Deus Ainda Existe

David Cannon/Allsport/Getty Images/Hulton Archive

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A última vez que ouvi a voz de Diego foi no início do ano passado, quando voltei pra Argentina depois de sair do Pachuca, o clube que eu estava treinando no México.

Quando meu telefone tocou e eu vi quem era, sinceramente, fiquei surpreso, porque não achava que Diego tinha tempo para ligações como aquela naquele momento.

Quero dizer, só ser Diego Maradona era um trabalho que ele tinha que fazer 24 horas por dia, 7 dias por semana, sabe? Ele foi seguido em todo lugar por fãs e jornalistas a vida toda. Deve ter sido cansativo. Mas agora ele estava treinando o Gimnasia y Esgrima La Plata, um time da Primeira Divisão da Argentina.

Então, mesmo que eu soubesse que Diego tinha um grande coração, eu achei que ele já tivesse coisas suficientes para lidar.

Mas eu estava errado. De alguma forma, ele achou tempo para me ligar. Nós éramos próximos, já por um bom tempo, mas fazia quase uma década que não trabalhávamos juntos. Mas claro, como sempre com Diego, nunca era sobre negócios. Com ele, sempre era pessoal.

Ele disse: “Oi Martín, como você está? Como está sua família? Quando você vem para um churrasco?”

E bom, esse era Diego. Ele sabia que a presença dele era importante para aqueles ao seu redor, e ele só queria que eu soubesse que ele estava lá para o que eu precisasse. Ele sempre foi assim, sempre atencioso, sempre cuidando de você. E sempre aparecendo quando você menos espera.

Mas o que você tem que entender é que Diego não era assim apenas comigo. Não, não. Ele era assim com todo mundo com quem ele realmente se importava. O jeito que ele fazia você se sentir… ele tinha um carinho especial que era incrível.

Filha Maradona
Action Plus Sports Images/Shutterstock

E é por isso que ainda não consegui assimilar que ele se foi.

Já se passaram três meses desde que Diego nos deixou. Quando soube da notícia, enviei imediatamente uma mensagem para um amigo jornalista que eu sabia que era muito próximo dele. “É verdade?” Ele respondeu: “Sim...” E naquele momento, você simplesmente não... você não acredita. Sabe? Você lembra quantas vezes Diego já passou por situações assim, onde ele está no hospital e correm boatos sobre sua morte, e você pensa: Não, não pode ser, estão falando da boca pra fora. Provavelmente não é nada. E no final realmente não era nada. Maradona sempre se recupera. Maradona sempre sobrevive. Isso aconteceu tantas vezes. Então você pensa: é apenas mais uma dessas vezes.

Mas então a notícia sobre sua recuperação nunca chega.

Eu ficava mais ansioso quanto mais eu esperava. Eu até mandei uma mensagem para Claudia, sua ex-esposa, para saber se era verdade. Ela disse que era. Mas você ainda não acredita. Sua mente se recusa a aceitar. Para mim, Diego sempre ia estar ali. Eu tinha certeza que ele ia completar 100 anos de idade.

Maradona sempre se recupera. Maradona sempre sobrevive. Isso aconteceu tantas vezes.

Martín Palermo

E agora, conforme os dias passam, eu ainda tenho essa sensação de que não é verdade.

Claro que Diego ainda está aqui.

Você provavelmente vai encontrar com ele em algum momento.

Eu sei que falo por muitos argentinos quando digo que tenho dificuldades em imaginar um mundo sem Maradona. Desde que eu era criança, ele sempre esteve presente, sempre intocável. Quando eu o vi jogar a Copa do Mundo de 1986, eu vi o que ele significava para o mundo, e o que ele significava para nós. Diego mudou toda a minha percepção do que o futebol pode ser.

Eu ainda o vejo como uma figura representativa do que eu sinto pelo futebol. Faz sentido? Deixa eu tentar explicar. Eu tinha 12 anos na Copa do México em 86, e eu jogava futebol com meus amigos nas quadras do meu bairro o tempo inteiro. Tem uma foto minha criança dando meus primeiros passos, e aparentemente a primeira coisa que eu fiz foi chutar uma bola haha. Mas eu sempre fui muito reservado. Eu não falava muito com meu pai sobre futebol, ou sobre qualquer coisa, pra ser sincero. Eu voltava de um jogo e ele perguntava: “E aí? Como foi?”

— Bom, ganhamos por 2 a 0.

— Bom. Você fez gol?

— Ah, sim, fiz um.

E era isso. Eu não entrava deslizando na sala gritando: “NÓS GANHAMOS!! E EU FIZ UM GOL!”. Eu guardava aquilo pra mim.

