Alguém Para Correr Comigo

Pedro Bodick/The Players' Tribune

Será que você sabe o meu nome, será que conhece toda a minha história?

Sim, você conhece a fama do Gaules, o streamer que fica por horas e horas online, verdadeiras jornadas inteiras na frente do computador, e que é seguido por milhões de pessoas, com um dos canais mais visualizados do mundo.

Você sabe até mesmo como é a decoração do meu quarto. Está acostumado com as palavras que eu uso e até ri das piadas que eu faço — ok, nem sempre elas são engraçadas, mas quem nunca?

Porém, eu gostaria de insistir… 

Você sabe meu nome, conhece a minha história?

Então, vamos fazer um pacto: preste atenção no que eu vou te contar a seguir, que eu te prometo mostrar quem eu sou na real.

E já começo aqui, mandando o papo reto: nem tudo é o que parece. Eu atravessei momentos difíceis na minha vida, mas confie em mim: o esporte e a Tribo me dão força para que eu busque sempre ser a melhor versão de mim mesmo.

Pode colar, mano, não precisa ter medo. Eu quero você do meu lado.



Quando comecei a jogar videogame, lá nos anos 90, era tão divertido que acho que ninguém consegue imaginar como era um rolê diferente. 

É claro que eu não troco nada dos games de hoje pelos games daquela época, mas, cara, é impossível não lembrar a sensação que aqueles consoles das antigas traziam pra gente. 

Era uma coisa de grupo, sabe? A gente sempre estava jogando junto, e o videogame era um meio de comunicação da nossa turma, um motivo a mais para que a gente pudesse estar junto.

Ninguém fazia aquilo sozinho. A gente queria, sim, passar de fase, mas, se não desse, tudo bem. Tinha outro amigo esperando o controle, pronto para continuar jogando.

Já era uma comunidade.

Ah, e antes que alguém venha falar, não, isso não atrapalhava em nada a rotina que a gente tinha, o compromisso com outras atividades. Eu praticava todos os esportes e me dedicava pra valer em todos eles.

Posso dizer com segurança que essa experiência com o esporte convencional me capacitou para coisas que eu não podia imaginar que aconteceriam comigo no futuro.

Mas, calma, brasileirinho, não quero me adiantar.

Como eu dizia, ser adolescente nos anos 90 era viver várias situações ao mesmo tempo. A gente não era uma coisa só, sabe? A gente estudava, a gente batia bola na rua, a gente disputava torneios interclasses… E ainda jogava videogame. Era demais!

Gaules Counter Strike CS GO
Pedro Bodick/The Players' Tribune

Até que um dia...

Eu sempre vivi correndo, de um lado para o outro. Simplesmente, não conseguia ficar parado. Então, meio que uma hora tinha de acontecer... Olhando agora, tanto tempo depois, foi uma contusão, nada demais.

Mas naquele momento parecia séria o bastante para que eu tivesse de ficar impedido de jogar futebol por um tempo. Comecei até a andar de muleta. Sei lá, isso deve acontecer com (quase) todo mundo, mas quando a gente tem mais ou menos 15 anos, tudo parece muito grave.

Então, para não ficar encostado de vez, fui até uma Lan House perto de casa. Hoje praticamente não existem estabelecimentos desse tipo, mas lá no fim dos anos 90 a gente vivia o começo de uma febre. A conexão de internet não era tão boa. Se eu te contar que antes a gente precisava desligar o telefone de casa e esperar horas pela boa vontade do modem da internet discada para se conectar, você, que é das gerações mais novas, nem acredita, né? Pois é, era assim na minha época. Uma saída para quem quisesse jogar sem interrupção ou falha na conexão era frequentar as Lans. 

Me lembro como se fosse hoje eu chegando na Monkey, que ficava no bairro do Tatuapé, em São Paulo. Estava com a perna engessada e a muleta debaixo do braço. Não podia sonhar com o que estava para acontecer, só queria tentar o novo jogo que todo mundo vinha comentando, o Counter Strike. 

E daí aconteceu.

Posso afirmar com convicção: foi o momento em que meu cérebro deu um clique, como se eu estivesse me conectando a algo maior. Tipo conexão wifi antes mesmo da banda larga existir, saca?

Sim, eu já tinha jogado outros games, mas nunca havia sentido nada parecido antes.

Quando essa conexão, enfim, funcionou para mim, tudo ficou mais óbvio e natural. Entre tantas dúvidas que pairam na juventude, e que são normais, eu já tinha uma certeza: era isso, jogar CS, que eu queria fazer pra valer!

