
Eu não estava preparado pra uma queda tão brusca. As pessoas vão dizer: “Ora, ora, você precisa ser resiliente”. E aí está o porquê de eu ter desistido de tentar o índice para Paris 2024.
Resiliência.
Acho que todos faríamos bem de desconfiar dessa palavra em vez de repeti-la como um mantra. Resiliência é uma característica das molas, que, sob força, carga e pressão descomunais se deformam, mas sempre voltam ao ponto de partida. Voltam a ser o que eram, incólumes, impassíveis e indiferentes ao que sofreram.
Deus me livre de ser uma mola. As experiências da vida me marcam, me entortam, me fortalecem e por vezes me estraçalham. Como eu posso querer emergir desse redemoinho do mesmo jeito que entrei, como um super-herói imune às forças descomunais? Por isso vamos devagar com esse papo de resiliência.
Prefiro ser forte. E ser forte, às vezes, significa dar um tempo, abrir mão, reconhecer o momento e ser coerente com você mesmo.
Estou com 35 anos agora. Sou um competidor da natação desde os 11. E vivo dentro de uma piscina desde os dois, quando caí dentro de uma no dia do casamento dos meus pais e quase estraguei a festa.
Foi meu pai que pulou na água pra me puxar lá do fundo. Aí fui fazer aulas de natação pra não correr mais o risco de morrer afogado e a coisa não só virou uma paixão e uma bênção como se revelou uma vocação.
São coisas que deixam marcas também. Se eu fosse resumir, diria que abri mão dos Jogos Olímpicos porque estava exausto de sentir dor há tanto tempo. Eu nem lembrava mais de como é passar dias, semanas ou um mês inteiro sem dor. Mas eu tinha uma missão, não é? Precisava ser resiliente. Isso estava fazendo com que eu me machucasse mais e sentisse mais dores. Físicas e emocionais.
Eu já passei por seis cirurgias. Três só no ombro direito. A mais recente, em fevereiro deste ano, no joelho. O meu desejo era competir em Paris, claro. Não teria sido difícil atingir o índice na seletiva do Rio, em maio. Estava treinando nos Estados Unidos pra isso.
Mas qual era o objetivo real?
Poder dizer que disputei mais uma Olimpíada?
Mesmo sem condições físicas de brigar pela medalha de ouro?
Pra não decepcionar o público, as pessoas que contam comigo?
Não perder patrocínios?
No início, acreditando que eu não tinha esse direito sobre a minha própria vida, eu tentei seguir em frente. Mas me fazia mal. O sofrimento físico — e o emocional decorrente da obrigação de ser resiliente — ficou insuportável. Fiquei chocado ao me dar conta de que a natação, que eu tanto amo, estava me arrastando rapidamente pro fundo. Que a minha briga era mais com ela do que com o meu corpo, ou contra o cronômetro. Depois de tantos anos juntos, a gente precisava se distanciar, tomar um fôlego. Deixar a piscina se tornou uma questão de sobrevivência pra mim.
Foram dias difíceis os que precederam a minha decisão. Eu já tinha passado por episódios graves de depressão e não queria cair dentro daquela sombra de novo. Na depressão, a gente acha que está no controle e que logo vai vencê-la. Mas eu conhecia bem o veneno dela, em particular no esporte, pra saber que a realidade é diferente.
Muitos atletas não se dão conta a tempo, demoram ou não conseguem pedir ajuda, e se aposentam com o cérebro frito e o espírito despedaçado. Passam o resto da vida derrubados, com dificuldade de aceitar que o esporte acaba. E, antes que desse ruim pra mim, eu decidi sair da água pra pôr tudo em perspectiva, tentar enxergar com mais nitidez e planejar os passos seguintes. Era isso, ser racional no instante decisivo da minha vida, ou ficar à deriva na minha eterna tendência de querer resolver as coisas pelo lado emocional.
Quando isso se tornou claro pra mim, eu fiquei em paz. Ao não querer bancar o Super-Homem-Mola-Resiliente-Da-Porra-Toda, eu estava sendo honesto e coerente comigo mesmo, com a minha história.
E, pra mim, coerência é tudo nessa vida. Talvez por ter passado a infância me mudando de casa, de cidade, de estado e até de país, ser coerente com certos princípios da minha família é até hoje o meu porto mais seguro. Coisas como ser solidário, leal, brigar pelo que é certo, falar do que está errado, ser responsável por minhas escolhas, respeitar e ajudar quem pode menos e não temer quem pode mais. A receita família + esporte me ajudou a viver dentro desses valores desde criança.
