Tudo Pode Acontecer

FRANCK FIFE/AFP VIA GETTY IMAGES

Há uma semana eu estava sentado no ônibus do Lyon a caminho do estádio da Juventus para um jogo que todos pensavam que perderíamos.

Muita coisa passava pela minha cabeça.

Tínhamos a vantagem de 1 a 0 da partida de ida das oitavas de final, mas enfrentaríamos a Juventus. Eles tinham acabado de ser campeões da Serie A pela nona vez seguida. Desde que a pandemia do COVID-19 havia causado o cancelamento da liga francesa, nós tínhamos disputado um jogo oficial em cinco meses. Então, sim, fazia sentido a ideia de que seríamos eliminados.

O que as pessoas não sabiam, porém, é que eu tinha lido um livro muito bom sobre finanças pessoais.

Pode parecer bobagem, mas tenho certeza de que aquele livro nos ajudou a eliminar a Juventus.

Eu tinha terminado a leitura uma semana antes. Gosto de estudar economia e finanças, e o nome do livro é The Millionaire Real Estate Agent (O Agente Imobiliário Milionário), escrito pelo Gary Keller. Um dos principais ensinamentos é que você tem de pensar grande. Se você fizer isso, pode ter conquistas que nunca imaginou que fossem possíveis.

Durante a leitura, fiz uma conexão. Se aquilo era verdade nas finanças, por que não poderia ser aplicado também ao futebol?

Ao longo da semana, a minha mensagem para o elenco foi que se acreditássemos que eliminaríamos a Juventus, poderíamos realmente fazê-lo. Isso pode parecer bobo, mas tem uma grande diferença entre falar que você pode vencer e realmente acreditar nisso. Eu disse “Rapaziada, já vimos muitas coisas inesperadas no futebol. Por que não somos capazes de fazer algo inesperado também?”.

Então pedi que visualizassem a nossa classificação contra a Juventus — e depois que nos imaginassem levantando a taça da Champions League. Loucura? Talvez. Mas o Lyon é grande, um clube histórico. Por isso, temos de pensar grande também, certo?

Ainda conversei com alguns jogadores individualmente. Falei com o Memphis Depay, quem eu conheço desde os tempos do PSV Eindhoven, onde acompanhei de perto a chegada dele ao time profissional em 2011-12. Memphis tem uma personalidade forte. Lembro que ele quis brigar comigo em um dos nossos primeiros treinos juntos na Holanda por causa de uma chegada mais forte. Pela nossa amizade, eu disse a ele “Temos de acreditar no título”. Ele respondeu “Você está certo, vamos nessa!”.

Também conversei com o Bruno Guimarães, um dos outros brasileiros do nosso elenco. Ele foi contratado em janeiro. “Sabe, Marcelo, venho pensando nisso já faz um tempo. Podemos ser campeões, sim!”, foi a resposta do Bruno.

Eles compraram a ideia. Mas enquanto eu estava sentado no ônibus rumo ao estádio, pensando no meu discurso, eu sabia que ninguém poderia prever se essa minha convicção poderia impactar o nosso desempenho. Ainda no caminho do estádio, comecei a pensar no jogo e na minha missão de marcar o Cristiano Ronaldo.

A comissão técnica já tinha nos passado todas as instruções táticas. Temos um aplicativo em que podemos assistir a vídeos de todos os jogadores que vamos enfrentar. Eu já tinha visto tudo e estava com o receio de pensar demais no assunto. Nós, jogadores profissionais, vivemos a nossa carreira muito intensamente, sobretudo antes e depois das partidas. A nossa adrenalina sobe e desce praticamente a cada três dias. Às vezes é bom tentar relaxar, porque senão a mente perde o foco. Você pode literalmente sofrer um colapso de ideias.

Às vezes é bom tentar relaxar, porque senão a mente perde o foco.

Ainda bem que um dos meus companheiros me fez esquecer a Juventus por alguns minutos. O Kenny Tete, holandês que é nosso lateral direito, estava do meu lado no ônibus. De repente, ele perguntou “Marcelo, quais de vocês brasileiros vieram da favela?”.

