Joga a Bola no Meu Pé

Vinícius Marmo/Divulgação

Sou a mais nova de uma família de outros três homens. Para integrar todos os irmãos, e para me integrar nesse universo de meninos, meu pai achou uma saída simples: o esporte.

A ideia do meu pai era manter os filhos unidos, e o esporte une muito. Menino ou menina, ele tratava da mesma maneira: vamos brincar todo mundo junto.

Primeiro, veio o futebol, ainda bem pequena. Mais tarde, naturalmente, eu acabei seguindo minha carreira no esporte, mas jogando com as mãos. Virei tenista. Sério, por um bom tempo, o tênis foi o meu esporte número 1. Só vários anos depois me reconectei com a habilidade que também desenvolvi nos pés desde criança. E renasci para uma nova profissão como jogadora de futevôlei e, mais tarde, de teqball, o futebol de mesa. 

Tem gente que ainda diz que futebol não é pra mulher, mas, a minha vida inteira, eu aprendi o contrário: jogar bola é pra todo mundo, independentemente de ser homem ou mulher. 



Parece que o esporte sempre foi meu propósito. 

No condomínio onde eu morava, no Rio de Janeiro, tinha quadra de futebol e de tênis. E eu passei minha infância toda jogando esses dois esportes com meus irmãos e meu pai.

Em determinado momento, tive que fazer uma escolha. 

Me dedicar de verdade ao futebol ou ao tênis? 

Quis ir para a Escolinha do Zico, mas era muito longe de casa. Por isso, acabei indo para o tênis — o Marina Barra Clube era pertinho. Eu amava os dois, mas fiquei no tênis pela comodidade. 

Comecei disputando campeonatos amadores e juvenis, dos 12 aos 15 anos. Aos 16 decidi entrar no tênis profissional. Não existiam grandes centros de treinamento aqui no Brasil, e nessa mesma época estavam em alta o Guillermo Coria, o Gastón Gaudio, o David Nalbandian, todos tenistas argentinos. Como sou filha de argentinos, resolvi mudar de país para tentar jogar tênis profissionalmente. 

Embora eu tivesse minha avó e tias lá, fiquei morando sozinha na Argentina até os 20 anos. No começo, em uma pensão estudantil. Mais tarde, meu pai alugou um apartamento. Viajei pelo mundo jogando tênis, mas tive uma lesão grave na tíbia e, com a cabeça meio abalada, acabei parando. Quando deixei o esporte, estava entre as 400 melhores do mundo no ranking de duplas e entre as 450 no individual.

Não foi uma decisão fácil. Eu era jovem e tinha potencial para evoluir como tenista. Mas isso acabou abrindo as portas para que eu retomasse um antigo plano: o futebol.



Um ano antes de parar de jogar tênis, vim para o Brasil de férias. Meu irmão falou que queria me apresentar um esporte que tinha certeza que eu gostaria. Fomos para a praia jogar e, chegando lá, eu vi o mar, aquele solzão, a bola e uma rede estendida na areia. “É vôlei?”, eu perguntei. “Melhor”, respondeu meu irmão, “é futevôlei, a gente joga com os pés”. Amei, né? Depois de alguns anos vivendo só de treinar e competir na Argentina, bater uma bolinha na praia era um luxo pra mim.

Percebi que o talento com os pés que adquiri na infância permanecia intacto, apesar de ter ficado adormecido durante praticamente toda minha adolescência e a fase como tenista. 

Fiquei com isso na cabeça ao voltar para a Argentina, e toda vez que vinha pro Brasil eu queria futevôlei. Quando parei de jogar tênis mesmo, tive tempo de praticar futevôlei com mais frequência. Fui treinar perto de casa, não para competir, mas para aprender mais. Aquele esporte se transformou em um vício bom. Ao mesmo tempo, comecei a estudar administração — depois, fiz uma pós em marketing esportivo.

Ao longo desse período de estudos, eu disputei campeonatos amadores pelo Brasil, para pegar experiência. Porém, ao contrário do tênis, o futevôlei não era o foco da minha vida. Foi somente aos 30 anos que decidi dar uma segunda chance ao esporte. Entendi que, por mais que eu tentasse me desviar ou seguir outro caminho, não havia como escapar daquele propósito. E veio o estalo de que eu realmente poderia viver disso.