Não sei se estou conseguindo ser tão transparente como gostaria, mas a real é essa: foi amor à primeira vista. Enquanto para os outros era mais um jogo, embora fosse a febre daquele momento, para mim era algo mais do que uma paixão.

Essa foi uma coisa que o esporte me ensinou. Se você praticar, treinar com força, o resultado vem.

Gaules

Então, passei a me dedicar de corpo e alma. Queria desenvolver habilidades e técnicas para chegar mais longe que meus amigos. Alguns tinham uma espécie de talento automático para tipos específicos de jogadas. Eu precisava entregar o meu melhor naquilo se quisesse superá-los, e comecei a me envolver.

Essa foi uma coisa que o esporte me ensinou. Se você praticar, treinar com força, o resultado vem. Daí eu comecei a fazer coisas que as pessoas ficavam... WTF, man?!!

— Por que você está atirando naquele cara parado? (enquanto eu treinava mira).

— Que história é essa de ficar se movimentando sozinho aí, mano? (enquanto eu praticava para me situar melhor na partida).

— O quê? Não estou ouvindo nada, não, do que você está falando? Não tem nenhum inimigo chegando... (enquanto eu prestava atenção nos passos do jogo para escutar se alguém se movimentava).

Não, nada disso foi em vão. Deu resultado. Mas vai lá explicar pra galera que aquilo fazia parte de um plano maior. Abraça! 

Gaules tatuagem
Pedro Bodick/The Players' Tribune

Algumas pessoas simplesmente não querem entender que para ser um atleta profissional é preciso ir além. Não apenas querer, ter vontade, mas fazer por onde, se dedicar, concentrar, manter o foco e a disciplina o tempo todo.

Não é fácil.

Vendo hoje, acho que poderia ter dado um desconto. A história do esporte eletrônico é muito recente, e no Brasil é normal as pessoas terem desconfiança. Se desconfiam até da Seleção Brasileira de futebol…

Fico imaginando como era o futebol no Brasil na década de 1920. Há 100 anos, ninguém consideraria deixar os filhos trocarem uma carreira numa área tida como séria pelo futebol. E poderia estender isso pra música e pras artes em geral. 

Com os e-sports, a regra era a mesma. Havia tanta desconfiança… Um padrão que não deveria ser questionado. Nenhum pai queria que o filho abrisse mão de uma “carreira séria” para tentar ser jogador de Counter Strike. Mas, para mim, era só mais um obstáculo que uma hora eu ia superar.

Eu não hesitei nem por um momento sequer. Ainda assim, os olhares denunciavam a lamentação pelo desperdício.

“Coitado, olha o que ele está fazendo com a própria vida…”

O que eu achava de tudo isso?

Ah, ninguém é obrigado a acreditar em nossos sonhos. Quando o nosso objetivo fala mais alto, temos de ser determinados até o fim.

Mas não foram poucas as vezes em que essa dúvida apareceu. E isso só me motivava a perseguir meus objetivos com mais gana! 

Não foi por acaso que a palavra “resiliência” está tatuada no meu punho. Chegou um momento, depois de eu ter passado por muita coisa, que quis deixar esse aviso para quem quisesse ver.

Por favor, não me leve a mal, não quero ferrar ninguém, só não venha desacreditar do meu sonho, de algo que eu me dediquei tanto para fazer acontecer.





Fiquei um tempo como jogador da Monkey Tatuapé, com um desempenho espetacular, mas teve uma hora que tínhamos de mudar. Era o caminho natural a seguir.

Foi uma época em que a gente já não estava com a mesma sintonia, até porque a Monkey queria formar um time só, unindo todas as Lan Houses, e isso não era interessante pra gente.

Formamos nosso próprio time, o G3x.

No G3x, nossa estreia foi exatamente num campeonato promovido pela Monkey, quando eles abriram a loja da Santa Cruz, perto do metrô, aqui em São Paulo. O resultado? Nós fomos campeões, não tinha pra ninguém.

A lembrança desse título tem um sabor todo especial para mim. É que até aquele momento ninguém sabia quem a gente era, ninguém falava em Gaules. Pode parecer estranho, mas nós éramos ilustres desconhecidos, e as pessoas não davam importância para o que estávamos fazendo.

Gaules g3x foto antiga
Cortesia de Gaules

Aquela vitória foi um divisor de águas.

Depois daquele campeonato, o G3x se impôs. Nosso time ficou dois anos e meio sem perder no Brasil. Esse é um feito para qualquer esporte, não só nos e-sports. 

