Ventania

Felipe Max/The Players' Tribune

O que eu me lembro daquela tarde de domingo é que tava muito quente. Fazer calor no fim de ano é normal em São Paulo, mas naquele dia de final de Copa do Brasil, tudo parecia ainda mais intenso. Acho que não era só o calor...

Antes de a bola rolar, eu sentia o nervosismo que qualquer jogador que cresceu nesse clube e que há dez anos esperava por essa chance iria sentir. É o tipo de jogo que te define pra sempre, que pode te jogar pra cima ou pra baixo. E pra mim ainda tinha mais coisa envolvida: 24 de setembro, data desse dia tão importante, era também o aniversário do meu pai, e eu, lógico, queria dar o título de presente pra ele. 

A bola rolou e o jogo se apresentou da forma que a gente imaginava. Ritmo forte dos dois lados e o bicho pegando.

 Aos 43 do primeiro tempo, os caras cruzam rasteiro pra nossa área, a bola bate na trave, volta no Bruno Henrique e entra. Gol deles. 

Tomar gol no finalzinho do primeiro tempo é uma das piores coisas que podem acontecer em uma final. A gente desaba. Dá vontade de deixar só o corpo no campo, esperando o juiz encerrar, e mandar a cabeça pro vestiário, pra reorganizar logo, ouvir o treinador e voltar pra empatar. Normalmente é assim. Só que as coisas não estavam normais naquela tarde.

Foi quando, antes do intervalo, a gente conseguiu uma falta lá pela direita. O Rato ajeitou a bola pra cobrar e eu já me posicionei do jeito que a gente tinha treinado, lá do outro lado do campo. Foi quando finalmente soprou um ventinho naquela tarde tão quente. 

O Rato levantou a bola, o goleiro deles saiu e socou pra fora da área, e ela veio pingando na minha direção. Eu já fui ajeitando o corpo pra chutar e quando a bola chegou eu soltei o movimento.

Senti que peguei bem. Muita gente no caminho até o gol, tomara que não desvie em ninguém. Lá vai ela. Não vai pegar em ninguém mesmo? E não pegou. Foi direta na bochecha do gol... 

Gol! Gol! Gol! É gol! Meu Deus!! 

O futebol é uma coisa maluca. Aquele chute e aquele gol carregavam a minha vida inteira. Minha infância na Zona Leste, o futsal no Juventus, o início em Cotia e uma jornada de dez anos no São Paulo que contou com alegrias, tristezas, realizações e decepções. Não fazia muito tempo que eu tive que conviver com algumas críticas cruéis, com ameaças à minha família. Mas eu nunca quis sair dali. 

Acho que aquela minha comemoração teve todos esses ingredientes. Eu nunca tinha chorado e gritado tanto por um gol. Tinha muito sentimento envolvido naquele dia, mesmo. E pô, justo no dia do aniversário do meu pai! Nem nas minhas orações eu teria coragem de pedir algo tão grande assim.

E bom, aquele gol mudou o jogo. Logo depois de eles marcarem, a gente consegue empatar ainda nos acréscimos do primeiro tempo. Muda tudo. Os caras acharam que iam descer pro intervalo com a vantagem e a gente mudou o cenário ao nosso favor. E o empate nos daria o título...

A verdade é que depois do gol eu sentia que nada nos tiraria o título. Dali em diante, o vento estava pra nós.

Rodrigo Nestor carta Players Tribune
Ricardo Moreira/Getty Images

Eu lembrei de muita coisa ali, depois do gol e durante o intervalo. E olha que doido: a primeira memória que eu tenho na vida é justamente de um chute. Não tão legal quanto o da final da Copa do Brasil, mas marcante também. Vou contar como foi…

Sou o irmão do meio e tenho duas irmãs, uma mais velha e outra mais nova. Mais nosso pai e nossa mãe, éramos cinco morando num apartamento pequeno em Itaquera. Eu dividia o quarto e o guarda-roupa com as meninas, que me deixavam só um cantinho pra pôr as minhas coisas. Então já viu, né? Eu tinha que arrumar tudo direitinho, pra caber e não virar bagunça. 

