Sentimento Que Jamais Acabará

Lucas Seixas/The Players' Tribune

Alô torcida tricolor,

Lembrei de uma história boa, vocês me dão licença de contar? 

Preciso esclarecer que eu venho de Dourados, Mato Grosso do Sul, onde passei dias inteiros dentro de barco ou em barranco de rio, mas não é história de pescador, não.

É sobre algo que pode parecer inacreditável para a maioria das crianças que amam futebol. É o sonho de uma vida inteira que finalmente se realizou.

Hoje eu tenho a bênção de entrar em campo com a camisa 11 que já foi do Zé Sérgio, do Denilson, Amoroso, Elivélton, Sidney, Marcelinho Paraíba, até do Toninho Cerezo e nem sei mais o que é sonho e o que é realidade, graças a Deus. O São Paulo tem esse poder meio fabuloso sobre a gente.

Mas esse sonho começou lá atrás, quando eu jogava futebol na rua com meus irmãos. Enquanto a bola rolava, eu só sonhava com uma imagem na minha cabeça: cruzar aquele portão branco que tem o escudo do SPFC no meio.

A nossa família inteira é são-paulina, sabe? Amor que começou no meu pai e pegou em nós todos. Em mim, de um jeito muito, muito forte. Naquele tempo de brincar de futebol em Dourados, ali nos meus seis, sete anos de idade, eu não sabia nada sobre a vida, mas carregava um sentimento que me fazia feliz, só isso: antes de ser o Aldemir, antes de ser filho, irmão, douradense, antes de ser pescador contador de causo, um moleque como tantos outros nesse Brasilzão, antes de ser eu mesmo eu era torcedor do São Paulo. Ô coisa boa saber disso desde tão pequeno!

Lembro bem dos domingos em que eu subia na bicicleta e pedalava até o bar onde a galera costumava ver os jogos do São Paulo. Como não tinha TV a cabo, se quisesse acompanhar todos os jogos do campeonato, o jeito era era ir pra lá. Quando não assistia o Tricolor em casa com meu pai, eu era um dos primeiros a chegar no bar. Ia sozinho, só eu e a bicicleta, mas sempre tinha um monte de são-paulino pra torcer junto.

Ferreira infancia criança sao paulino Players Tribune
Cortesia de Ferreirinha

No dia em que o Rogério Ceni marcou o centésimo gol, eu fiz a festa no bairro. Saí comemorando pela rua, zoando meus vizinhos corintianos — imagina se eles ficaram bravos kkkk! O Rogério sempre foi um grande ídolo lá em casa. Eu era bem novo na época, mas é impossível esquecer aquela defesa que ele fez contra o Liverpool. A defesa que garantiu o nosso último título mundial. Só que, por ser atacante como o meu pai, naturalmente minhas maiores referências estavam do meio pra frente.

Com uns 13 ou 14 anos, jogando na várzea, eu me achava o próprio Luís Fabiano. Os caras me ameaçavam, me davam tapa, cotovelo na cara, trava da chuteira no tornozelo e eu… Bom, não vou dizer que eu gostava, mas aquilo me dava uma força descomunal. Quanto mais eu ia pra cima no um contra um, mais eles me batiam e mais pra cima eu ia. Eu não baixava a cabeça. Sabia que aquilo era um sinal de que meus marcadores estavam com medo, e aí eu conseguia desestabilizar os caras.

Pouco tempo depois apareceu um pessoal do Grêmio lá na minha cidade pra fazer um peneirão. Eu fui aprovado e me levaram a Porto Alegre pra um segundo peneirão. Passei também e aí pude fazer um teste com o time sub-17. Me tornei jogador da base do Grêmio com 16 anos e tive que sair de casa pela primeira vez. Lembro bastante do frio. Mas solidão nunca senti.

Meu pai, que já sofria pelo São Paulo e passou a sofrer pelo Grêmio também, me ligava todo dia. Ele transmitia as notícias de Dourados, queria saber se eu estava bem, como tinha sido o treino, o jogo, e a conversa sempre terminava com a gente falando do São Paulo.

Um dia, vai vendo a loucura, fui escondido ver Inter x São Paulo no Beira-Rio, a casa do rival. Ninguém podia saber, claro. Eu ainda estava na base do Grêmio. Assim foi a primeira vez que vi o São Paulo jogar do estádio…

Ferreirinha Morumbi São Paulo
Lucas Seixas/The Players' Tribune

Apesar dessa “escapada”, desde a minha estreia como jogador profissional do Grêmio, em pleno Maracanã, consegui deixar a paixão são-paulina de lado para defender com unhas e dentes a camisa de outro tricolor — o gaúcho, no caso.

