Destino

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Nunca esqueço de como estava me sentindo antes da minha estreia pelo São Paulo. 

Eu tava tenso. Teeeenso. Travado! 

Passei um mês apanhando da imprensa até finalmente entrar em campo, só por ser desconhecido. Todo dia era uma notícia me criticando. 

Pô, imagina? Jovem, com 22 anos, jogando em outro país, sem falar o idioma. O treinador não me conhecia, não sabia quem eu era, não tinha nenhuma referência minha.

Eu lembro que chegava em casa e chorava todas as noites. Toda noite.

Então, cara, antes do meu primeiro jogo eu tava com muita raiva acumulada. MUITA! Eu precisava provar que o São Paulo era o meu lugar.

Nos primeiros três, quatro meses, eu botei na minha cabeça que iria mostrar com ações a minha conduta. Todos os dias. A cada segundo. 

Foi o que eu fiz: chegava do jogo 1h da manhã no sábado e ia treinar. Os caras me chamavam de “fantasma do CT”. O médico tinha que me mandar embora, os seguranças vinham me tirar do treino. 

Eu não sabia como demonstrar vontade e era meu jeito de descontar a raiva. Porque misturava tudo, né? Raiva, ansiedade e MUITA gana. 

Meu sentimento entrava em campo. Eu jogava como sentia. 

Pedro Bodick/The Players' Tribune

Minha vontade era calar a boca de todos os babacas que falavam que havia algo mais na minha contratação. Mas tudo isso despertou algo dentro de mim. No Uruguai a gente chama de la rebeldía. É esse fogo sagrado, essa vontade de dar a volta por cima e mostrar pra todo mundo: isso não vai acontecer assim, sou eu que vou escrever minha própria história. 

Foi daí que surgiu outro Lugano. Um Lugano que nem eu conhecia. 

O Lugano que virou lenda do São Paulo, um dos maiores clubes do mundo.

Mas muita coisa aconteceu antes disso. E agora eu vou te contar um pouco do que passei até essa grande reviravolta da minha carreira.

Desde quando eu ainda não era o Lugano. Aliás, tem um lugar onde até hoje ninguém me chama assim.



Em Canelones, não sou o Lugano.

Sou o filho de Don Alfredo.

Minha primeira lembrança do futebol é com quatro ou cinco anos, vendo meu pai jogando na várzea.

Ele era capitão do Libertad de Canelones, um time amador da minha cidade.

Meu pai também é loiro, grandão, mas, pelas histórias que me contam, ele jogava muito mais que eu. Muito mais! 

Zagueiro, camisa 2, competitivo. 

Lembro que ele era muito forte, muito leal e queria sempre ganhar. Futebol do interior, né?! Pegaaado… E, às vezes, esse excesso de paixão levava a algumas coisinhas, uma chegada mais forte. Deve ser hereditário… Hahaha!

Meu sentimento entrava em campo. Eu jogava como sentia.

Diego Lugano

Por tudo isso, até hoje eu sou o filho dele. O filho que herdou essa personalidade. 

É incrível!

Mesmo com meus 95 jogos pela Celeste, o maior capitão da história do Uruguai, na minha cidade eu ainda sou “o filho de Don Alfredo”.

O futebol é incrível. 

Lugano Uruguai
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Mas a verdade é que, até por ter crescido num pueblo pequeno, o futebol profissional sempre foi distante de mim. O meu mundo era a minha cidade, aquele jogo de fim de semana no interior, com torcida, apaixonante. 

Eu não joguei na base de um time, eu estudava e trabalhava. Isso é impensável hoje em dia… Com meus 18 anos, fui direto para o sub-20 do Nacional. No ano seguinte, enfim, joguei na primeira divisão uruguaia e saí campeão. Depois, como capitão do Plaza Colonia, entrei para a seleção do campeonato.

Aí pintou a possibilidade de vir pro São Paulo, mas eu achava difícil. Eu era reserva no Nacional, me destaquei por um clube de menor expressão… Sempre fui muito desconfiado, demorei a acreditar. Nem quando subi no avião eu acreditava que aquilo estava acontecendo. 

Imagina, vir pro Brasil? Pro São Paulo?!

Porque eu sempre gostei de conhecer a fundo a história do futebol uruguaio. Então, eu já sabia da trajetória do Pedro Rocha no São Paulo. Do que ele, Pablo Forlán e Darío Pereyra fizeram pelo clube. Eram figuras tremendas, enormes. 

Tá certo que, quando eu vim para o Brasil, claro que eu tinha uma motivação, uma inspiração, mas porra! Eu sabia que era muito difícil chegar à altura deles.

Isso fez com que eu agarrasse essa chance com muito mais força, mais intensidade emocional. E, cara, eu comecei a ver futebol em cores pela primeira vez com o São Paulo de Telê, lá no Japão. Olha como são as coisas…

Hoje olho pra trás e vejo que foi um golpe do destino. Os caminhos se alinharam para eu ter chegado até aqui. Eu não podia deixar escapar. Então, eu estudei sobre o clube, li muito. 