Natalia Guitler futvolei praia
Divulgação

Criei uma conta no Instagram e passei a estudar tudo quanto era maneira de mostrar minha rotina de treinos nas redes, de me capacitar e produzir conteúdos sobre a modalidade. O futevôlei não era tão popular na época, e eu tinha o objetivo de ajudar a desenvolver o esporte fazendo clínicas pelo Brasil.

As redes sociais começaram a crescer muito. Eu treinava de dia e, à noite, estudava cada vez mais sobre como me comunicar, mostrar coisas legais. Dedicação full time ao esporte. Além dos treinos na quadra, eu malhava, cuidava da alimentação, tudo o que um atleta faz, mas já não era a menina cheia de disposição que rodava o mundo jogando tênis. É como se, aos 30 anos, eu tivesse que desbravar um universo novo com a energia dos 20. 

Eu mergulhei de cabeça, e tudo aconteceu muito rápido nos últimos cinco anos. 

Quando me transformei em uma jogadora de futevôlei profissional, conheci o teqball — e quem me apresentou foi o Ronaldinho Gaúcho, veja só. Ele é embaixador mundial do esporte, e eu fiz um vídeo brincando na mesa da casa dele na primeira vez que joguei, em 2018. O presidente da Federação Francesa assistiu e falou: “Você vai jogar muito bem esse esporte. Quer ir para o Campeonato Mundial?”. 

Campeonato? 

Mundial? 

Na França? 

Bora! 

Aceitei o convite. Só que eu não sabia nada do esporte haha.

Natalia Guitler Ronaldinho Teqball
Divulgação

Foi tudo muito louco, porque entraram dois esportes quase ao mesmo tempo na minha vida. Na pandemia, o futevôlei e o teqball cresceram demais, por ser ao ar livre, não precisar de tanta gente e fazer bem às pessoas.

Apesar desse crescimento, tenho que dizer a verdade. Até hoje eu não consigo viver como atleta profissional do esporte. É triste falar isso, mas estaria mentindo se dissesse o contrário. O teqball até me dá uma condição um pouco melhor, porque as premiações são mais altas. Se quisesse viver só do futevôlei, eu não conseguiria. As premiações ainda são muito baixas. A não ser que tivesse campeonato todo fim de semana, eu participasse de tudo e ganhasse pelo menos dois por mês. 

Enfim, impossível.

No masculino pagam mais — o que é uma questão, falta melhorar isso para o esporte avançar como um todo. Por mais que eu me dedique de corpo e alma a duas modalidades, eu ainda dependo mais das minhas redes sociais que dos ganhos como atleta.

Preciso treinar bastante para conseguir conciliar esportes tão distintos um do outro. Não é porque tem bola que é tudo igual.

Futebol é totalmente diferente de futevôlei e teqball. Sinceramente, acho que teqball é ainda mais difícil do que futevôlei, porque envolve uma técnica de mais precisão, tem que acertar a mesa rápido. 

Quem joga futebol não necessariamente joga futevôlei ou teqball. Inclusive, tem gente que não joga futebol, chega com menos vícios e, por isso mesmo, acaba praticando melhor meus dois esportes.

Futebol é totalmente diferente de futevôlei e teqball.

Natalia Guitler

São modalidades que exigem habilidades diferentes. E não tem outro segredo a não ser treino. Tem que virar a chave e entrar pra treinar pensando: agora é teqball ou agora é futevôlei

Como já tenho jeito nos dois, para mim se torna um pouco mais fácil, mas quem vai começar e quer jogar ambos os esportes tem que treinar três vezes mais. Não é fácil manter futevôlei e teqball no nível que eles exigem.

Natalia Guitler campea futevolei
Divulgação

Para o meu primeiro Mundial de teqball, eu treinei muito pouco. Ao lado do meu parceiro Marcos Vieira, mal sabia as regras quando cheguei lá. Não havia duplas mistas ou femininas nesse campeonato: era tudo homem. Só estávamos eu e mais duas mulheres de outros países. Marcos e eu fomos à França pra ver no que dava — e ficamos em quarto lugar no mundo, com 50 países competindo!