Não tinha milagre. A confiança vinha da nossa dedicação aos treinamentos. Nosso time era o que mais se preparava. Nós encaixamos um ritmo que não era fácil de ser batido.

E talvez nossa história no G3x poderia ter tido ainda mais êxito se uma crise pesada não tivesse atingido o mundo da tecnologia em 2006. 

Foi complicado porque perdemos nosso patrocínio, e os e-sports, que já eram uma realidade com estrutura financeira, foi bastante afetado. E acho que minha trajetória seria outra não fosse uma reviravolta digna de filme.

Para que pudéssemos nos salvar e manter nosso sonho vivo, tivemos de migrar para o nosso principal rival, o MIBR. 

Olhando agora, muitos e muitos anos depois, talvez fosse a decisão mais sábia e racional daquele momento, mas as coisas não são tão simples assim.

Escolher o rival significava um choque não só para a comunidade que acompanhava o nosso time, mas para a própria equipe do G3x. 

Será que todo mundo ia aceitar numa boa?

Além disso, tinha também um acordo, com cláusulas rígidas e metas impossíveis de serem atingidas. Em troca do controle total da equipe, eu me comprometia a manter o MIBR no top 10 do mundo Todos. Os. Meses.  Ah, claro, ser campeão mundial fazia parte do pacote.

Ok, nosso time era bom, mas será que eu tinha ideia do que estava assinando? Eu achava que sim, o que foi ótimo, porque nós demos conta de todas aquelas demandas.

Me sinto extremamente orgulhoso e realizado por poder vivenciar esse momento tão incrível para a comunidade brasileira de CS.

Gaules

Particularmente, esse foi um momento importante para mim, porque troquei de posição. Deixei de ser um atleta e comecei a participar de outra forma, como treinador.

Foi uma mudança inesperada, porque eu não tinha planejado assim, com tanta antecedência. A figura do técnico ainda nem existia nas equipes. Mas tudo aconteceu tão de repente, que eu não podia deixar essa oportunidade passar. Apareceu um jogador muito talentoso, que precisava entrar no time de qualquer jeito, nem que eu tivesse que sair. 

Foi exatamente o que eu fiz.

Mesmo fora do time, pude saborear vitórias e sofrer com as derrotas como qualquer outro atleta. Não, eu não estava jogando, mas minha alma e minha mente estavam ali, junto com a equipe. 

Eu me sentia mais vivo do que nunca, e é uma sensação indescritível quando isso acontece. Como agora, neste ano, que teremos um Major pela primeira vez em nosso país, no Rio de Janeiro.

Mesmo fora do circuito de competição, eu me sinto extremamente orgulhoso e realizado por poder vivenciar esse momento tão incrível para a comunidade brasileira de CS.



Houve uma época, no entanto, em que esse sentimento, esse prazer tinha ido embora.

Eu não sei dizer por que isso aconteceu, mas posso garantir que, ao contrário da minha transição de jogador para treinador, não foi de uma hora pra outra. Foi aos poucos. E lá estava o Gaules, se desconectando das coisas que gostava de fazer, dos amigos, perdendo tudo, mas não de uma vez.

Uma gota por dia.

Tuc, tuc, tuc…

Pensando bem, acho que foi por esse motivo que não percebi a depressão chegando, mas notei quando o monstro bateu à minha porta, querendo me empurrar para o vale da morte. Ali bateu forte.

Minha conexão com a vida não estava funcionando. Lembrava os tempos de internet discada, aquele sofrimento para se conectar novamente quando caía a linha. Só que, dessa vez, quem estava fora do ar era eu. Derrubado, no chão, totalmente sem ânimo para me levantar. E depois disso, nada mais fez sentido.

Preciso dizer que foi por muito pouco que essa desconexão não levou a minha vida embora.

Gaules depressao e-sports
Pedro Bodick/The Players' Tribune

Mas também preciso contar que eu me recuperei. E, não, não foi porque eu sou mais forte que todo mundo, ou porque eu sou um super-herói, ou por mérito próprio. Foi porque eu tive ajuda profissional que encontrei uma saída. Tive médicos que me trataram, terapeutas que me aconselhavam, e alguns amigos que não me abandonaram e me abraçaram.

De repente, eu queria levantar e correr de novo, mas agora para praticar esporte, manter minha mente sã, e não para fugir.

Não estou dizendo que foi fácil, muito menos que me levantei de uma hora pra outra. Mas reafirmo que, sim, é possível. E, se você estiver passando por isso, por favor, peça ajuda. O primeiro passo pode ser dado por você. 

