Cada Vez Mais Alto

Marcelo Maragni/The Players' Tribune
Em parceria com
Netshoes

Para entender o que as Olimpíadas de Pequim em 2008 significaram para mim, primeiro eu preciso explicar algumas coisas. 

Eu preciso dizer que um ciclo olímpico são, pelo menos, quatro anos de treinamento. 

De dedicação. 

De entrega.

E de sonhos. 

Na verdade, eu sonhava em estar nas Olimpíadas desde muito antes. Em 2000, foi a primeira vez que disputaram o salto com vara feminino. Foi a primeira vez que as portas se abriram na minha categoria. 

Mas antes, em 1996, em Atlanta, eu já tinha visto atletas brasileiras de outras categorias ganhando suas medalhas. Eu tinha 15 anos, mas eu já me permitia sonhar lá na frente.

Ou, talvez, justamente porque eu tinha só 15 anos que eu sonhava tanto. Que eu desejava tanto. Que a cabeça ia cada vez mais alto. E tudo bem: em breve o corpo acompanharia. 

Em 2004, Atenas, eu fiquei de fora. Por muito pouco. 

Para se classificarem, os atletas precisavam alcançar um índice determinado pelo Comitê Olímpico Brasileiro, por duas vezes. Eu consegui uma. Foi quase.

Mas aquilo não me parou. 2008 ia chegar, a minha hora ia chegar. 

Chegou. 

Mas para entender o que foi Pequim 2008, eu preciso explicar uma outra coisa. 

O salto com vara é muito sobre o salto. Mas, também, muito sobre a vara. 

Cada atleta tem as suas varas. Cada vara tem uma flexibilidade e outras características muito específicas. 

A vara certa para o salto depende de muita coisa: da velocidade do atleta, do seu peso, da altura do salto que ele vai fazer. A questão é: sempre tem uma vara certa. Nunca é qualquer uma. Nunca é aleatório. 

Dito isso, vamos para Pequim? Vamos. 

Nossa, eu me lembro da sensação única que é estar em uma Vila Olímpica. E a vila de Pequim era maravilhosa. Saber que você chegou aonde sempre quis estar. Olhar para o lado e ver o seu ídolo, olhar para o outro e ver a comitiva brasileira inteira. E se lembrar que você é parte daquilo. 

Sentir aquela atmosfera de festa, aquela energia vibrante. Respirar o esporte que te moveu a vida inteira. Que te levou até ali. É uma coisa muito única. É intenso, imenso. 

Fabiana Murer
Marcelo Maragni/The Players' Tribune

Eu cheguei lá com a terceira maior marca do mundo. Eu era um nome forte. Uma aposta. O Brasil inteiro com os olhos em mim. A expectativa de medalha. Eu passei tranquila pela classificação, estava me sentindo bem, estava segura. Realizando um sonho. 

O sonho. 

Depois da classificação, eles recolheram as varas das atletas que iam para a final, dois dias depois.  E explicaram que cada uma encontraria as suas varas organizadas no estádio, no momento da final. 

Eu estava feliz. Confiante. Eu estava nos meus primeiros Jogos Olímpicos. Isso é muita coisa. 

E começou. Eu cheguei no estádio e tinha um carrinho, com vários casulos, cada atleta com as suas varas em um tubo. Uma pessoa à frente daquilo, organizando, orientando.

“Você é a Fabiana? Suas varas estão ali.” 

Eu fiz o primeiro salto, tranquila, muito focada. Era o primeiro, um salto de segurança, para me ambientar, entrar na competição. Entender o meu corpo naquele dia. E o meu corpo estava bem. Minha cabeça também. Estava dando tudo certo. 

E aí o mundo acabou… 

Eu fui pegar a minha vara para o segundo salto. Eu precisava de uma opção menos flexível, que me empurraria mais alto. Eu sabia exatamente qual vara usar. 

E eu simplesmente não encontrei.

