O Rádio

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Quando você está buscando um sonho, há vários caminhos possíveis. Acredite em mim, eu sei do que eu estou falando. Quando eu era criança, tudo o que eu mais queria era jogar no Atlético. Se eu conseguisse uma chance, o próximo passo seria me profissionalizar para transformar a realidade da minha família. 

Mas eu nunca fui um daqueles craques que tinham a certeza que dariam certo, sabe?

Aos 19 anos, eu mal jogava futebol.

Então o que eu estava fazendo da minha vida?

Na verdade, eu trabalhava em uma fábrica de doces.

Não estou brincando. Essa era a minha realidade. Alguns jogadores já estão representando a Seleção Brasileira nessa idade, né? Só que eu era operário de fábrica em Lagoa da Prata. Ela ainda existe, o nome é Embaré, onde eu trabalhei por dois anos e meio, até 1996. O único time pelo qual eu jogava na época era o dos operários...

Eu sei o que você está pensando. Como alguém pode ir do futebol de fábrica a ser campeão da Copa do Mundo em seis anos? 

Eu sei, parece mentira, né? Mas acredite em mim, é uma baita história.

Então deixa eu te contar como tudo aconteceu.

Nunca vou me esquecer do dia que eu comecei a pensar o que seria do meu futuro profissional. Eu tinha sete anos.

Você vai entender o porquê dessa preocupação precoce. Cresci na Vila Luciânia, um lugar bem pequeno, de trabalhadores rurais, que nem existe mais no mapa. O meu pai era cortador de cana. Uma vez ele me chamou para ir ao trabalho no dia mais importante para ele e os colegas, no fim da colheita.

Deveria ser um dia feliz — e era mesmo para muitos dos trabalhadores. Eu estava lá porque sempre sobrava uma farofa e um refrigerante para mim. 

Pelo menos dava para filar a boia.

Para um moleque varado de fome como eu, era um banquete cinco estrelas. 

Mas eu ainda consigo me lembrar da cena forte que foi ver o meu pai trabalhando.

Ele estava debaixo de um sol escaldante, suando demais. Aquela imagem mexeu muito comigo, sabe?

E eu decidi que eu não queria vê-lo mais ali. Não era a vida que ele merecia.

Eu também não queria isso para o meu futuro.

Veja bem, eu sou o único homem e o mais velho entre quatro irmãos. Naquela época, essa condição trazia responsabilidades. O caminho natural era eu ter de liderar a família em algum momento. E se eu continuasse naquela vila, adivinha o que seria do meu futuro? Também acabaria cozinhando debaixo do sol para cortar cana.

Eu conseguia imaginar isso mesmo tão jovem. Era como se o meu futuro estivesse acontecendo na minha mente. E eu sabia que só uma pessoa poderia mudar aquilo: eu.

Mas como? Onde? Eu só conhecia a minha vila.

Cortesia de Gilberto Silva

Uma das poucas conexões que eu tinha com o "mundo externo" era por meio do rádio. Naquele tempo, o meu pai já era fanático pelo Atlético, e eu passei muitas horas da minha infância ouvindo os jogos do Galo com o meu tio, irmão do meu pai. Às vezes o sinal era tão ruim que eu tinha de ficar com a orelha colada no rádio para conseguir ouvir um tiquim da partida. 

Toninho Cerezo, João Leite, Nelinho, Reinaldo ...

Uau!

Esses nomes formaram o meu imaginário como atleticano.

Cara, eu morria de vontade de um dia poder ir ao Mineirão ver um jogo do Galo. 

A Massa. 

O Cerezo. 

CE-RE-ZO!

O meu grande ídolo.

Esses caras pareciam super-heróis para mim. Imagina jogar como eles? Imagina ser como eles?

Claro, parecia impossível. Era como se eles jogassem em outro planeta. A minha versão do Mineirão era um campo de terra. Eu jogava bola com os meus amigos perto da linha do trem. Ali, cada criança levava pá ou enxada e montávamos o nosso próprio campinho. De plástico, pano, meia ou tudo isso num trem só, bola não faltava.

O curioso é que um amigo meu, o Juquinha, insistia. "Cara, um dia você vai jogar no Atlético".

A minha realidade não permitia acreditar. "Você está doido! Moro nessa vila minúscula, o máximo que eu tenho é uma bicicleta velha lá em casa e eu vou sair daqui para jogar no Atlético? Você é doido, é?".

A minha versão do Mineirão era um campo de terra. Eu jogava bola com os meus amigos perto da linha do trem.

Gilberto Silva

O mundo do futebol era algo muito distante para mim. Eu só queria tirar boas notas na escola, me formar e arranjar um emprego.

