Escola da Arte

Sam Robles/The Players' Tribune
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Meu pai, Hélio Gracie, era bem franzino e pequeno. Não tinha muita força. Quando ele era criança, meu avô fazia negócios com um japonês, o Mitsuyo Maeda, conhecido como Conde Koma, que era lutador. E ele ensinou a arte do jiu-jitsu para meus tios Carlos, Gastão, Oswaldo e George. Meu pai queria fazer também, mas ninguém deixava porque falavam que aquilo não era pra ele. 

Ele ficava sentadinho vendo as aulas, sem participar. Acontece que ele aprendeu só de olhar.

Mais tarde, meus tios começaram a dar aula de jiu-jitsu e abriram uma academia. Um dia, meu tio Carlos estava atrasado para uma aula. Meu pai ofereceu pro aluno: “Olha, não sou professor, mas eu posso rever os movimentos”. E deu a aula. 

O aluno, que era um presidente de banco, gostou muito. Meu pai não inventou os movimentos dessa aula que ele deu. Ele só adaptou pra que uma pessoa com menos força pudesse fazer. Pra isso, ele memorizou os movimentos e botou alavanca neles. 

Ele não criou uma arte nova, apenas adaptou a que já existia. É como se uma pessoa segurasse um garfo de um jeito estranho, que dificulta que ela coma, e ele veio e mostrou uma outra forma de segurar, que facilita tudo. 

Quando meu tio chegou e sugeriu que o aluno fizesse uma reposição da aula, ele disse: “Obrigado, mas, daqui pra frente, eu gostaria de tomar aula com o Hélio Gracie”.

Meu pai lutou no Maracanã, cara. Imagina: botavam um ringuezinho no meio do campo, pessoal comprava ingresso e enchia o estádio pra assistir meu pai. A família Gracie lutava contra o pessoal do caratê, do judô, do Japão, do que fosse… Era um show, o UFC de 70 anos atrás. 

Fiquei chocado quando cheguei nos Estados Unidos, onde moro até hoje, e ninguém conhecia quem era o Hélio Gracie ou quem era a família Gracie. Meu irmão Rorion pensou, então, em montar um show para mostrar ao mundo inteiro a arte do jiu-jitsu. Ele deu a esse evento o nome de Ultimate Fighting Championship, o UFC.

Eles tinham que decidir quem ia lutar nesse show. Primos e irmãos meus tinham muito mais experiência, mas eles não queriam a escolha óbvia.

Me escolheram porque não sou um cara de competição. Sou uma pessoa comum. Ninguém nem me reconhece, por exemplo, no aeroporto, porque sou muito normal

Não sou enorme. 

Não sou superforte. 

Não sou cheio de músculos.

Sou… normal.

Royce Gracie UFC
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E essa era a ideia: se o Royce faz, qualquer um pode fazer. Só é preciso aprender e treinar. 

Meu pai não criou lutadores, não ensinou a família a brigar. Ele criou educadores, que é o que somos: nós ensinamos a arte da defesa pessoal. Eu hoje passo sete meses do ano viajando e ensinando a arte do meu pai. Meus primos, tios, irmãos, sobrinhos fazem a mesma coisa. 

Cresci escutando histórias de lutas dos meus familiares. É difícil escolher uma pessoa que mais me inspirou a lutar: é um conjunto, são todos eles combinados.

Todo mundo contando história… E eu também queria contar a minha. Como educador que sou, vou contar essa história do começo, repassando todas as etapas da melhor escola que a vida poderia me oferecer.



ENSINO INFANTIL

Minha primeira experiência com o jiu-jitsu não foi fazendo uma aula, mas frequentando a academia para brincar. Claro que o jiu-jitsu estava lá, mas não era pra isso que eu ia — e sim para me divertir. 

Aquele era o ambiente onde a minha família estava. Minha primeira memória da vida é dentro da academia com o Rorion, com o Carlson, com os meus primos…

Mesmo assim, durante muito tempo na minha vida, eu não fazia a menor ideia da dimensão que meu pai tinha. Os pais dos amigos falavam: “Eu vi seu pai lutar, conheço ele!”. Viu meu pai lutar? Como eu nunca vi isso? Pra mim, meu pai dava aula de jiu-jitsu numa academia de arte marcial.

Então, eu vi meu pai lutar. E fui me situando sobre a minha família, de onde eu venho. E, caramba, não é só meu pai: são meus irmãos, meus primos, meus tios. Comecei a perguntar pra um, pra outro. E era tudo verdade. Os caras fizeram aquilo tudo mesmo. 