A minha vara não estava lá. 

Ela não estava no casulo com as minhas outras varas. 

Imagina isso: sua vida inteira por esse momento. E alguém perde a sua vara. 

Se me contassem essa história, eu diria “claro que não, isso é impossível. São os Jogos Olímpicos”. 

Mas não era impossível. 

Eu me lembro de andar de um lado para o outro, procurando desesperadamente a minha vara. O pessoal da organização me dizia: “Está aqui, tem que estar aqui. Porque está escrito que você tem nove varas”. 

Eu voltei para o Brasil morrendo de medo. Eu pensava que as pessoas podiam me julgar, me acusar. Eu achei que ninguém nunca entenderia o que eu tinha sentido ali, naquele estádio. Mas o meu país me abraçou.

Fabiana Murer

Como se eu não soubesse. Como se eu não conhecesse aquelas varas como a palma da minha mão. Com a palma da minha mão. 

E com meu corpo inteiro. 

Elson Miranda, meu treinador, desceu da arquibancada para procurar também. Nós dois desesperados, o tempo passando, o coração acelerado. 

Mas a minha vara não estava lá.

Eu sentia as minhas pernas bambas. Eu queria gritar, pedir que parassem tudo. Eu não soube como agir. Mas alguém saberia?

Para o mundo que eu quero descer. 

Mas não teve isso. Eram os Jogos Olímpicos e eles tinham que continuar. 

Vai lá, salta. Usa outra vara. Vai lá. 

Experimente fazer um salto depois de perder o chão. É impossível. É claro que não funcionou. 

Pequim, para mim, acabava ali. Eu voltei para o Brasil morrendo de medo. Eu pensava que as pessoas podiam me julgar, me acusar. Eu achei que ninguém nunca entenderia o que eu tinha sentido ali, naquele estádio. 

Mas o meu país me abraçou. As pessoas me paravam na rua para dizer que choraram comigo. As pessoas me davam força, me diziam coisas tão bonitas. E foi isso que me empurrou. Para o alto outra vez. Eu nunca tinha pensado em desistir, não seria naquele momento. 

Fabiana Murer Players Tribune
Marcelo Maragni/The Players' Tribune

E foi assim, que dois anos depois de perder o chão, eu ganhava o mundo. Eu ganhava o Campeonato Mundial Indoor, em Doha. E no ano seguinte, eu ganhava o Campeonato Mundial em pista aberta, em Daegu. Eu fui a primeira brasileira a fazer isso. Entre homens e mulheres. Isso é muita coisa, não é?

Sabe que eu demorei a entender o tamanho dessa conquista? Foi com a medalha no peito que a ficha foi caindo. Eu olhava aquela lista dos outros campeões mundiais e pensava que eu estava junto com eles, junto com elas. E meu coração foi se enchendo. 

Talvez eu não tenha sonhado com aquilo, mas quando aconteceu eu entendi que foi muito maior do que eu podia imaginar. Muito melhor do que qualquer sonho que eu já tinha tido. E foi para sempre. Meu nome ali, na história do atletismo. Na história do esporte brasileiro. 

No salto com vara, uma modalidade tão nova para as mulheres, pelo menos oficialmente. 

Que intenso que é fazer parte disso. Que maravilhoso carregar isso comigo para sempre. 

Que privilégio entregar isso para a menina que eu fui. Aquela que sonhou alto. 

Aquela que sempre foi o foguete da família. Que agitava todo mundo para pedalar em volta da lagoa, lá em Campinas. Que em casa, não usava a porta, fazia tudo saltando pela janela. 

Contando assim, até parece que eu sempre soube que o salto com vara seria o meu lugar. 

Nada. 

Eu comecei na ginástica artística. Com 7 anos os meus pais me colocaram, junto com as minhas irmãs, para treinar, porque sabiam que o esporte era importante. E, desconfio também, porque precisavam que aquelas três crianças gastassem alguma energia. 