O meu sonho possível era me tornar um torneiro mecânico.

Mas a minha família e eu passamos por um momento assustador. Em 1989, o meu pai e os demais trabalhadores da região foram forçados a fazer greve, e a grande maioria perdeu o emprego. Por conta disso, nós nos mudamos para Lagoa da Prata, cidade vizinha onde eu nasci. Lá eu tive mais oportunidades no futebol. Com o passar dos anos, comecei a me destacar nos torneios amadores.

Aos 15 anos eu saí do interior de Minas Gerais pela primeira vez na vida.

Fui fazer um teste no Atlético.

No caminho, eu senti como se estivesse indo em direção ao meu sonho. Era tudo novo. Os meus olhos saltaram com a grandeza de BH. Éramos centenas de garotos na Vila Olímpica, um lugar gigante.

Passei na primeira peneira.

E na seguinte.

Fiquei até o último dia de avaliações.

Então veio o choque de realidade: acabei dispensado.  

Cara, foi um soco no estômago. Ou pelo menos deveria ter sido. Sendo honesto, eu não tive muito tempo para remoer a frustração, porque logo fui aprovado na base do América.

Óbvio que jogar pelo Galo teria um gosto muito especial, mas eu estava muito grato ao América. De repente eu me vi com chances reais de ter uma carreira no futebol. A minha família ficou muito orgulhosa de mim. Finalmente eu poderia ajudar as pessoas que eu mais amava.

Nada mais de colheita.

Nada mais de trabalho no sol pelando.

Passei a morar no alojamento do América em Contagem e ainda recebia uma ajuda de custo. Nada mal para quem só tinha uma bicicleta velha… 

Com o tempo, porém, a euforia deu lugar à saudade de casa. Eu estava morando a quatro horas de ônibus de distância, não conseguia visitar a família, e o meu pai não tinha condições de pagar a passagem.

A saúde da minha mãe piorou consideravelmente, e a morte da minha última avó, a mãe do meu pai, foi a gota d'água. 

Uma preocupação martelava na minha cabeça. "Se eu não retornar para ajudar a minha família e algo ruim acontecer, não vou me perdoar".

Cortesia de Gilberto Silva

Em cinco meses eu estava de volta à vila. Voltei à estaca zero.

Só que eu tinha que ajudar a colocar comida na mesa de  casa, né? Por isso, comecei a trabalhar na fábrica.

Depois de mais dois anos de trabalho repetitivo, senti que eu queria mais uma chance no futebol. Eu precisava dar certo no América. Eles não haviam me dispensado, eu que tinha resolvido sair, né?

Além disso, me prometeram uma promoção na fábrica que nunca chegou, o que também me empurrou para a porta de saída.

E lá estava eu tentando a sorte no América outra vez. A empolgação era enorme. 

Eu tinha 19 anos. Eu sabia que era a minha última oportunidade.

Quatro meses depois, eu já tinha sido promovido ao elenco profissional do América.

Cara, foi a realização de um sonho. No fundo, eu mal conseguia acreditar.

Mas no meu tempo de América eu vivi um pesadelo que quase me fez abandonar de vez o futebol.

Quase no fim do meu contrato com o clube, o Cruzeiro tentou me comprar. Eles tinham um baita time e eram vice-campeões brasileiros. Além da condição de brigar por grandes títulos, eles me ofereceram, por meio do meu empresário, um salário que mudaria a minha vida.

Pensando nisso, assinei um pré-contrato com o Cruzeiro.

A história vazou na imprensa, o América ficou sabendo, e a minha vida virou um inferno. Criaram um tumulto danado, e eu me assustei com tanta informação.

Voltei para a casa do meu pai e me escondi no interior. "Não jogo bola nunca mais, não foi isso que eu sonhei para a minha vida. Quero paz".

Foi um período realmente muito tenso. Depois de alguns dias a poeira baixou, e eu fui me reunir com o presidente do América, Marcus Salum, na sede do clube. Quando eu entrei na sala da presidência, levei um susto quando vi o Alexandre Kalil, então diretor do Atlético. Soube naquele momento que os clubes vinham negociando a minha transferência.

Naquele dia eu passei por um dos momentos mais aterrorizantes. O Kalil começou a dizer o que poderia acontecer se eu não assinasse com o Atlético.

Hahahahaha.

Ao estilo Kalil, né?

Lembrando disso hoje parece engraçado, até porque eu não precisava ter um motivo para escolher o Galo. O Cruzeiro estava com um ótimo time, mas o Atlético era a paixão da minha vida. De qualquer jeito, eu fechei com eles em 2000.

E chegou a hora de eu revelar um segredo. 

Toda vez que jogávamos no Mineirão, eu seguia um ritual. 