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Não é que exista exatamente uma expectativa em cima do cara que nasceu um Gracie. A escolha é nossa de ser ou não lutador. Mas é preciso saber o jiu-jitsu, porque, em algum momento, vai chegar a pergunta: “Você, que é da família Gracie, luta?”. 

E como não lutar? 

“O mundo inteiro aprendeu jiu-jitsu com vocês e você não sabe?” 

Então é preciso saber o básico pelo menos. Não precisa seguir carreira, não precisa ensinar, não precisa abrir academia, mas tem que saber jiu-jitsu.

O nome tem um peso, que pode ser uma benção ou uma maldição. Se você não sabe jiu-jitsu, talvez seja a segunda opção.



ENSINO FUNDAMENTAL

Parecia que todo mundo conhecia o nome Gracie. O pessoal me respeitava, mas, com uns 14 anos, comecei a querer me testar. Todos os meus irmãos e primos já tinham lutado. Os alunos contavam que tinha vindo uma turma do Japão fazer um vale-tudo com meu pai e meus tios.  

Todo mundo rodado, experiente, menos eu. 

Já treinava desde pequeno, praticamente fui feito no tatame. Mas faltava saber o que eu podia, o que eu conseguia.

O jiu-jitsu é a espinha do negócio. É o que dá a liga. É a arte que conecta todos os estilos.

Royce Gracie

Um pouco maluco da minha parte, resolvi ir de bicicleta do Flamengo até o Arpoador, já com a intenção de alguém mexer comigo pra eu brigar. Era um palpite que isso aconteceria. Bem molecão, né? 

Cheguei na praia e aconteceu: um garoto segurou no meu guidão, um outro veio e me empurrou e um terceiro montou na bicicleta e foi embora. Eram quatro, e eles saíram rindo.

Eu, no chão, pensei: vim aqui pra isso e não vou ficar aqui. Fui atrás deles, e eles se juntaram em cima de mim. Um cara que passava começou a falar: “Para! Para!”. Ele separou a briga e os garotos saíram correndo. 

E eu corri atrás. Três atravessaram a rua, um parou pro carro passar, eu vim por trás e peguei ele de novo. Perdi a bicicleta, tomei uns socos, uns chutes, mas fui lá pra isso. Voltei feliz da vida que tive a experiência.

Minha primeira e única experiência brigando na rua. Eu nunca fui disso.

Na minha adolescência, o que mais me impressionava era a quantidade de nós na minha família. Meu tio teve 21 filhos, meu pai teve nove. Juntos, tiveram mais de 50 netos e 100 bisnetos. Os números são enormes.

Royce Gracie Players Tribune
Sam Robles/The Players' Tribune

Meus melhores amigos estavam dentro da família. No fim de semana, íamos viajar com uma porção de primo pra Teresópolis, Petrópolis. No Rio, a gente se encontrava na praia, aquele bando de primo. A gente treinava junto. 

Volta e meia alguém discordava, virava a cara, às vezes se pegava e depois ficava tudo certo, era amigo de novo. Tem que deixar resolver pra não ficar engasgado. Tá com problema? Vai lá e resolve, tem tatame na casa toda. 

Um dos maiores ensinamentos do meu pai foi: “Seja paciente e persistente”. Ele era assim, uma combinaçãozinha chata. 

Sou igualzinho.



ENSINO MÉDIO

Muita gente vinha dizer que os Gracie eram arrogantes porque queriam provar que seu estilo de luta é o melhor. Mas não era isso. A gente estava numa busca, que começou lá atrás com meus tios, com meu pai, de qual era o melhor estilo de luta. 

Quando o Rorion veio pros Estados Unidos, ele criou o UFC justamente pra botar à prova todos os estilos. Tanto que, no início, eram torneios de oito homens, três lutas em uma noite. Os que perdiam iam embora. Os que ganhavam lutavam de novo. Até sair o campeão. 

Meu pai e meu irmão Rorion me escolheram para lutar no primeiro UFC. Minha mãe foi contra porque eu era o que menos tinha lutado, não era de brigar na rua, tinha muito mais gente na família com mais experiência. “Meu Deus, o que você está fazendo com meu filho, Hélio?”, minha mãe perguntava. “Ele é o mais bonzinho!” 

(Hoje, ela me pede desculpas por ter sido contra.)