Imagina uma casa com três meninas entediadas… 

Deu certo. Eu me apaixonei pela ginástica, gostava dos movimentos, gostava da adrenalina, gostava das amigas incríveis que eu fiz ali. Fui muito feliz. 

Que aventura é a maternidade. Que sucessão de altos e baixos. E isso é uma loucura para uma atleta acostumada a estar no alto, nos quatro metros e oitenta e sete.

Fabiana Murer

Mas com 14 anos eu vi que não evoluiria mais. E eu estava ficando alta, o que é um desafio. O centro de gravidade de uma menina muito alta não favorece os movimentos da ginástica. 

Eu sabia que tinha que parar. 

A ginástica, mas nunca o esporte. 

As coisas acontecem como têm que acontecer. Foi justo nessa época que vimos um anúncio de jornal. Uma nova escola de atletismo para crianças e adolescentes em Campinas. 

Fomos lá fazer um teste, eu e minha irmã. Fomos bem. E eu gostei. 

Disseram que avaliariam o desempenho e me ligariam para avisar se eu tinha passado na seleção. Mas não teve ligação: o treinador, Elson, me procurou ali mesmo, no ginásio. E disse que queria que eu fizesse parte da equipe. 

Conversamos um pouco e eu contei da ginástica. Então, ele resolveu. Eu não ia para a corrida nem para o salto em distância. Eu ia para o novíssimo salto com vara, meu corpo já acostumado com os movimentos improváveis, em ver o mundo de ponta-cabeça. 

Eu fui.

Depois de alguma incerteza, muito medo e muitas ligações do Elson para os meus pais, eu fui. 

Com um ano de treino, eu atingi o nível mundial para atletas sub-20 e entendi que eu devia me dedicar de verdade. Com dois anos de treino, eu estava morando em São Paulo, em uma república com outras meninas do atletismo. 

Com quatro anos de esporte, eu venci o Troféu Brasil, o nosso campeonato nacional. 

Mas veja, eu fico falando assim, na primeira pessoa, eu, eu, eu, mas nunca foi sobre mim. Eu fui cercada por pessoas que me incentivaram, que me empurraram, que acreditaram em mim. 

Fabiana Murer salto com vara Olimpiada
Marcelo Maragni/The Players' Tribune

Eu falo da minha família, do meu treinador, dos dirigentes do meu clube. Eu falo do Vitaly Petrov, treinador ucraniano que chegou mudando todo o nosso esquema de treinamento, que sacudiu minhas convicções e que e me levou mais longe, mesmo que isso tenha me doído.

Então fui eu, sim, mas foi muita gente comigo. Gente que entende que um atleta não se faz da noite para o dia. Gente que conhece o processo. E isso eu nunca vou esquecer. 

Gente que me deu as mãos quando eu estava no alto, mas, muito mais importante, quando eu estava pra baixo. Quando eu vi o meu rendimento cair, quando outra atleta chegou na frente do meu sonho de ser a primeira brasileira a saltar 4 metros. Quando disseram que eu já estava velha e era melhor parar.

Eu não parei. Eu não parei até 2016, quando eu quis. Eu alcancei muitas marcas, venci muita coisa. E tem uma parte dessa história que eu adoro: eu estive, por 11 anos, entre as 10 maiores do mundo. Isso é constância, é coerência, é caminho. E é a chegada. 

Em 2016 eu encerrei a minha carreira. Em 2017, eu comecei uma nova. Eu virei a mãe da Manu. E, meu Deus, que aventura é a maternidade. Que sucessão de altos e baixos. E isso é uma loucura para uma atleta acostumada a estar no alto, nos quatro metros e oitenta e sete. 

É uma aventura, sim, mas a aventura mais linda que eu poderia imaginar. É o que me move. O que me segura. O que me mantém viva todos os dias. 

E isso é muito, não é?

autografo Fabiana Murer

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