Guardei Isso Pra Você

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Magrão, 

Uma das coisas que ouvi logo que comecei a fazer terapia é que a gente deve colocar toda a emoção pra fora. Não pode guardar. A minha psicóloga sempre me disse isso.

Às vezes, eu fico pensando o quanto tudo teria sido diferente se eu já tivesse essa informação lá naquele encontro do Lellis. Você estava com os nossos amigos, o Juca e o Trajano. Eu parei para cumprimentar vocês, quando, do nada, veio a bomba!

— Taí o cara que traiu o sistema.

Porra, Magrão, que f#d@! 

Você conhecia a minha essência, o meu caráter. Precisava ter falado desse jeito comigo? 

Sim, hoje eu já consegui processar tudo o que aconteceu naquele dia, mas durante muito tempo eu guardei mágoa daquela provocação. Porque mais do que ninguém você sabe que eu nunca traí o sistema. Pelo contrário, eu sempre estive do lado da liberdade e da democracia e repudio quem, ontem e hoje, está do lado do autoritarismo.

Depois daquele dia, muita coisa aconteceu com a gente, Magrão. Vivi outra vida, olhei pro abismo, encarei os demônios, mas consegui me salvar. 

Casagrande Socrates Corinthians democracia
Gazeta Press

Mesmo assim, eu ainda lamento. As coisas poderiam ter sido diferentes.

Depois do que você me falou no restaurante, eu não só me afastei da mesa, mas me afastei de você. E acabaria me afastando de todo mundo, também.

Já faz 10 anos que você partiu, como passa rápido… Muita coisa mudou no Brasil em uma década. Como eu queria que você ainda estivesse aqui para te dizer tudo isso.



Me lembro como se fosse hoje da primeira vez que conversei com você, Magrão. Eu tinha sido emprestado para a Caldense, e a seleção brasileira foi fazer um jogo-treino contra a gente.

Não sei se cheguei a te falar isso, mas eu era seu fã, te acompanhava bastante como torcedor. E era só um garoto no dia em que você perguntou se estava tudo bem comigo lá em Poços de Caldas.

Para mim, foi especial porque você se lembrou de mim, de quando nos encontramos por acaso no vestiário do Corinthians, naquela minha primeira passagem pelo clube.

Sem medo de errar, posso dizer que foi o começo de uma amizade que entraria para a História.

Você tinha 27 anos; eu, 18. Você já era o Sócrates; eu, um garoto tímido. Mesmo assim, você me acolheu como um igual. E já me chamou para sair com a sua turma. Talvez hoje seja difícil para as pessoas aceitarem essa relação de influência mútua. 

Casagrande Socrates selecao brasileira
Gazeta Press

Na realidade, a gente se espelhava, né, Magrão? 

Eu queria ser como você quando crescesse. E você me disse várias vezes que se via em mim aos 18 anos. 

Era uma conexão que não acontecia apenas pelas afinidades boêmias, ou porque nós gostávamos de sair juntos, ou porque eu te admirava e você me protegia.

Tinha algo a mais nessa história.

Ah, Magrão, eu não sou de venerar o passado, você sabe disso. Mas na nossa época era tudo diferente. O salário era menor, assim como não tinha a exposição midiática que os atletas têm hoje. Mesmo as condições do Corinthians e da seleção eram outras, tudo mais difícil, mas... O que nós construímos, o tipo de parceria, dentro e fora de campo, é inigualável.

Acontecia algo mágico naquele Corinthians de 1982-83. A maneira como nós nos impúnhamos em campo… Não tinha pra ninguém. 

Com você do meu lado, a gente seria uma dupla novamente.

Walter Casagrande

Juntos, nós fizemos 49 gols. Você, com a camisa 8, eu, com a 9. Para quem via de fora, aquele time jogava fácil; para os adversários, era um pesadelo; e para mim… Um desafio. 

As pessoas não têm ideia do quão difícil é jogar com um gênio como você. Sim, eu tinha talento para ser atacante, para estar no lugar certo para receber o cruzamento do Zé Maria, para o toque refinado do Zenon, mas tinha de me preparar, me qualificar para os seus passes, para o calcanhar que desmontava as defesas. 

Naquele período, o futebol brasileiro possibilitava ao público ver várias duplas, mas nenhuma como a nossa, sem falsa modéstia.

Falando nisso, se você estivesse aqui comigo, ia gostar de ver como o Bruno Henrique e o Gabriel, pelo Flamengo, dançam em campo. Que dupla! Uma das poucas que restaram…

Mas a nossa sintonia ia além dos gramados, durante as partidas, ou nos barzinhos de rock que eu te levava. Não, a conexão também se dava nos ideais, naquilo que acreditávamos.