Mas eu ainda sentia aquelas emoções incríveis de quando eu estava jogando futebol. Quando eu vi Maradona em 86, aquilo aumentou. Eu estava assistindo aos jogos com meus pais e meu irmão na nossa sala, e eu vi Diego levar o futebol a um nível que eu nunca pensei que fosse possível. Os gols, a glória, a paixão. Aquilo era futebol. Quando fomos para as ruas comemorar o título da Copa do Mundo, eu sabia que aquela era a maior expressão de satisfação, de prazer, que o futebol podia trazer. E a fonte de toda aquela emoção era Maradona.

Maradona Copa do Mundo 1986 Argentina
Carlo Fumagalli/AP Photo

Claro, eu também descobri que o futebol pode te causar dor. Quando você é criança e começa a jogar, é só por diversão, e ninguém te força a fazer nada. Mas quando você está em um clube profissional, você percebe que a sua ideia de ser um jogador de futebol vai mudar. Pra mim, foi um sonho chegar ao Estudiantes de La Plata, o time pelo qual eu torcia quando criança, o time do meu pai e do meu irmão. Toda a minha família é de La Plata. Mas eu também passei a ter lesões e frustrações. E mais uma vez, essa sensação de tristeza era algo que Diego transmitia melhor do que ninguém.

Na verdade, o momento em que me senti mais próximo de Diego, sem mesmo tê-lo conhecido de fato, foi na Copa do Mundo dos EUA, em 1994, quando ele teve que deixar a competição e disse que tinham cortado as pernas dele. Eu tinha 20 anos e tinha estreado profissionalmente dois anos antes. Vendo ele lá, sentindo a dor dele, despertou em mim um novo tipo de carinho por ele. Quando eu o vi chorar, queria chorar também. É difícil, de verdade, descrever o que senti naquele momento. Tudo que posso dizer é que me senti mais conectado do que nunca com ele. Ele era Maradona, ele era Deus, mas ele também era humano, sabe?

Eu nunca pensei que me tornaria próximo dele como me tornei. Só conhecê-lo pessoalmente já foi um sonho que se tornou realidade. A primeira vez foi quando eu estava jogando fora de casa pelo Estudiantes contra o Boca, em agosto de 1996. Nós éramos capitães, então nos encontramos no círculo central antes da partida. Depois de jogarem a moeda, eu reuni coragem para dizer: “Diego, quando o jogo acabar, você pode me dar sua camisa?”. Eu devo ter parecido um fã bobo — e eu era! Mas foi isso que aconteceu. Nós ganhamos o jogo, eu marquei dois gols, e quando a partida acabou, eu mandei o roupeiro procurar a camisa. Diego me mandou.

Poucos meses depois, Maradona pediu a Mauricio Macri, presidente do Boca, para me contratar do Estudiantes. Isso foi em 1997, e foi uma honra ir para o Boca. Aquele time era incrível: Diego estava lá, Claudio Caniggia, Diego Latorre, Navarro Montoya, Néstor Fabbri, os gêmeos Barros Schelotto… mas o clube não estava em uma boa fase em termos de títulos. Então os torcedores tinham motivos para não estar felizes. Mas mesmo assim, com Diego lá, tudo estava calmo. A presença dele meio que mascarava as coisas.

Maradona era Deus, mas também era humano.

Martín Palermo

Eu ainda sou muito grato por poder ter jogado com ele nos últimos meses de sua carreira. Claro que não pude aproveitar o seu auge nos anos 1980 — estar com ele no Napoli, bom, aquele era outro Maradona. Mas você ainda ficava maravilhado com ele. Ele chegava no treino e era como se tudo parasse, e nós ficávamos só assistindo ao que ele fazia com a bola, ou boquiabertos quando ele acertava outra cobrança de falta na gaveta. Não estou exagerando: ele podia literalmente colocar a bola onde quisesse.

Ao mesmo tempo, Diego não era só talento. Jogar com ele, ou apenas estar perto dele, te enchia de uma convicção especial. O último jogo dele foi um Superclássico contra o River no Monumental. Quando entramos em campo, dava pra ver o quanto ele gostava daquilo. Infelizmente, ele saiu machucado no intervalo, mas eu marquei o gol da vitória, então acabamos tendo uma comemoração dupla: uma pelo meu gol, outra pelo último jogo dele. Nós cantamos e dançamos, saímos para comer. Viver um momento desse com qualquer um é marcante para a sua vida. Fazer isso com Diego… bom, foi muito, muito especial.