Meu pai trabalha na indústria do petróleo. Por causa disso nós sempre moramos em locais de pólos petrolíferos. Nasci em Macaé, mas vivi em Salvador, Natal, Rio, Aracaju, Mossoró e até na Itália. A cada dois ou três anos era uma readaptação. Bairro novo, escola nova, amigos novos, vizinhos, professores, sotaques, comidas, hábitos, caminhos…
De certa forma, o esporte também me servia de lastro, porque pro meu pai é questão não só de saúde, mas também de caráter, de formação do indivíduo, de cidadania, convivência. Então, com o incentivo dele, eu estava sempre praticando futsal, vôlei, basquete e natação, que me encantava mais porque durava mais. Nos esportes com bola, eu jogava uma partida, perdia e acabava. Ia embora triste pra casa. Na natação dava pra disputar seis, oito, dez provas num dia. Entre uma e outra, passava bons momentos com os amigos em volta da piscina, tomava lanche, brincava. Eram muito mais chances de ganhar uma medalha e bem mais divertido.
Começou a ficar sério na adolescência. Eu já vinha competindo desde os 11 anos, com meus pais sempre procurando clubes pra eu treinar nos lugares novos em que a gente ia morar. Eles foram realmente maravilhosos. Nunca disseram: “Bruno, agora não dá mais”. Pelo contrário. Fizeram de tudo, tudo mesmo para que continuasse nadando e sonhando em disputar uma Olimpíada.
Se eu fosse resumir, diria que abri mão dos Jogos Olímpicos porque estava exausto de sentir dor há tanto tempo.
- Bruno Fratus
Eu só falava disso desde que vi os caras do atletismo ganharem a medalha de prata pro Brasil no revezamento 4 x 100 nos Jogos de Sidney 2000. Aos 16, comecei a treinar em Salvador com um técnico de renome nacional, o Rogério Arapiraca, e foi com ele que eu senti o barato do esporte de alto rendimento: conquistei a minha primeira medalha num campeonato brasileiro.
Ao mesmo tempo, era também aquela idade em que a gente quer sair, se divertir, namorar, enfiar o pé na jaca. Meu pai sempre falava:
— Ok, você pode ir. Eu não vou te proibir. Mas vou te fazer uma pergunta.… Até que ponto isso é compatível com a realização que você deseja alcançar? Só você pode responder, Bruno. São decisões que você tem que tomar e mais ninguém.
Aprender a ser responsável pelas minhas escolhas foi de extrema importância no meu desenvolvimento como esportista.
Pouco tempo depois, em 2006, eu estava no terceiro ano do ensino médio e todos meus amigos faziam cursinho pro vestibular. “E você, Bruno, vai fazer o que depois do colégio?”, eles me perguntavam. Eu respondia com muita segurança: “Vou continuar treinando, porque quero competir numa Olimpíada”.
No ano seguinte, eu saí de casa e fui morar com meus tios em São Paulo. Me lembro como se fosse hoje. Meu pai me levou numa agência de viagens e me comprou uma passagem só de ida, pra ser simbólico, um rito de passagem. O meu destino era o Esporte Clube Pinheiros, onde eu enfim me tornaria um atleta profissional. Só que um atleta profissional no Brasil. Isso significa que, apesar da boa estrutura de treinamentos, a gente não tem vínculo empregatício com o clube. Ou seja: não é um funcionário com direitos trabalhistas assegurados. Você trabalha, cumpre regras e horários, está submetido a uma hierarquia de comando, mas não tem férias remuneradas, não tem décimo-terceiro, fundo de garantia, horas-extras, nada. No contrato, o seu salário é classificado como ajuda de custo. Isso não está certo e nos faz mais mal do que parece. É a vida pós-carreira dos atletas que está em jogo.
Ao contrário dos Estados Unidos, do Canadá e alguns países europeus, o esporte de alto rendimento no Brasil não está inserido no sistema universitário. Eu mesmo sou exemplo de um cara que tentou fazer faculdade enquanto treinava para ser esportista olímpico.