Minha mãe sempre insistiu nessa questão de organização. Não deixar material escolar espalhado, lavar e guardar os copos, roupa suja no cesto, toalhas no varal e tudo isso. Bola dentro de casa nem pensar. Mas era mais forte do que eu. Era pedir demais pra um molequinho que até dormia de chuteira.

Um dia, ninguém em casa, fui bater uma bolinha sozinho na sala e pá! Acertei um sem-pulo num aquário que a gente tinha em casa. Água e vidro estilhaçado pra todo lado, o peixe se debatendo no chão esperando por resgate... É verdade que eu me senti mal pelo peixe, mas não fiquei com medo da bronca que levaria. 

Caramba, que chute daora! Eu preciso treinar mais isso lá fora! 

Foi aí que meus pais me puseram na escolinha de futsal do bairro e tudo começou. No meu primeiro time, o Barão de Mauá, eu aprendi umas coisas importantes. A primeira foi que a alegria do futebol só funciona no plural. Você pode até ter um dom de chutar bem de longa distância, vamos dizer. Mas do que adianta se estiver jogando sozinho? Isso só dá, no máximo, pra quebrar o aquário. Pro dom valer alguma coisa ele precisa ser compartilhado. Precisa ser usado pra algo maior.

Aí eu também aprendi que a minha paixão mesmo era ficar com a bola e fazer ela andar pra lá e pra cá. Isso foi fundamental mais tarde, quando eu fui pro futebol de campo: no espaço bem maior, tive que correr mais, me mexer mais, ler mais os movimentos dos adversários pra conseguir ter a bola comigo.

Com sete pra oito anos, eu entrei no futsal do Juventus. Foi demais. O que era brincadeira e paixão começava a ficar um pouco mais sério. Eu percebi que, mesmo jogando com meninos que já praticavam há mais tempo e com mais compromisso, eu levava vantagem na quadra.

Quando eu estava com uns 10 anos, teve uma final contra o Corinthians em que nós fomos campeões e o sonho andou mais uma casa. Minha família, os pais dos meus colegas de time, os treinadores, a galera passou a confiar em mim e eu correspondia. Comecei a acreditar que o vento bom só me empurraria pra frente, não teria mais volta. Eu estava feliz demais.

Então me chamaram pra fazer um teste onde? 

No Corinthians. 

Futebol de campo.

Fui passando uma por uma as fases da peneira. No dia decisivo, de escolher quem fica e quem vai embora, o técnico me chamou na sala dele. Ele disse que eu era muito bom, só que me faltava experiência. Que outros moleques da minha idade já tinham jogado em muito mais times e eu, só no Juventus.

A sensação, eu perceberia anos depois, foi a mesma de tomar um gol nos últimos minutos do primeiro tempo numa decisão. É duro. Seria melhor ele ter dito que eu era grosso, que não sabia jogar. Nessa hora a gente pensa em desistir. É cedo demais pra descobrir que o futebol também pode ser emocionalmente desgastante. Só 10 anos de idade, pô!

Mas beleza. Às vezes a gente precisa ser paciente pra esperar. Eu toquei em frente. E aí, quando eu estava com 13 anos, pintou um teste no São Paulo.

Fui aprovado e me mudei pra Cotia, onde treinam as categorias de base e, de repente, eu tive que crescer. Cheguei num dia nublado, cinzento, para morar longe da minha família pela primeira vez, dividir o quarto com um garoto que eu não conhecia, ajeitar minhas coisas num guarda-roupa que eu não conhecia, ir pra uma escola que eu não conhecia, dar bom dia pra pessoas que eu não conhecia. A única coisa familiar era a bola, e às vezes, repetindo um hábito de quando eu era mais novo em Itaquera, dormia abraçado nela.