Esse tempo com Diego passou muito rápido. Foram apenas alguns meses e, olhando pra trás, talvez eu devesse ter aproveitado melhor. Diego sabia que estava perto de se aposentar, mas ele continuou lutando até o fim. Ele se doou para o time de todas as maneiras. Mesmo quando ele estava perto do fim, quando seu corpo mal estava funcionando mais, ele se esforçava ao máximo. Ele sempre queria chamar a responsabilidade.

É como nesses filmes sobre guerreiros. O guerreiro luta contra tudo e todos, mas ele não faz isso por ele mesmo. Ele faz pelo bem dos outros. Eu vejo Maradona dessa maneira. Como indivíduo, ele foi um artista. Como companheiro de equipe, ele foi um gladiador.

Maradona Boca Juniors cabelo
Jean-Yves Ruszniewski/TempSport/Corbis/VCG via Getty Images

Quando Diego se aposentou, foi porque ele precisava. Ele sabia que não podia mais se esforçar, que seu corpo já havia sofrido o suficiente. Ele tinha dado tudo.

Depois disso, passamos a ter uma relação diferente. Nós nos unimos por meio do Boca, e enquanto eu continuei jogando, ele voltou ao clube como dirigente. Passamos a interagir mais. E foi aí que realmente começamos a nos aproximar pessoalmente.

Nós tivemos gestos um com o outro que significavam muito. Ele veio ao meu casamento. Quando eu perdi meu filho recém-nascido, ele estava lá para me ajudar.

E quando ele passou por tempos difíceis, eu estava próximo à família dele.

Nunca pensei que trabalharíamos juntos de novo. Nem pensei que teria a chance de ir a uma Copa do Mundo com ele. Eu não jogava pela Argentina desde 1999. Então, em 2008, quando eu tinha 34 anos, eu lesionei o ligamento cruzado do joelho direito. Naquela altura, eu nem sabia se jogaria futebol de novo.

Mas me recuperei no início de 2009 e, naquela época, por uma reviravolta do destino, Diego tinha assumido a Seleção Argentina. Então ele começou a dar chances a jogadores que atuavam no futebol nacional, e não só aos que estavam na Europa. De repente ele me convocou. Eu não jogava pela Argentina há 10 anos, e agora Diego estava me dando uma chance.

Então chegamos perto do fim das Eliminatórias da Copa, e eu percebi que estaria lá.

Pulamos para outubro daquele ano, em que precisávamos ganhar do Peru no penúltimo jogo das Eliminatórias para estar na Copa do Mundo. Foi uma crise na Argentina. Não ganhar a Copa do Mundo já é ruim o suficiente. Mas nem mesmo ir? Impensável. Estávamos jogando com facas nas nossas gargantas, de verdade.

Então estamos enfrentando o Peru em Buenos Aires e está chovendo. Muito. Primeiro, nós marcamos um gol. Graças a Deus estamos perto de uma vitória por 1 a 0. Então o Peru empata um pouco antes dos 45 minutos do segundo tempo. Desastre. Já era. Estamos acabados. Adeus, Copa do Mundo. Algumas pessoas deixam o estádio, furiosas e chateadas. E Diego vinha sendo duramente criticado na imprensa por suas táticas, por convocar um atacante velho que todo mundo acha que já está acabado… e agora ele também está.

Mas então, nos acréscimos, temos um escanteio. A bola voa para a grande área e, de alguma forma, cai na minha frente, e eu apenas chuto. Gol. Eu corro pela chuva como um louco, meus companheiros de seleção correndo atrás de mim. O estádio explode. Diego entra em campo, se joga no ar e desliza de peito na grama molhada. Que momento! Que noite!

Gosto de pensar que se minha vida fosse um filme, e a cena de abertura fosse uma foto minha criança chutando uma bola, então o final, um pouco antes dos créditos começarem, seria eu comemorando aquele gol na chuva.

A bola voa para a grande área e, de alguma forma, cai na minha frente, e eu apenas chuto. Gol.

Martín Palermo

Aquela vitória selou tantas coisas. Como a minha amizade com Diego e a confiança que ele depositou em mim. Sem mencionar que quando a Argentina se classificou para a Copa de 1986, ela também tinha marcado um gol nos acréscimos contra o Peru nas Eliminatórias.

Foi tudo uma coincidência? Eu acho que não. Acho que há uma conexão.

Quando você marca um gol desses, você realmente começa a sonhar em ir para a Copa do Mundo. Eu nunca tinha participado de uma. Agora Diego estava se preparando para escolher os convocados, e a incerteza ficou no ar por meses. Eu não tinha ideia se ele ia me levar. Às vezes ele me ligava para saber como eu estava. Então, um pouco antes do anúncio oficial, ele me ligou e disse: “Martín, apareça na segunda-feira. Você vai para a Copa do Mundo”. 