Os nossos princípios e valores falavam mais alto.

Socrates Casagrande Copa 1986 seleçao
Gazeta Press

Magrão, é triste, cara, mas eu tenho quase certeza que você iria se decepcionar com o Brasil de agora. Tem muito ódio rolando, um clima estranho, meio amargo. Mas, assim como na época em que me tratou como um filho quando a polícia me parou numa batida, sei que você iria me bancar e me defender.

Eu tenho sofrido tantos ataques, tanta coisa preconceituosa, apanhado tanto sozinho, que às vezes bate um desânimo… Com você do meu lado, a gente seria uma dupla novamente. Uma dupla de revolucionários jogando no contra-ataque. Contra o ódio, a homofobia, o racismo, o desmatamento da Amazônia… A gente ia tomar porrada todo dia, mas, em dupla, um daria forças para o outro, como nos velhos tempos.

Acho que você também se frustraria ao saber que, apesar de termos feito tudo que fizemos, a luta travada em nosso país é praticamente a mesma de 40 anos atrás. Ou quando se lembrasse que nós saíamos em defesa da democracia, estampando o slogan em nossas camisas. Era um lema simples, mas que exigia (e exibia) muita coragem.

Democracia Corinthiana. 

A partir daquele momento em que colocamos aquelas palavras em nossas costas, todos os olhares se voltaram para nós. Não tínhamos sequer o direito de errar, de perder. Quando isso acontecia, a cobrança vinha pesada.

Não somente tínhamos de ganhar, mas de vencer sem deixar dúvidas de nossa qualidade, da nossa excelência em campo. Nós já não éramos mais um time como os outros. 

Democracia Corinthiana Socrates Casagrande
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Era mais do que um jogo de futebol. 

E como acontece até hoje, mesmo aqueles que não apoiaram a Democracia Corinthiana se beneficiavam com base no que nós defendíamos. A nossa luta era sempre em nome da coletividade.

Foi um momento tão marcante da minha vida que até hoje jornalistas do mundo todo vem falar comigo sobre a nossa dupla, acredita? Mesmo tanto tempo depois… 



Nós, jogadores de futebol, vivemos tantas coisas ao mesmo tempo que é difícil lidar com a pressão. Muitas vezes, não sabemos que devemos cuidar uns dos outros, por exemplo.

Levou muito tempo para que eu descobrisse isso, sabe?

Logo depois que parei de jogar, comecei a experimentar outro estilo de vida. No começo, ainda nos encontrávamos, e nossas conversas nos levavam de volta para aqueles momentos incríveis que vivemos; aproveitávamos cada oportunidade para falar sobre todos os assuntos, em lugares inusitados.

Lembro de uma vez, quando fomos parar em Nova York para participar da primeira edição do Brazilian Day. Assim que me convidaram, eu logo pensei em você. Não dava pra curtir aquela viagem sem o meu parceiro, a minha dupla. Poxa, Magrão, a gente devia ter feito outras viagens só nós dois… Porque era muito bom quando estávamos juntos.

Socrates Casagrande Corinthians
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Mas depois do nosso desentendimento no Lellis, nós nos afastamos pra valer. 

Eu sabia o que você estava sentindo. Mas nós nos afastamos porque... fazemos escolhas que nos levam para outros caminhos, queremos ficar apenas com as companhias que têm o mesmo estilo de vida que o nosso. De qualquer forma, eu tenho certeza que você acompanhou meu mergulho de cabeça no mundo das drogas.

Em 2006, eu mal sobrevivi.

Em 2007, tive de nascer de novo por causa do acidente, que foi, para mim, o fundo do poço.

Em 2008, precisei reaprender a conviver com as pessoas — sem apelar para nada, sem precisar de um barato.

Nessa época, Magrão, eu queria muito, mas não podia sair contigo. Quando estava mal, eu não queria que você e as outras pessoas percebessem que eu me encontrava naquela situação. E quando estava me ressocializando, meu esforço maior era me recuperar, para reconquistar a confiança da minha família. Então, eu precisei dedicar toda a minha atenção para isso.

Essa distância me doeu demais na época, mas, às vezes, penso também que acabou sendo algo positivo, sabe? Porque o afastamento nos protegeu. Nossa conexão era forte o bastante, e ninguém conseguiria imaginar o tamanho do estrago que nós poderíamos ter causado um ao outro se estivéssemos juntos no fundo do poço.