Respondi que eu era um deles. Peguei meu telefone e mostrei como era a minha casinha em São Vicente, no litoral de São Paulo. Descrevi como o nosso teto era cheio de goteiras e também que a água atingia até um metro de altura dentro de casa quando tinha enchente. Por isso, os nossos móveis estavam sempre caindo aos pedaços. Expliquei que eu dividia aquele quarto e sala com meus pais e duas irmãs. Kenny ficou impressionado. “Uau, que história incrível!”.

Para ser sincero, fiquei emocionado quando mostrei a minha casa para ele. Todas aquelas memórias tomaram conta da minha cabeça. Os dias em que eu pedalava por uma hora até Santos para jogar futsal e como aquilo me levou até a base do Santos. Ou quando levei uma bronca do Vanderlei Luxemburgo, o treinador que me promoveu aos profissionais do Santos. Ele não aliviava, era muito duro. Logo após a minha promoção aos profissionais, o Luxemburgo me viu no estacionamento do clube em um carro que eu tinha acabado de comprar, um Meriva Sport. Era meu primeiro carro. Longe de ser uma Ferrari ou Lamborghini, mas ele ficou louco.

“Moleque, vem cá. Que porra você tá fazendo? Você já tem uma casa? Acha que pode viver na merda de um carro? É disso que a sua família realmente precisa?”.

Ele ficou furioso. Até ligou para o meu empresário da época. E eu entendi que ele estava certo. Depois daquela bronca, comprei um apartamento assim que tive condições e levei a minha família para Santos. Quando decidi estudar, me interessei por finanças. Aquele episódio com o Luxemburgo tinha ficado na minha cabeça. Muitos jogadores vão à falência após se aposentarem, principalmente no Brasil. Mas eu não queria que isso acontecesse comigo.

Marcelo Guedes

Naquele trajeto do ônibus, pensei como a minha trajetória é maluca. De uma criança na quebrada de São Vicente até um jogaço pelo Lyon na Champions League. Isso é realmente inesperado. Mas muitos fatores poderiam ter me levado a um caminho diferente.

Um deles aconteceu durante essa temporada.

No começo do ano eu quase saí do Lyon.

Ainda é difícil falar sobre isso, porque foram dias muito duros. Amo o Lyon. São três anos no clube, e toda vez que entro em campo dou 100% por essa camisa linda.

Em outubro do ano passado, perdemos para o Benfica por 2 a 1, em Lisboa, pela fase de grupos da Champions League. Cometemos dois erros grosseiros. Quando chegamos ao aeroporto para pegar o voo de volta, um pequeno grupo de torcedores estava nos esperando. Um deles, muito influente entre os ultras, veio falar conosco de uma forma muito agressiva. Claro que estávamos frustrados com o resultado, mas aquele torcedor passou dos limites. Senti que tinha de intervir em nome do elenco. “Você está errado, não pode agir assim. Acha que não sentimos a derrota, que estamos brincando de jogar futebol?”.

Ele não reagiu muito bem e continuou a discussão. A partir daquele momento, minha relação com os ultras ficou muito ruim. Eles começaram a me xingar em todos os jogos. Até estenderam faixas contra mim. Foi assim durante semanas. Se já estava difícil para mim, imagine para a minha família vendo tudo aquilo. Chegou a um ponto que decidi que a minha saída do clube era o melhor a se fazer. Conversei com o presidente, Jean-Michel Aulas, e disse que o clube teria a palavra final. Eu não queria ser um problema para a instituição. Mas tanto o presidente quanto o nosso técnico, Rudi Garcia, decidiram pela minha permanência.

Acabei me arrependendo da minha conduta no aeroporto. Me deixei levar pela emoção. Por isso, depois da nossa vitória sobre o Bordeaux fora de casa, em janeiro, fui até o torcedor e me desculpei com ele. Disse que estávamos lutando pelos mesmos objetivo, que eu não sou o melhor zagueiro do mundo, mas que dou a vida por eles. Pelo Lyon. Alguém filmou essa cena, e essas imagens tocaram o coração de muitas pessoas. Um amigo meu assistiu e chorou.

Meu pedido de desculpas melhorou o meu relacionamento com os ultras. Tirei um peso enorme das minhas costas. Independentemente de quem está certo ou errado, desculpar-se é o melhor caminho para seguirmos em frente. Tenho certeza que essa história me fortaleceu e também deixou o time mais forte. Sem contratempos não tem como evoluir.

Acha que não sentimos a derrota, que estamos brincando de jogar futebol?