O teqball é originalmente húngaro, e em 2019, o segundo Mundial que participei, foi justamente na Hungria. Ficamos torcendo para ter duplas mistas, porque aí o jogo seria mais justo. E realmente abriram essa divisão. Chegamos como a dupla favorita. Apesar dos húngaros serem muito fortes, fomos os vencedores do torneio misto.

Me tornei a primeira mulher campeã mundial dessa categoria no teqball. E desde então percebi que, além do futevôlei, eu teria mais um esporte para amar.



Conheci o Marcelo “Twelve” em 2017. Ele é um dos caras mais habilidosos com quem já joguei futevôlei, um querido, supersimpático. E comentei com ele: “Sou muito fã do Neymar, fala de mim pra ele algum dia”. Não sei se ele comentou algo mesmo, mas logo depois o Neymar respondeu um comentário meu no Instagram. Meus canais estavam começando a crescer e eu mandei um direct pra ele: “Não queria atrapalhar, mas se der pra mandar um vídeo, sou muito fã do seu futebol, ia adorar. Seria bem legal pro meu trabalho”. 

E não é que o Neymar mandou mesmo um vídeo? “Parabéns, você joga muito, também admiro o seu trabalho!”. Fofíssimo! Depois desse vídeo, ele viu realmente o que eu fazia e me falou: “Quando terminar a Copa, vamos jogar juntos”. Eu respondi que era só ele chamar. Assim que a Copa de 2018 acabou, ele foi de férias pra Mangaratiba e me mandou uma mensagem no dia seguinte chamando para um jogo. Chamando, não. Convocando! Eu falei: “Agora!”.

Fui sozinha e nós dois jogamos juntos, contra todos os amigos dele — e ganhamos de todos. Um dia inesquecível. Postei até uma foto nossa e saiu em vários jornais: “Campeã mundial de futevôlei joga com Neymar”. Me senti acolhida e, principalmente, respeitada como atleta, porque ele abriu as portas da casa dele pra eu jogar, valorizando o meu trabalho, sendo humilde e carinhoso. Hoje, que conheço muito bem o Ney, posso falar com toda propriedade: ele é assim. Sou ainda mais fã dele, da família dele, da pessoa que ele é. E agradeço por ele ter reconhecido que eu jogo tão bem ou melhor que muitos caras.

Jogar com ele é sempre um momento único. Neymar é muito habilidoso, muito rápido e competitivo, fica bravo quando perde, mas também sabe a hora de dar uma zoada e levar na esportiva. Um cara do bem, sabe? Se ele treinasse, viraria jogador de futevôlei, fácil. Ele só não tem mais jogo porque não tem a prática, não joga sempre — e mesmo assim, na base da alegria e ousadia, manda bem demais.

Futmesa ele não jogava nunca. Quando disputamos uma partida pela primeira vez, eu já era profissional, e ele só jogava na regra dele. “Minha mesa, minhas regras”, ele diz hahah… Todo mundo me pergunta quem ganhou aquele jogo. Foi mal, Ney, mas vou dizer: 15 a 13 pra mim. Jogão, hein!!

Neymar Natalia Guitler futevolei
Cortesia de Natalia Guitler

Ele deu o troco logo depois e ganhou de mim no futeredinha. Fez até dancinha, ficou me zoando (vai ter volta, viu?), mas é uma rivalidade sadia. Sinto que existe uma admiração recíproca. Ele quer ganhar de mim e eu quero ganhar dele, porque um respeita o trabalho do outro.

Admiro a forma como ele dá um jeito de colocar o esporte em cada atividade que faz, até mesmo durante as folgas. Tudo é treino, tudo envolve bola. Nessas horas a gente vê que, por mais craque que seja, ele nunca deixa de pensar no futebol.

Ser amiga de caras como o Ney e o Marcelo é um privilégio. Não só por conviver e jogar com eles, mas por ter tido a oportunidade de descobrir as grandes pessoas que eles são.



Sofri muito preconceito no primeiro campeonato de teqball que participei. Os europeus não aceitaram bem a ideia de ter mulheres ali no meio. Na época, eu já devia ter uns 100 mil seguidores. Não era tão conhecida assim, mas tinha um certo status e sabiam que eu jogava. Só que isso não fez diferença alguma. Cheguei na Europa tipo: Quem é essa pessoa? Não vai chegar a lugar nenhum, é mulher

Só consegui o respeito dos europeus depois que a gente chegou na disputa de terceiro e quarto lugar. Aí, sim, eles passaram a me ver com outros olhos. No fim do campeonato, era só alegria, todo mundo falando comigo. 