As dificuldades me ensinaram a nunca deixar de acreditar. Acreditar, como eu acreditei, que não era o Nestor que muita gente dizia ser só mais uma decepção da base.

Rodrigo Nestor

Eu estava onde queria estar, fazendo o que eu queria fazer, mas são mudanças bem grandes que a gente vive nessa época. Pra mim, que sempre fui um cara retraído, a adaptação foi complicada. Mas não tinha pra onde correr, porque correr seria desistir — e eu não tinha chegado até ali pra desistir.

Lembro a primeira vez que pisei no Morumbi. O clube ia lançar um terceiro uniforme e pediu dois jogadores da base pra ação de marketing. Eu fui um dos escolhidos. Foi também a primeira vez que eu vi o Rogério Ceni de perto.

Fiquei impressionado. Ele participaria do evento e tinha levado o preparador de goleiro pra aquecer, porque precisaria dar uns saltos, encenar umas defesas e tal. O cara já estava no final de uma carreira brilhante, ídolo, campeão de tudo, não precisava fazer aquilo. Mas levou um preparador pra fazer direito! Nesse dia nós não conversamos, eu nem sei se ele me notou, mas guardei pra sempre essa lição de profissionalismo.

E assim, observando umas coisas, sentindo outras, eu fui me preparando e aguardando a minha hora. Em 2019, a gente foi campeão da Copinha depois de quase dez anos sem título e eu fui promovido pro time principal pelo Fernando Diniz. Fiquei um ano mais treinando que jogando, mas contente. Eu estava dentro. E me sentia preparado pra voar.

O caminho estava aberto. Era só continuar trabalhando duro e esperar. Eu deitava à noite pra dormir e imaginava como seria marcar um gol no Morumbi lotado com 50, 60 mil pessoas, todos os meus familiares e amigos na arquibancada. Eu sonhava com esse momento. Só que aí, sem nenhum alerta, a COVID chegou causando tristeza, destruição e dor. Me atropelou.

No meio da pandemia, um dia o meu avô saiu pra ir pro hospital e não voltou. Eu não me despedi dele. Não pude dizer umas palavras boas que talvez fizessem ele se sentir melhor. Não consegui levá-lo ao estádio pra me ver jogar. Não recebi o abraço dele depois de uma partida mais ou menos em que ele diria: “Jogou bem, garoto!”, mesmo se eu não tivesse jogado nada. Nem ouvir meu nome nas transmissões de rádio ele pôde.

O meu avô adorava acompanhar futebol pelo rádio. Era o pai da minha mãe, se chamava Nestor Cândido Mota. Quando eu nasci, ela me daria o nome dele, mas de última hora mudou para Rodrigo Nestor Bertaglia. Na base, no meio de outros Rodrigos, passei a ser Rodrigo Nestor. Mas desde que meu avô se foi eu quis colocar só Nestor na camisa. É para os narradores dizerem o nome dele e assim fica a minha homenagem eterna a esse homem bondoso, de coração imenso.

Vô Nestor, eu sei que o senhor sempre olha e torce por mim. Obrigado por tudo.

Rodrigo Nestor Players Tribune
Felipe Max/The Players' Tribune

Foi com a alma pesada por essa perda que eu comecei a jogar mais regularmente no São Paulo. Não teve uma partida do Campeonato Paulista de 2021 que eu tenha entrado em campo sem conversar com ele, dizer que eu ia me esforçar e, no fim do jogo, fosse qual fosse o resultado, esperaria pelo abraço dele.

Por isso o título, o meu primeiro no profissional, foi tão especial. Pra mim e pro clube: o último Paulistão vencido pelo São Paulo tinha sido em 2005, eu nem tinha quebrado o aquário lá em casa ainda. Então, parecia que o ano ia ser bom pra gente. Mas aí eu aprendi mais algumas coisas sobre o futebol.