E isso fez toda diferença para eu ser contratado, juro.

Aliás, essa é uma história que pouca gente sabe… O Juan Figer, meu empresário, falou com o Marcelo Portugal Gouvêa, que era presidente do São Paulo. Ele contou pro Juan que o São Paulo estava vivendo um momento conturbado. 

Eram muitos anos sem vencer, perdendo clássico, sem uma identidade clara pro torcedor. Por isso, eles queriam jogadores de peso, de categoria, que encantassem a torcida primeiro. 

Obviamente, eu não fazia parte desse grupo. Longe disso.

Lugano Marcelo Portugal Gouvea São Paulo
Rubens Chiri/São Paulo FC

Só que quando eu cheguei pra conversar com o Marcelo, a gente tava esperando o Juan chegar. 

Mas ele não chegava… Então, começamos a falar sobre a vida. 

Sobre futebol, sobre o São Paulo Futebol Clube. 

Falamos do passado, do presente, de toda a história da instituição. 

E o Juan não chegava. Não chegava, não chegava, não chegava… 

Comecei a ficar preocupado. Uma hora e meia de papo e cadê o cara? 

Daí o Marcelo pegou o contrato e disse:

“Pode assinar aqui que você vai ser jogador do São Paulo.”

Cara, a gente tá falando de uma época que não tinha scout, quase nenhuma imagem do que eu tinha jogado no Uruguai. O Marcelo me contratou pelo o que eu mostrei como pessoa, como ser humano. 

Como um homem que sabia o que queria. E que sabia onde estava. 

Meu pai sempre me falou que na vida a gente precisa ter gratidão. Nunca ser ingrato. “Esse é o único defeito que você não pode ter”, ele dizia. 

Don Alfredo me passou essa lição. Então, eu sou muito grato ao Marcelo Portugal Gouveia. Ele botou fé em mim. 

Bom, o São Paulo é o Clube da Fé, né?

Fui, sim, o jogador do presidente e tenho um puta orgulho disso. Graças a ele, recebi a oportunidade de vestir a camisa tricolor.

Eu tinha que devolver essa confiança. Do meu jeito, com o jeito uruguaio de ser.  No Uruguai, a gente joga como vive. 



Aos poucos, eu fui me impondo. Queria mostrar que eu não estava brincando, que jogava sério. Todo treino era forte.

Foi aí que eu conquistei o respeito dos caras, do Rogério. E o time mudou. Não era mais um time técnico, mas um time de pegada. 

Passado aquele momento de críticas pesadas dos torcedores e da imprensa, os meses em que praticamente não conseguia dormir, de tanta raiva… O São Paulo começou a vencer, vencer, vencer. 

De repente, nenhum rival queria jogar contra o São Paulo. A gente não perdia dos caras. Ficamos três anos e meio invicto nos clássicos contra Corinthians e Palmeiras.

Lembro até hoje do jogo da Sul-Americana contra o River Plate, em 2003. Foi ali que a minha relação com a torcida mudou de vez, e começou a forjar o respeito mútuo que dura até hoje. 

Lugano Sao Paulo River Plate
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Nesse dia, o São Paulo atropelou o River. Atropelou! No futebol e no caráter. Time copeiro. Eu joguei muito bem, lutei pra caralho. Mas perdi o pênalti e fomos eliminados. Mesmo assim, a torcida me apoiou. Eu sentia que eles pensavam: “Pô, esse cara não é qualquer um”.

Eles começaram a acreditar em mim. 

Batemos na trave em 2004, mas, em 2005, a gente sabia que tava bem. O título paulista mudou completamente a energia do grupo. Logo depois, conquistamos a América. Nós estávamos muito preparados, muito confiantes.

Aquele grupo era foda. 

Rogério, Júnior, Luizão… Campeões mundiais. 

Eu, Cicinho, Josué, Mineiro, Danilo. Todos numa idade boa, com gana de vencer.

E aí chega a partida contra o Liverpool. 

Na vida, a saúde vai embora, as medalhas são esquecidas... Mas aquela emoção, aquele sentimento, é a maior alegria que você pode ter.

Diego Lugano

Pra você ter uma ideia de como aquele elenco esbanjava confiança, a conversa antes da final era:

“Somos um time melhor que o Liverpool. Vamos ganhar na boa!”

Olha isso, cara! Eu ficava louco…

“Peraí, o que vocês estão falando?! Não, nós não somos melhores!!”

Os caras tinham Gerrard, Morientes, Luis García, Carragher, Reina, Kewell... Eu tentava de todo jeito colocar na cabeça dos meus companheiros que a gente precisaria se defender bem para depois contra-atacar.

Eu tava tenso para aquele jogo. Teeeenso. 

Time deles era campeão da Europa, jogava de forma vertical. O jogo dos caras era quatro toques e bola na área. Quatro toques e bola na área. Eram melhores que a gente. Mas nós ganhamos o jogo porque estávamos preparados para sofrer. E porque jogamos melhor.

Isso também explica porque o futebol brasileiro é pentacampeão do mundo. Enquanto eu estava preocupado em neutralizar as qualidades do adversário, o resto do time não só confiava que jogaríamos melhor, mas que éramos melhores do que eles.