Mas eles me escolheram porque queriam provar pra todo mundo que você não precisa ser o brigão, não precisa ter orelha de couve-flor nem ser lutador de vale-tudo. Tanto que o meu pai pediu antes do primeiro UFC: “Não bata nos seus adversários, não tira sangue, tenta ganhar só com a técnica”.

Como é que se prepara? Você tem que saber o que está fazendo. 

Primeira coisa, se você não sabe nadar, vai fazer o quê na piscina? A segunda coisa: você tem que ter gás, não adianta você ter o carro mais rápido do mundo sem gasolina. A terceira é a força. E tem que ser nessa ordem.

Royce Gracie luta UFC
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Meu pai sempre falou: “Quem treina e faz o dever de casa, sabe o que tem de fazer na luta. Se sentir cansaço, saiba que o adversário está cansado também.” Na minha família, o jogo é igual pros dois. Aí entra o coração, entra a cabeça de quem tem mais disposição. 

No fim da luta, quase não celebrava. Celebrar o quê? Eu treinei pra ganhar. Não tem essa de “graças a Deus eu ganhei”. Graças a Deus que eu acordei, graças a Deus que nasci nesta família. 

Agora, acabei de ganhar a luta e vou fazer uma dança pra humilhar mais o adversário? Cara, você gostaria se fosse ao contrário? Meu pai era sempre contra esse tipo de celebração. Claro que ficava feliz, mas não vou fazer nada ali do lado do cara que venci. Talvez fora, quando eu voltar pro vestiário, sozinho, com meu time, aí a gente vai rir, vai brincar um com o outro, dançar, celebrar. 

No ringue, ganhei, mão pra cima, obrigado, pessoal. Vou abraçar meu time, meus técnicos, botar um sorriso na cara. Mas não preciso humilhar meu adversário, não tem necessidade.

Assim, eu venci os dois primeiros torneios e também o UFC 4.



RECUPERAÇÃO

O torneio do UFC 3 aconteceu na Carolina do Norte e contava com três lutas. Peguei o Kimo Leopoldo na primeira. Estava uma noite muito quente e usei a estratégia errada.

Ele era muito forte e pensei: vou trocar força com ele. Eu, com 80 e poucos quilos, trocando força com um cara de 114. Cansei. Mesmo exausto, eu ganhei. Tive 10 minutos só de intervalo até a próxima luta. Foi o tempo de eu ir pro vestiário, tirarem meu quimono, me jogarem numa ducha de água fria, me secarem e me botarem de volta no quimono. 

“Vamos!”

Antes de entrar ao vivo, dei uma paradinha. Todo mundo estava alinhado, esperando o ok pra entrar, o show acontecendo, anunciando que ia rolar a próxima luta, e eu falei: “Peraí, só um minutinho, pessoal, deixa eu dar uma deitada aqui”. E deitei (não lembro de ter feito isso). 

O meu irmão Relson perguntou: 

— Tá precisando de alguma coisa?

— Me dá um suco de melancia.

— Cara, eu não tenho suco de melancia agora, mas, quando tu acabar hoje à noite as três lutas, vai tomar quantos sucos de melancia quiser. 

Levantei — e continuo não me lembrando de nada. Quando entrei no ringue, o árbitro John McCarthy veio e falou: “Tá pronto?” Eu disse que sim, e tudo apagou. 

Ficou tudo preto na minha frente. Falei com meus irmãos e meu pai que não estava vendo nada. 

Royce Gracie Jiu Jitsu
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John McCarthy viu que alguma coisa estava errada, porque eu me virei de costas pro adversário, e veio conversar: “Tá pronto?”, perguntou de novo. Quando senti que ele saiu de perto, eu falei pro meu irmão me apontar a direção certa, porque eu não estava vendo nada. Eu estava completamente desidratado. 

Aí minha equipe mandou parar. 

“Não vamos confundir valentia com burrice. Você já provou que é valente entrando aqui, mas continuar lutando assim seria burrice.” 

E foi quando o Rorion jogou a toalha. 



ENSINO SUPERIOR

Sigo ao pé da letra um mandamento simples do meu pai: “Não entra numa luta pra ganhar, entra pra não perder”. 

Como assim? 

Ele explicou: “Toda vez que você botar a bola no meu lado da mesa, não interessa onde você a coloca, eu vou pegar aquela bolinha e botar no centro da tua mesa. Eu tô jogando pra não perder”. 