E acredite: vai ter alguém para correr contigo.



A depressão não foi a única vez em que passei por um apuro de vida ou morte. Tive de começar basicamente do zero quando fui fazer streaming. Naquela época, eu ficava o dia inteiro conectado com você, que, do outro lado, me dava energia para continuar e mal podia saber o que estava acontecendo comigo. 

Velho, eu não tinha grana para manter aquele negócio. Na verdade, meus recursos mal davam para eu me alimentar. Comia frutas e bebia muita água para enganar o estômago. Sim, eu dizia que isso fazia parte da minha resolução por uma vida saudável, mas, falando francamente agora — e não me envergonho por reconhecer isso —, não sobrava um tostão para comprar um lanche decente.

Foi o momento mais f#d@ porque eu não tinha onde me segurar e, se não fosse pelos amigos, pelo trabalho e por quem me assistia, ah, eu não sei o que seria de mim.

Gaules tatuagem Ogum
Pedro Bodick/The Players' Tribune

Aprendi muito nesse período em que eu mais sofri. Entendi que, além da tristeza, é possível controlar nossos desejos. Consegui canalizar minha energia para cumprir os meus objetivos e sair daquela situação.

Putz, foi f#d@ sentir fome e não ter dinheiro suficiente para comer, fiquei mal, mas, mesmo no pior momento, mantive a cabeça erguida e vivi essa experiência ao máximo. Ninguém pode tirar isso de mim. E quem estava lá me viu superar a depressão e reconectar com o prazer da vida. Com o que eu mais gosto de fazer.

Redescobrir meu lugar me mostrou que o mundo do esporte eletrônico não é sobre competição ou tecnologia, mas sobre pessoas. Sobre nossa capacidade de conectar com o outro. De passar o controle para o próximo jogar.

Na fase mais difícil da minha vida, vocês me estenderam a mão, me levantaram e correram comigo. E se existe um propósito em tudo que faço hoje, é para correr por vocês e pelos outros. 



Na internet, como em todos os lugares, nem tudo é o que parece. Algumas pessoas acham que sabem de tudo, que é normal ser escroto, cruzar os limites com a “zueira sem limites” e o tal do politicamente incorreto.

“Qual é o limite do humor?”, alguns debocham, querendo saber.

No fundo, eles sabem, sim. É o ponto em que o outro se sente ofendido, e não deveria ser tão complicado entender isso. 

Pode parecer que é legal ser tosco, sem filtro, só de brincadeira, mas os nossos atos têm consequências e nós precisamos ser responsáveis com o que dizemos e com o que queremos representar.

Estou disposto a assumir minha responsabilidade, de cuidar para que o ambiente da comunidade gamer não se torne tão tóxico. O mundo está em movimento, e temos de nos movimentar com ele.

Não, pessoal, eu não sou o dono da internet, mas sinto que podemos fazer dela um lugar melhor, com respeito ao próximo e com lealdade. Isso vai dos atletas profissionais a quem está começando a jogar.

Nos últimos dois anos, senti que minha posição de streamer me deu voz para não falar apenas dos e-sports, mas de outras questões que nos fizeram ficar mais unidos, como uma tribo de verdade.

Gaules entrevista The Players' Tribune
Pedro Bodick/The Players' Tribune

Como num clique — que nem daquela vez que descobri o CS —, entendi melhor o porquê, no passado, das pessoas decidirem fazer parte de uma tribo, com valores e ideais em comum, porque pertencer fazia sentido. 

Vivemos numa época em que existir parece não fazer sentido algum. Pandemia. Guerra. Violência. Incerteza. Desconexão. 

Nesse cenário, não é difícil entender por que a nossa Tribo é tão forte. Assim como os povos gauleses já foram sinônimo de resistência, nós nos fortalecemos aqui, não deixando ninguém para trás. A Tribo cuida da Tribo, lembra?

Na real, já passei por tanta coisa, que estou pronto para o que der e vier.

Já chorei.

Já ganhei.

Já perdi.

Mas te garanto, jogador, eu não tenho medo. 

Quer saber por quê?

Porque quando lembro de tudo o que passei e vejo onde estou agora, uma força me faz querer levantar todos os dias e seguir adiante. 

Todos. Os. Dias. 

É a Tribo, cara. Quando uma galera como a nossa está junto, não tem como ninguém se sentir sozinho.

E aqui não é só o Gaules falando. Mas o Alexandre, que, no fundo, é mais um que tá junto com vocês. Correndo com vocês.

autografo gaules

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