Lá eu tive professores do naipe do Renato Portaluppi e do Luis Suárez. O Renato jogou muito, né? O cara conhece cada pedacinho do campo, os espaços que a gente deve ocupar, a hora de passar, a hora de partir pra cima… Me ensinou demais (e olha que nem precisou me mostrar o DVD kkkk). E o Luisito, pô, aí é covardia. Bastava assistir o homem pra aprender. Todo dia era aula de domínio de bola, de proteção com o corpo, arrancada, arremate, cabeceio… Ver o Suárez treinar foi um privilégio que eu nunca vou esquecer, assim como a honra de ter jogado no Grêmio, um período muito legal da minha carreira.

Quem poderia imaginar que, depois de tudo o que vivi no Rio Grande do Sul, a chama adormecida do Tricolor da minha infância iria aflorar novamente?

Fico me perguntando se pode existir no futebol alguma coisa mais emocionante do que marcar pelo nosso time do coração. Deve existir, mas por enquanto eu desconheço.

Ferreirinha

E então chega o final do ano de 2023. Fui passar as férias com a família em Dourados. Tô lá tranquilão, comendo um peixe na brasa, e apita uma notificação de mensagem no meu celular.

“Vem pra cá”, era tudo o que estava escrito.

Quando olhei a foto de quem tinha enviado eu fiquei paralisado: 

Era o Lucas Moura.

Ferreirinha gol Rogerio Ceni Mundial
Lucas Seixas/The Players' Tribune

Demorei pra acreditar na equação. Lucas Moura + Vem pra cá. Cá onde?! “Pro São Paulo, onde mais?”. Mostrei a conversa no celular pro meu pai e ele também ficou sem reação. Depois disso, ele não saiu mais do meu pé. Assim que eu acordava, nem me dava um “oi” ou “bom dia”. Já ia logo perguntando:

— E o São Paulo????

Com uma pressão dessas em casa, nem se eu não fosse são-paulino teria como recusar a proposta.

No dia 26 de janeiro de 2024, eu cruzo o portão branco com o escudo do SPFC no meio para ser apresentado como jogador do meu Tricolor. Ao vestir a camisa do São Paulo pras fotografias, de canto de olho vi meu pai todo emocionado ao lado do Muricy Ramalho. Não sei se ele chorava ou ria, acho que chorava. Era a realização do sonho de defender meu time de menino, meu time das peladas na frente de casa, das partidas assistidas na TV do bar, das botinadas na várzea, o time que até escondido eu ia ver jogar. Time do Luís Fabiano, do Rogério, do Lucas.

Meu time!

E só então eu fui entender a expressão “sonhar acordado”.

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Eurasia Sport Images/Getty Images

Jogar no Morumbi com a nossa torcida empurrando é uma emoção inexplicável. Parece que a gente entra em campo ganhando de 1 a 0. E fazer um gol então? Fico me perguntando se pode existir no futebol alguma coisa mais emocionante do que marcar pelo nosso time do coração.

Deve existir, mas por enquanto eu desconheço. E, por mim, tudo bem se continuar assim. A sensação é que pulei da arquibancada pra jogar. Então eu corro em dobro, porque não posso desapontar a minha galera, não quero voltar de cabeça baixa pra ela. Eu sou o torcedor abençoado que teve a chance de vestir o manto tricolor e preciso honrar isso. Essa é a história que eu estou construindo no São Paulo com toda a minha força, toda a minha paixão por esse clube.

“Senhores, eu sou São Paulo desde pequeno. Queremos a quarta Copa, voltar para o Mundial. São Paulo, eu vou contigo até o final.” 

Quando escuto essa música vindo da torcida, sinto aquela chama da infância percorrendo o meu corpo, como se fosse um resumo perfeito da minha trajetória saindo de Dourados até cruzar o portão branco com o escudo do SPFC.

Ferreirinha atacante Sao Paulo Futebol Clube
Sports Press Photo/Getty Images

Logo mais a gente retoma a Libertadores e eu confesso que estou ansioso. Não vejo a hora de jogar. Nós estamos bem na competição. Lideramos o nosso grupo e agora começam as oitavas. Libertadores é um troço diferente pro São Paulo, todo são-paulino sabe disso. Acho que é o título que nós mais gostamos de ganhar, né não? Tem uma energia diferente. E todas as vezes que o Tricolor foi campeão da Libertadores, foi campeão do mundo também.

Portanto… Se tem Libertadores, tem Mundial! Sonhar não custa nada. Ou tô errado?!

Depois de uma vida inteira desejando e sonhando estar aqui, hoje tenho orgulho em dizer, pra todo mundo ouvir e sem precisar esconder minha paixão, que SOU, SOU TRICOLOR!

Seja sonho ou realidade, só quero seguir vivendo esse sentimento. 

Um sentimento que jamais acabará.

Autografo Ferreirinha

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