Fazendo assim, quando é que eu vou perder? 

Nunca. 

Como é que se ganha esse jogo? 

Quando o adversário erra a mesa. 

Fui eu que ganhei? 

Não, foi ele que perdeu. 

Eu capitalizo o erro dele. Por isso, eu luto pra não perder. 

Meu pai nunca falou: “Vai lá e ganha deles”. 

Era sempre: “Vai lá e luta pra não perder; se ele não ganhar de você, a questão é como é que você vai ganhar dele”. 

Arte marcial, em geral, foi feita pra você se defender. Vou fazer isso, jogar pra não perder e, quando ele abrir uma brecha, eu tô ali. 

Depois do quinto torneio, meu irmão vendeu o UFC. O pessoal envolvido começou a colocar muita regra, como limite de tempo. E eu, lutando com um cara mais pesado, sem o tempo a meu favor, vou fazer o quê?

Quando ele saiu, saí com ele. Mas doido pra lutar mais. 

Não conseguia ver uma luta, que já batia aquela vontade de voltar. 

E olha que a luta nem é a parte boa do negócio. O treino, os três, quatro meses de treino, essa é a melhor parte.

Royce Gracie treino jiu jitsu
Sam Robles/The Players' Tribune

Adoro. Porque é tudo pra mim.

O pessoal faz comida pra mim, todo mundo trata de mim, faz massagem, cuida da minha alimentação…

“Mas e a luta”, você deve estar se perguntando, né?

Eu vejo a luta como mais um dia de treino, com um adversário novo, com mais algumas pessoas assistindo.

Não acredito que o adversário vai ser mais difícil que o meu treinador. O meu treinador me conhece, sabe exatamente o que eu vou fazer, pode fazer minha vida ficar difícil. 

Quando eu parei, em 1995, passei cinco anos sem lutar, antes de ir para o Pride, no Japão. 

Já em 2016, no Bellator, contra o Ken Shamrock, eu não queria lutar. Eu não pedi, ele que ficou me desafiando, perturbando o show pra lutar. E o evento falando comigo. O cara perturbou tanto que eu pensei: quer saber? Vamos fazer logo. Foi minha última luta — e meu primeiro nocaute.

A estratégia foi frustrar o adversário. O Rorion falou: “Fica de ouvido na plateia, faz a luta ficar chata, foge dele. Quando o povo começar a vaiar, ele vai se frustrar e partir pra cima de você. E então tu entra em clinche”. Confiei nele, como sempre.

Foi exatamente o que aconteceu. O povo vaiou, o Shamrock perdeu a paciência, veio pra me dar um soco forte, eu entrei em clinche na hora. Tudo no tempo certo. Com paciência e persistência.



PhD

O jeito como você dá uma chave de braço há 50 anos é exatamente igual ao de hoje. O jab, o cruzado… é tudo igual. O que mudou de lá pra cá é a estratégia, o treinamento, a alimentação, a corda de pular, o tênis de correr. Ou seja: a tecnologia está melhor.

Antes também era um estilo de luta contra o outro: o taekwondo contra o caratê, o kung-fu contra a capoeira, o jiu-jitsu contra o boxe. Hoje, é um lutador contra o outro. 

Todo o pessoal da luta em pé aprendeu o jiu-jitsu, o judô, o wrestling. E essa turma do chão teve que aprender a trocação. Mesmo assim, sigo acreditando que o jiu-jitsu é a espinha do negócio. 

É o que dá a liga. É a arte que conecta os estilos.

Mas é preciso ter disciplina para levantar todos os dias e fazer o que tem de ser feito. 

Royce Gracie The Players Tribune TPT
Sam Robles/ The Players' Tribune

Eu não sou o cara mais forte.

Não sou o mais rápido.

Não sou o maior. 

Não tenho habilidades especiais. 

O que faz de mim o que eu sou? Disciplina.

Não saio para uma noitada num fim de semana porque eu tenho que treinar na segunda-feira. Não bebo álcool. Não como o que sei que vai fazer mal pra mim. 

Sim, é um estilo de vida. 

Não sou atleta profissional só quando estou lutando — sou atleta profissional o tempo todo. Então, o maior legado que posso deixar é mostrar que, sim, tudo é possível.

Esse é o ensinamento que meu pai e minha família me deram. E a única forma de retribuir é passar adiante as lições que aprendi desde o dia em que descobri a benção que é ser um Gracie.

autografo Royce Gracie

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