Até hoje, ninguém vai me convencer que a gente era melhor que o Liverpool. Mas esse jeito de encarar a vida, com leveza e um otimismo às vezes fora da realidade, foi decisivo para que o nosso jogo fluísse naturalmente na final. Sem deixar de lado o equilíbrio, um fator determinante para que a gente resistisse à pressão deles.  

Eu não consigo explicar o que eu senti naquele momento em que o árbitro apitou o fim da partida. É impossível.

Ainda tento descrever pro meu filho, contar para a minha mulher, mas não adianta: é algo único, uma coisa intransferível. 

Quando eu relembro essa conquista, não são as imagens que eu vejo. Eu sinto aquele momento de novo. 

Lugano campeao mundial Sao Paulo
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O Rogério falou antes do jogo que só muitos anos depois iríamos entender o que a vitória significaria. Hoje, com o tempo, eu entendo o tamanho do que fizemos. 

Na vida, a saúde vai embora, a fama também, as medalhas são esquecidas... Mas aquela emoção, aquele sentimento, é a maior alegria que você pode ter. 

O maior patrimônio que um jogador de futebol pode ter. 

E esse é o meu patrimônio: de Canelones para ser campeão do mundo com o São Paulo. 

Ser campeão do mundo pelo meu clube.

Sou isso! 

Não é à toa que, quando eu saí, dei minha palavra: se eu voltasse para a América do Sul, seria pro São Paulo. 

Em 2015, acabei indo pro Cerro Porteño, mas só porque o São Paulo disse que não precisava de mim! Nesse momento eu quase decidi que não ia mais voltar pra cá. Já estava sofrendo umas contusões, com uma idade mais avançada. Fiquei naquela: Será que vale a pena? Pra quê? 

Achei que seria muito arriscado. 

Eu queria que o são-paulino e o São Paulo lembrassem de mim no auge. 

Só que aí teve a despedida do Rogério no Morumbi. E tudo mudou. Eu, meus dois filhos e 80 mil pessoas cantando meu nome. Pedindo pra eu voltar. Amigo… Não há palavras para explicar. De novo, é intransferível. 

Lugano carta The Players Tribune
Pedro Bodick/The Players Tribune

Futebol é emoção, futebol é emoção! Eu tinha que voltar.

O clube estava num momento difícil, a coisa tava feia, Rogério saindo… Me senti na obrigação de estar aqui.

Era uma obrigação moral.

Se eu virei essa referência no São Paulo é porque o São Paulo me abriu as portas. Porque o clube é magnífico, tem esse vínculo com os uruguaios, teve paciência comigo…

Eu me identifico com o Tricolor muito antes de vir pra cá como um jogador praticamente desconhecido. É uma coisa além… Não foi nenhum título, não foi um jogo. É sobre quem eu sou e quem é a instituição, historicamente.



Quando eu olho pra trás, me custa entender como eu consegui tudo isso.

É como se fosse um filme de ficção. E a torcida do São Paulo me faz reviver esse filme o tempo todo.

Com muito carinho, com muito respeito. 

Porque eu sempre respeitei essas cores. É por isso que eu não trocava de camisa com os adversários depois das partidas. Porra, o cara sai de casa, pega sol ou chuva, gasta dinheiro, leva o filho, sente a emoção do jogo… Aí o time perde, o cara fica triste, puto, e vê seus ídolos trocando o manto da batalha?!

Nunca!!!

Se você perde o jogo, não tem que ficar trocando camisa como se nada tivesse acontecido. Tem 60 mil que estão tristes, são 20 milhões de são-paulinos. Tá entendendo?

Tem que respeitar isso. Tem que respeitar o torcedor.

Lugano The Players Tribune
Ricardo Nogueira/Getty Images

E eu falo de uma torcida que é seis vezes maior que a população do Uruguai. Entende agora? Não é qualquer coisa, não.

É uma responsabilidade gigantesca ser admirado por esses caras. Eu tento corresponder a essa expectativa até hoje.

O Don Alfredo ensinou seu filho a ser grato, lembra?

E eu sou eternamente grato. Primeiro, ao destino, por ter me colocado na história do São Paulo. Por fim, aos torcedores: muito obrigado por tanto e perdão por tão pouco. Porque não é equilibrado o que eu dei e o que eu recebi — e continuo recebendo — de vocês.

Mas eu fiz o melhor que podia. Podia ser melhor? Sim, mas eu fiz o melhor que podia.

De verdade.

Todos os dias. Mesmo com atitudes invisíveis, como estar no sábado às 2h da manhã treinando no CT.

E, enquanto eu permanecer vivo, vou tentar estar à altura do carinho da torcida. Eu me preocupo com isso, mas também tenho medo de um dia entender o que eu represento.

Muitos torcedores vêm me perguntar: “Você sabe o que representa para nós?”. 

E eu não quero saber. Eu só devolvo a pergunta: “Você está bem?”. 

Então, sou isso!

Sou um de vocês.

Autografo Diego Lugano

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