Eu ainda lembro da voz dele naquela ligação como se fosse ontem.

E eu só podia ser grato. Eu disse: “Muito obrigado, Diego. Obrigado pela oportunidade”. Minhas palavras pra ele sempre eram “obrigado”. A mesma coisa quando eu fiz o gol contra o Peru: um abraço e um “obrigado”. Era assim.

Eu sabia que não seria titular. Eu tinha 36 anos quando fui para a África do Sul, e nós tínhamos jogadores como Lionel Messi e Carlos Tévez, então eu entendia. Mas no último jogo da fase de grupos, contra a Grécia, nós já estávamos classificados para o mata-mata, então Diego me colocou para jogar os últimos 10 minutos. Meu primeiro jogo em uma Copa do Mundo. E eu fiz um gol. Eu fiz um gol com minha família na arquibancada: meu irmão, meu filho mais velho, minha esposa. Foi um dos meus momentos mais felizes no futebol. Eu senti como se o ciclo da minha carreira tivesse se completado.

Maradona Palermo Argentina
Jeff Mitchell/FIFA via Getty Images

Jogar por Diego foi uma experiência especial. O que ele representava para nós, o jeito que ele nos fazia sentir, era muito poderoso. Ia além da tática. Ele te enchia de confiança. Quando passamos para as oitavas de final, realmente achamos que íamos vencer a Copa do Mundo. Porque as coisas são assim com Diego. Ele havia ganhado a Copa como jogador. O que faltava era ganhar como treinador, e agora ele estava lá conosco. Fazia muito sentido. Parecia destino.

Então, sim, o fato de que não conseguimos ganhar a Copa do Mundo foi uma das maiores decepções, tanto da minha carreira quanto da minha relação com Diego.

Dito isso, as lembranças daquele período com a seleção nunca vão me deixar. Na verdade, também tenho uma outra coisinha pra lembrar daquela época. Diego sempre usava uns brincos brilhantes que pareciam que ele estava iluminando todo o lugar. Então, antes de um jogo, lembro de dizer pra ele:  “Bom, se eu fizer gol amanhã, você me dá seu brinco”. Eu estava só brincando, mas no dia seguinte eu marquei e ele me deu o brinco.

Eu ainda tenho aquele brinco. Está guardado em segurança, como um pequeno tesouro.

Depois da Copa do Mundo, a vida de Diego passou por altos e baixos. O que as pessoas têm que entender é que é difícil ser um jogador profissional ou um técnico. Era ainda mais difícil ser Diego Maradona. Muito mais difícil. Qualquer tentativa dele de ser uma pessoa normal era destruída. Ele era seguido 24 horas por dia, adorado, assediado e atacado. Ele nem podia sair de casa em paz. Como é possível viver uma vida normal desse jeito?

Se eu pudesse voltar no tempo, faria tudo possível para ajudar Diego em seus últimos anos. Eu tentaria ajudá-lo a viver uma vida um pouco mais natural, mais real. Eu queria vê-lo ficar velho. Mas ajudar Diego era difícil, e muitos outros tentaram também. É difícil saber o que realmente aconteceu com ele. Eu não gosto da forma que ele teve que viver seus dois últimos anos. Ele piorou muito, tanto mental como fisicamente. Ele não era o Maradona que eu gostava de ver.

O que mais lamento é que ele tenha ficado tão sozinho. Ele não foi bem cuidado. Ele não viveu uma vida digna de quem ele era.

Eu nunca vou julgar Diego. Ele cometeu alguns erros, claro, nós sabemos disso, mas ele viveu a vida dele. Tudo que me importa é o que Diego significou pra mim e como ele fez eu me sentir. É difícil descrever, especialmente em um contexto de futebol, mas aqueles que acreditam que Deus existe, e eu acredito que sim… Diego é isso no futebol. Deus existe em tudo que ele representa. Para mim, Maradona significava a mesma coisa no futebol.

Eu não sei quando vou encarar a realidade. Talvez em algum momento vou ter que aceitar que Diego se foi, da mesma forma que aceitei a morte do meu filho. Vou ter que cruzar essa ponte e dizer: Ele não está aqui. Eu não posso mais vê-lo.

Mas eu ainda não cheguei a esse momento. É muito doloroso, muito surreal.

Para mim, Diego ainda está aqui. Deus ainda existe.

E de alguma maneira, ele sempre vai existir.

Autografo Martin Palermo

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