Só que eu não conseguia nem estudar nem treinar direito, estava sendo medíocre nas duas coisas. Então decidi me dedicar ao esporte primeiro e estudar depois. Mas não é uma escolha tranquila de se fazer. A gente passa a viver ansioso, se perguntando se fez a coisa certa e em dúvida sobre o futuro — principalmente se os resultados esportivos não vêm. É bem intranquilo, eu diria até desesperador, ficar se perguntando: “O que vai ser de mim quando eu tiver 60, 70 anos? Dediquei grande parte da minha vida ao esporte brasileiro e, quando tudo isso acabar, quando eu for só um verbete na Wikipedia, eu não vou ter sequer os direitos básicos que a Constituição garante a todo trabalhador?”.
Esse é um debate urgente que a gente precisa fazer. E eu quero ter impacto nele. O esporte brasileiro precisa de menos politicagem e mais civilidade. Mais profissionalismo de verdade.
Sei que algumas pessoas não gostam de mim por causa das minhas causas e do jeito veemente que eu as defendo. Paciência.
- Bruno Fratus
A Olimpíada do Rio, por exemplo. Aquilo estava mais pra carnaval do que pra Jogos Olímpicos. Na natação, as lideranças da confederação e da comissão técnica meteram os pés pelas mãos de uma forma estarrecedora.
Pra mim, já seria uma competição complicada por causa das minhas lesões. Mas aconteceram umas coisas inimagináveis que pioraram tudo. A nossa aclimatação, por exemplo, foi em São Paulo. Um período de duas ou três semanas que a equipe ficaria junta treinando, se entrosando, antes de ir pra Vila Olímpica. Ótimo!
Lembro que a gente chegou no hotel em São Paulo, olhou pros lados e todos os atletas fizeram aquela cara de… “Mas cadê a piscina pra gente treinar?”.
Não tinha.
Ela ficava em outra parte da cidade, a duas horas de distância. Uma situação surreal. Ninguém tinha ligado pro Pinheiros, pra Hebraica, pro Paulistano, pra ver se gente poderia ficar ali? Era uma Olimpíada, pô! A primeira realizada no Brasil. E os caras botaram a equipe de natação num hotel sem piscina perto pra treinar.
A ignorância, às vezes, é uma bênção. Seria menos doloroso não saber dessas coisas, ou não ser capaz de ter senso crítico. Mas, infelizmente pra minha saúde mental, eu não sou assim. As artimanhas políticas e mercadológicas no esporte martelam a minha sanidade, minam a minha resistência e me trazem dores tão fortes quanto às que sinto no joelho e no ombro. E o falso discurso patriótico que sempre vem junto das presepadas só piora as coisas.
Dizem que a gente precisa “superar os obstáculos”, porque “o brasileiro não desiste nunca”, e mostrar amor pelo país. Eu sinto um tremendo amor pelo Brasil. Tenho um puta orgulho de vestir o agasalho do Time Brasil, ver a nossa bandeira subindo enquanto estou no pódio. Patriotismo, pra mim, não tem nada a ver com essa conotação deturpada dos últimos anos, essa pregação da violência, da destruição, da defesa dos interesses de uma minoria privilegiada que há séculos arromba o país.
Patriotismo é o contrário. É, inclusive, denunciar essas aberrações.
Se eu tenho uma vida mergulhada nisso e estou numa posição de falar e ser ouvido, mas escolho me calar porque não quero perder a boquinha, porque tenho medo de retaliação, bom, se eu escolho me calar diante do que está terrivelmente errado é porque eu sou parte do problema.
Meu pai não me puxou do fundo da piscina pra que eu me tornasse um medalhista olímpico pra isso.
Sei que algumas pessoas não gostam de mim por causa das minhas causas e do jeito veemente que eu as defendo. Paciência. Sinto em informar que a minha saída da piscina é temporária. É um fôlego que eu decidi tomar pra cuidar do meu corpo e da minha cabeça.
Respirar está me fazendo muito bem. Em breve eu devo começar a me preparar para a Olimpíada de Los Angeles 2028. Vou estar com 39 anos e espero que mais consciente, mais coerente, mais humano e menos bicho, menos dolorido e menos resiliente aos absurdos do mundo. Mas vou indo devagar.
Tem muito chão, ou água, pela frente.
A única certeza que eu tenho neste momento é que, até lá, de tédio eu não morro. Tenho muito o que pensar, dizer e fazer em prol do esporte brasileiro.