Natalia Guitler The Players Tribune futvolei
Francisco Distasio/Divulgação

Vivo num meio muito masculinizado ainda, e ter o respeito de jogadores que são referências, da Seleção Brasileira de futebol, é uma das minhas maiores conquistas. Mas a maior conquista mesmo é não só ser reconhecida pelos homens, mas ser reconhecida pelo que eu faço. Acima de qualquer coisa, de seguidor, de dinheiro, do que for, reconhecimento é tudo para mim. E não falo de reconhecimento no sentido de: “Você é a melhor”. Não. É no sentido de um pai chegar com uma criança pra tirar foto e dizer: “Quero que minha filha jogue igual a você”. 

A maior parte do meu público é masculino e várias vezes já me disseram na praia: “Você é aquela menina do Instagram? Pô, você joga bem mesmo, hein?”. Eu acho que isso quebra uma barreira e ajuda as mulheres a ganharem mais espaço. Eu, como outras jogadoras, recebo mensagens dizendo que, graças a nós, a menina hoje consegue ser respeitada por meninos quando entra numa escolinha ou quando vai jogar com eles. Abrir portas para outras mulheres poderem fazer o mesmo é incrível. É um prazer contribuir para quebrar tabus e ajudar de alguma maneira o esporte feminino a ser visto de outra forma.



Sabe aquela coisa que você nunca imaginou que fosse acontecer em sua vida? Foi assim para mim quando virei personagem de videogame. Nem nos meus melhores sonhos eu poderia pensar que um dia estaria no FIFA. 

Ganhei um campeonato do modo Volta da vida real em 2019 com o Falcão, em Londres. O pessoal da EA Sports quis levar isso pro jogo e fez o convite. Nem precisei pensar pra responder. Ter a minha imagem no FIFA, com o mundo inteiro vendo e tendo a opção de poder me selecionar, foi surreal. A palavra é essa: surreal.

Recebi muitas mensagens de pessoas falando que estavam jogando comigo. “Você joga demais.” “Você tá rápida.” “Tá chutando muito bem.” Esses comentários sobre a Natalia do videogame representam um momento muito lindo da minha vida.

Meu objetivo é disputar uma Olimpíada. Se isso acontecer, não há desfecho melhor para essa história do esporte na minha vida.

Natalia Guitler

Hoje já disputo campeonatos femininos de teqball, algo impensável quando comecei. No futevôlei, eu e minha parceira Vanessa nos tornamos campeãs mundiais em Israel (segura as barbas!!!). Subimos no lugar mais alto de um pódio inteiro do Brasil, mesmo enfrentando atletas de todo o mundo na competição. 

Agora, meu objetivo é disputar uma Olimpíada. Talvez o teqball se transforme em esporte olímpico. Se isso acontecer, não há desfecho melhor para essa história do esporte na minha vida. Comecei tarde no que faço hoje, há cinco anos. Era “velha”, digamos assim. No tênis as atletas costumam parar por volta dos 30, e eu comecei outras duas modalidades com essa idade. Então, estou aproveitando todo instante que posso. 

Natalia Guitler teqball
Divulgação

Me vejo jogando por mais dois ou três anos em alta performance, porque treino muito e não me dou por satisfeita. Sinto que ainda não cheguei ao topo. Tenho muito que melhorar e evoluir. Mas, enquanto eu tiver saúde e puder continuar correndo atrás de mais conquistas, estou feliz.

Acredito que Deus tem um propósito para cada um de nós. E devemos seguir nessa busca com fé e perseverança. Para tudo existe um plano. Nunca deixe que as pessoas coloquem limites nos seus sonhos.

Se você tiver que sair cedo de casa para realizá-los, segue o teu caminho.

Se você precisar mudar a direção ou recalcular a rota, segue o teu coração.

Se você finalmente encontrou o teu propósito e não se imagina fazendo outra coisa, segue o plano.

E joga a bola no meu pé.

Natalia Guitler autografo

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