Na sequência, nosso foco estava voltado à classificação para a Champions League, com um lugar entre os três primeiros da Ligue 1. Mas surgiu um outro imprevisto. A Ligue 1 foi suspensa em março, e em abril o governo francês anunciou que todos os esportes de contato só voltariam em setembro. Isso provocou o cancelamento do restante da liga. Estávamos em sétimo lugar, o que não nos daria sequer uma vaga na Europa League.

Ficamos muito decepcionados com isso. Penso que o governo francês se precipitou ao tomar essa decisão. Poderíamos ter concluído a temporada com portões fechados, assim como aconteceu na Alemanha, Inglaterra, Espanha e Itália. Ao invés disso, ficamos quatro meses sem jogar. Apesar disso, consegui aproveitar esse período para me dedicar a outras atividades. Dei sequência nas aulas de francês, de yoga e ainda li mais livros sobre economia e empreendedorismo.

Quando retomamos os trabalhos em julho, com apenas alguns amistosos como preparação para a volta da temporada, sabíamos que havia apenas duas chances para nos garantirmos nas próximas competições europeias.

Uma seria vencer o Paris Saint-Germain na final da Copa da Liga, o que nos classificaria para a Europa League. Perdemos nos pênaltis.

E a segunda e última oportunidade é ser campeão da Champions League pela primeira vez na nossa história.

O que significava ter de eliminar a Juventus…

E o ônibus parou. Estávamos no estádio. Descemos, e o foco total passou a ser na partida. No vestiário reforcei a ideia de que tínhamos de pensar grande. Precisávamos acreditar — realmente acreditar — que a classificação era possível.

Vi que passamos a acreditar. Quando entramos em campo, senti confiança entre o nosso time.

O pênalti convertido logo no início fez a diferença. Só pela maneira com que o Memphis cobrou, com cavadinha, deu para ver a confiança dele. Para fazer aquilo em um momento tão importante você tem de estar muito seguro de si.

Com a vantagem de 2 a 0 no agregado, pudemos administrar a partida. De novo, tento não pensar demais e confiar nos meus companheiros de time. Nosso meio de campo fez um grande jogo, protegeu bem a nossa defesa. Mas antes do intervalo o Cristiano Ronaldo empatou também em cobrança de pênalti. No segundo tempo, quando pensávamos que estávamos sob controle, o Cristiano recebeu a bola fora da área. Eu tinha certeza que iríamos pará-lo, porque estávamos com nove jogadores atrás da linha da bola e forçamos ele a usar o pé esquerdo que, na teoria, é mais fraco do que o direito. Mas esse raciocínio não serve para o Cristiano. Ele fez um golaço quase da intermediária — com o pé esquerdo.

O 2 a 2 no placar geral nos dava vantagem devido à regra dos gols fora de casa. Mas se levássemos mais um estávamos fora. Defendemos pelas nossas vidas nos últimos 30 minutos. Sofremos bastante, mas felizmente conseguimos o resultado que queríamos.

Robbie Jay Barratt/AMA/Getty Images

O sentimento após o apito final foi espetacular. Entrei correndo no vestiário e gritei “Eu falei que era possível, eu falei!”.

E os meus companheiros gritaram também. “É isso aí, vamos!”.

O ambiente entre nós estava sensacional. Eu já tinha jogado em outros grandes jogos de Champions League, mas esse foi especial. Muito especial. Quando cheguei em casa, fiquei acordado com a minha esposa, Tatiane, e o meu publicista, Léo. Conversamos sobre a partida. Assistimos ao VT. Com a adrenalina lá no alto não consegui fazer mais nada.

Quando finalmente tentei dormir, sem chance.

Cara, que noite!

Agora estamos nas quartas de final. Como nesse ano é só uma partida em cada fase, isso significa que estamos a três jogos do título da Champions League. Três jogos. Três finais. Sabemos que não somos os favoritos, mas três jogos? Três jogos não é nada.

A Tati fez uma observação muito interessante outro dia. Esse ano está sendo diferente em vários sentidos. Quem sabe se algo diferente também não vai acontecer no futebol?

O Lyon está realmente sonhando em ser campeão da Champions League. Podemos conseguir, sim.

Porque nesse jogo maluco, assim como na vida, tudo pode acontecer.