Na chegada ao estádio já dava para ver aquele mar alvinegro. No vestiário antigo do Mineirão, antes da reforma, a atmosfera era impressionante, porque tinha o fosso ao lado e os torcedores passavam por ali a caminho das arquibancadas.

Então, eu abria a janela basculante para ouvir as músicas da torcida do Galo e espiar a Massa. 

A emoção tomava conta de mim. 

Um detalhe importante: a janela que eu abria era a do vestiário do América. 

Esse era o meu ritual quando eu jogava contra o Atlético.

Então dá para imaginar o que eu senti quando eu passei a jogar pelo Atlético, né? Quando o Mineirão virou a minha casa?

Eu ainda consigo ouvir o coro vindo das arquibancadas lotadas:

Nós somos do Clube Atlético Mineiro

Jogamos com muita raça e amor

Vibramos com alegria nas vitórias

Clube Atlético Mineiro Galo Forte Vingador.

Vencer, Vencer, Vencer

Este é o nosso ideal

Honramos o nome de Minas

No cenário esportivo mundial

Lutar, Lutar, Lutar

Pelos gramados do mundo pra vencer

Clube Atlético Mineiro

Uma vez até morrer

Cara, eu me arrepio de novo só de pensar.

A única maneira para descrever isso é dizer que foi um sonho realizado não só para mim, mas para a minha família, de imensa maioria atleticana.

Aqueles dois anos e meio defendendo o Galo foram dos mais felizes da minha vida.

Então dá para imaginar o que eu senti quando eu passei a jogar pelo Atlético, né? Quando o Mineirão virou a minha casa?

Gilberto Silva

E um outro sonho, ainda maior, se aproximava.

Olha, eu nunca imaginei que um dia eu sobrevoaria Brasília escoltado por cinco caças Mirage da Força Aérea Brasileira. Mas eu também jamais acreditei que seria campeão da Copa do Mundo. 

O primeiro Mundial que lembro como torcedor é o de 1986. A TV era novidade lá em casa, mas a imagem da nossa ainda era em preto e branco. Não dava para identificar as cores dos uniformes e eu nem sabia onde ficava o México, só que quando eu ouvia "LÁ VEM O BRASIL COM A BOLA", sentia muita emoção, e o coração pulsava diferente. 

Se alguém me dissesse que 16 anos depois eu seria campeão do mundo e chegaria de volta ao meu país acompanhado de jatos, eu perguntaria se a pessoa era amiga do Juquinha. 

Como a Copa de 2002 foi no Japão e na Coreia do Sul, numa era sem smartphone, não tínhamos a dimensão exata do impacto das nossas vitórias no povo brasileiro. O Felipão aproveitou muito bem esse fator a favor da seleção. Antes da final contra a Alemanha, ele passou um vídeo de uma aldeia de indígenas toda reunida em uma oca assistindo aos jogos e comemorando os nossos gols.

Foi de arrepiar!

Cara, pare um pouco e se imagine no nosso lugar. Há 50 dias longe do seu país, do outro lado do mundo, com muita saudades da família e dos amigos, a poucas horas de decidir um título mundial… E ver aquelas imagens?!

Saímos para o estádio com a certeza de que a nossa bagagem de volta tinha acabado de ganhar um pouco mais de peso: a taça do Penta! 

Depois do apito final, todo mundo correu eufórico para onde o nariz apontava. 

Carrego comigo até hoje um momento muito marcante.

Ainda dentro do campo, uma câmera se aproximou para me filmar.

Eu estava muito emocionado, pensando na comemoração dos meus familiares no Brasil. 

"Mãe, estou voltando! E com a medalha de CAMPEÃO DO MUNDO!". 

Mark Leech/Getty Images

A festa varou a noite no Japão, e o voo não ficou atrás.

Para ser sincero, a ficha só caiu quando vi os caças do nosso lado no céu na chegada a Brasília.

Naquele momento eu senti muito orgulho de ser brasileiro. Antes daquela Copa eu tinha ouvido falar em patriotismo. Com aquele grupo, eu vivi a experiência de representar o Brasil diante do mundo inteiro.

E ao lados dos meus ídolos, né?

Ronaldo, Rivaldo, Cafu, Ronaldinho, Dida, Marcos, Roque Júnior, Edmilson… 

SURREAL!

Quando pousamos em Brasília, eu esqueci o que era cansaço. Subimos no trio elétrico da Ivete Sangalo e…

MEU DEUS!

Eu nunca tinha visto tanta gente na minha vida! Tomei um susto!

Eram 500 mil pessoas nas ruas para receber a SELEÇÃO BRASILEIRA PENTACAMPEÃ DO MUNDO. Tinha gente em cima de árvore, de placa de trânsito, pendurada em viaduto... 