Falando a real, Magrão, a nossa dependência — cada um à sua maneira — inviabilizava algo que é fundamental para a manutenção de um relacionamento: a empatia. No auge de nossa crise, fomos incapazes de estender a mão um para o outro. Então, nós afundamos e deixamos que nossa amizade ficasse de lado naqueles anos de distanciamento.

Nos últimos 10 anos, a única coisa que guardei foram estas palavras.

Walter Casagrande

Se você soubesse, Magrão, o quanto eu gostaria de ter ouvido sua voz quando estive na reabilitação… Teria me feito um bem imenso. Porque eu sei que você me protegeria de novo, assim como me abraçou no meu início como profissional. 

Aqueles também eram tempos difíceis. O Brasil estava saindo da ditadura. Você não precisava se importar. Não tinha nada a ver com você. Mas, quando as pessoas quiseram me perseguir porque eu tinha saído da linha, você ficou do meu lado. 

Você sabia quem eu era. Que eu não tinha maldade alguma. Que não era ladrão, não era porra nenhuma. Eu era só um jovem de 18 anos que estava fumando maconha. E aí, depois daquele problema com a polícia, você colou em mim e não desgrudou mais. Me fez sentir que eu tinha a quem recorrer. Você me estendeu a mão na hora mais difícil.

Só os amigos de verdade são capazes de um gesto assim.

E foi por isso, Magrão, por conta dessa amizade incondicional, porque você sempre foi aquele que cuidou de mim, que eu fiquei muito triste quando você foi embora.

Um pouco antes da sua partida, eu estava voltando pra casa quando recebi o telefonema da minha psicóloga.

— Você viu que o Sócrates está internado em estado grave? Com hemorragia?

Não tive dúvida e fiz o que você teria feito por mim: dei a volta na Marginal e fui direto para o hospital. Lá, a Kátia, sua companheira, me contou como você estava e me disse que era melhor voltar no dia seguinte.

E foi nessa conversa, logo pela manhã, que eu fiquei desenganado, Magrão.

— Pô, Big, achei que ia nessa, mas, não. Já estou pronto pra outra...

Foi o você me disse, lembra? Mas não ia ter outra.

E não tinha de ser assim. Essa história poderia ter tido outro desfecho. Você faz muita falta aqui com a gente, Magrão. Para lutar pelo esporte, pela democracia, pela memória da camisa da seleção… Pelo Brasil.

Quando você disse que estava “pronto pra outra”, eu temi pelo pior, mas você só partiria algum tempo depois.

E no dia que você morreu, parecia que eu estava pressentindo. Voltei de um encontro com uns amigos um dia antes. Quis dormir em casa na véspera do jogo decisivo pelo Campeonato Brasileiro, Corinthians x Palmeiras. 

Socrates 10 anos Corinthians Palmeiras
Nelson Almeida/Getty Images

Na manhã de domingo, meu telefone tocou. Era meu filho. Ele pediu que eu ligasse a TV. Eu assisti a tudo sem esboçar qualquer reação.

Mais tarde, no trabalho (fui comentar o jogo porque não fazia sentido ficar sozinho), me veio essa imagem. Eu gostava muito daquele desenho da Hanna-Barbera, “Shazzan”. Quando os dois irmãos uniam os seus anéis, de repente, aparecia o poderoso gênio. Os dois precisavam um do outro para ficarem completos.

Sem você, a mágica não funciona. Precisávamos estar juntos.

No campo.

Fora de campo.

Nos palanques.

Na luta pela democracia.

Em Nova York.

Em São Paulo.

Ou mesmo no Lellis, quando nós nos desentendemos. Naquele dia, eu tinha de ter falado que era uma injustiça você dizer aquelas coisas para mim. Talvez nós quebrássemos o pau, mas logo depois nos entenderíamos. O afastamento não duraria tanto tempo.

Para minha sorte e felicidade, antes de você partir, tive a chance de te dizer o quanto eu te admirava (e ainda admiro). Foi num programa de TV. Depois desse dia, eu finalmente aprendi como é importante colocar pra fora o que a gente está sentindo, não guardar em hipótese alguma.

Casagrande Socrates
Jorge Araujo/Folhapress

A nossa doença pode ter tirado um bom tempo de nossa convivência, mas não foi capaz de destruir o carinho que tínhamos um pelo outro. 

Como eu queria que você ainda estivesse aqui para te dar um abraço… Saiba que, nos últimos 10 anos, a única coisa que guardei foram estas palavras, especialmente para esta ocasião.

Vou levar você comigo pra sempre, Magrão.

Eu te amo.

Big

Autografo Casagrande Globo

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