Ali finalmente entendi que eu era parte do sonho de um país.

Na minha volta para Minas, fiz questão de passar pela fábrica, e os funcionários fizeram de tudo para me ver. Foram de bicicleta, caminhão, cavalo, carroça… 

Mas uma das homenagens mais emocionantes aconteceu em BH. O Atlético Mineiro mandou um caminhão do Corpo de Bombeiros me buscar no aeroporto! Ricardo Guimarães, então presidente do clube, teve um belo gesto de me recepcionar. 

Fiz questão de passar pela fábrica, e os funcionários fizeram de tudo para me ver. Foram de bicicleta, caminhão, cavalo, carroça…

Gilberto Silva

Só que ainda tinha uma surpresa. 

Quando eu entrei no centro de treinamento, os funcionários do Galo tinham preparado uma faixa especial para mim, cara. 

Na hora que eu estacionei o carro, vi a faixa gigante com o meu nome na porta do vestiário.

Não sei se consigo colocar no papel o significado daquele presente, mas vou tentar. 

Claro que os títulos eternizam ídolos e motivam os torcedores, mas o futebol vai muito além disso. É sobre quem você encontra pelo caminho. E no Atlético eu conheci pessoas sensacionais.

Se a Massa atleticana empurra o time em campo, essas pessoas que quase não aparecem para o público são parte fundamental da identidade do Galo Forte e Vingador.  

O roupeiro, o massagista, o segurança, a cozinheira, o jardineiro, o auxiliar de limpeza… 

A cada vez que entrava no Mineirão, eles jogavam juntos. Sem o trabalho "invisível" por trás das câmeras, eu não estaria pronto para dar um carrinho e levantar a Massa em um clássico. Eu não acertaria um passe decisivo para gol. Eu não salvaria uma bola em cima da linha. 

Estou falando de pessoas como o saudoso Seu Walter, roupeiro.

Bel e Du, massagistas. 

E muitos outros.

Eles talvez não sejam tão famosos quanto Toninho Cerezo, Paulo Isidoro e Reinaldo, mas eles têm merecidamente um lugar na história do Atlético. 

Levo para a minha vida muitos ensinamentos que tive com eles e os demais funcionários do clube. Do fundo do coração, digo a todos vocês: muito obrigado!

Bruno Cantini

Dá para imaginar como foi difícil sair do Atlético naquele ano, né? Eu embarquei em uma jornada de nove anos no futebol europeu, a maior parte do tempo no Arsenal. Que época incrível!

Highbury.

Os Invincibles.

Os 49 jogos invictos.

Então veio o título grego com o Panathinaikos.

Depois, o Grêmio. E o retorno ao Galo em 2013.

Cara, os meus olhos se enchem de lágrimas só de lembrar o capítulo final.

Quero colocar todas as cartas na mesa nesse momento. Existe um processo na justiça entre mim e o Atlético devido a uma lesão que sofri no joelho contra o Cruzeiro que antecipou a minha aposentadoria, pois não consegui me recuperar até os dias de hoje. Mas nada disso tirou o sentimento que existe de minha parte pelo clube, mesmo depois de tantas críticas desrespeitosas que sofri ao longo desses últimos anos. Independentemente das desavenças, sou eternamente grato ao Galo pela importância em minha vida e da minha família, e nada apaga o meu amor e gratidão a esse clube.

Ainda me lembro quando o Atlético quis me recontratar do Grêmio. Falei com a minha esposa Janaina, e a resposta dela não poderia ter sido melhor. "Escute o seu coração".

O meu amor e a minha gratidão ao clube são eternos.

Gilberto Silva

Nos dias que tirei para pensar, a minha memória me levou em uma viagem no tempo. 

O meu pai cortando cana.

A minha família atleticana.

Os jogos no radinho de pilha do meu tio. 

O Juquinha. 

CE-RE-ZO!

Eu avisei a Janaina. "Vamos fazer as malas porque voltaremos a BH!"

"E seremos campeões da América".

E o que dizer do que veio depois? Bom, você provavelmente sabe o que aconteceu. O mata-mata dramático (afinal, esse é o Galo), a grande decisão com derrota no Paraguai e os pênaltis na volta: Atlético campeão da América!

A minha família foi à loucura.

O Mineirão explodiu de alegria.

Ao redor do Brasil e do mundo, a nossa torcida comemorou demais assistindo pela TV.

E em algum lugar em Lagoa da Prata, eu torço para que pelo menos um menino tenha corrido com os braços abertos e rodando a camisa do Galo, depois de ter ouvido o jogo pelo rádio.

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