Primeiro, que um título de campeão, pra jogador profissional, acaba no vestiário logo depois do jogo. A gente comemora, faz festa, fica leve e, quando sai, já foi, é passado. No dia seguinte tem que recomeçar o trabalho pra conquistar outro troféu. Ainda mais num clube como o São Paulo, que tem uma torcida acostumada a vencer. 

Em um time multicampeão, gigantesco, reconhecido internacionalmente, é claro que, pra muitos torcedores, ganhar um Paulista não significa muita coisa. Tinha que ganhar o Brasileiro também. E a Sudamericana. Tinha que se classificar pra Libertadores.

“Tinha que, tinha que, tinha que…” Só que não deu.

Reconheço que a gente se acomodou um pouco com o título do Paulista, sofreu pra ganhar a primeira no Brasileiro, quando foi ver já estava tarde pra brigar por Libertadores e a luta era contra o rebaixamento. 

No São Paulo, nessas horas, a culpa acaba caindo um pouco em Cotia. Acho que a cobrança é maior em cima de quem vem da base. Eu até entendo. O clube investe muito na base, o CT é excelente e isso gera expectativa. 

Daí que quem sai de lá e chega no profissional tem que resolver. Se não resolve, é “mimado”. Infelizmente é esse o pensamento. Algumas pessoas não veem o jogador como um ser humano. É uma máquina. Portanto, ele não sofre quando o time perde, não sofre quando tem problema em casa, quando está machucado. Ele é pago pra render o máximo o tempo todo. E no dia em que não render o máximo pode ser cobrado, xingado, até ameaçado de morte.

A gente terminou 2021 num estado de nervosismo que nunca mais eu quero sentir. Foram muitas noites seguidas sem dormir. Não deveria ser assim, mas é.

Claro que nós temos que fazer a nossa parte. Essas dificuldades me ensinaram que, quando eu estiver jogando mal, preciso correr mais e nunca deixar de acreditar. Correr mais e acreditar qualquer um consegue. E também ajuda o time. Mas tem dia que nada funciona. Ou funciona melhor pro adversário.

Na final da Sul-Americana de 2022 foi assim. A gente saiu de São Paulo num momento excepcional. Goleada de 4 a 0 pra cima do Avaí, no Morumbi. Viajamos pra Argentina, local da decisão, com a confiança lá em cima.

Quando a partida começou, a gente viu o Del Valle ganhando todas as divididas e ficando com todas as bolas rebatidas. Criamos chances, fomos melhores em certos momento do jogo, mas perdemos. A viagem de volta pra casa foi o pior momento da minha carreira até hoje.

Desde que meu avô se foi eu quis colocar só Nestor na camisa. É para os narradores dizerem o nome dele e assim fica a minha homenagem eterna a esse homem bondoso, de coração imenso.

Rodrigo Nestor

Ter batido na trave de um torneio importante é horrível, ainda mais para alguém que, como eu, foi formado dentro do clube, que sempre sonhou em conquistar um título pelo São Paulo. Tão ruim quanto a angústia de esperar pelas piores reações da torcida. Eu conheço bem esse sentimento, e luto todos os dias pra não senti-lo de novo, mesmo sabendo que é inevitável. 

E cá estamos nós no calorão da final da Copa do Brasil. Para chegar até ali, deixamos para trás os nossos maiores rivais. Contra o Palmeiras, mesmo a gente tendo ganhado o primeiro jogo, todo mundo dizia que eles nos atropelariam no segundo. Que eram muito melhores, que tinham mais conjunto e individualidades. Que o filme da final do Paulista iria se repetir.

Mas é futebol, né?

Quando a bola rola, não tem essa. Tem o momento. E a chegada do Dorival Júnior tinha virado de ponta cabeça a nossa confiança. 

Imagina que o cara chega, no primeiro dia reúne o grupo e solta uma bomba mais ou menos assim: “Nós vamos disputar uma final esse ano”. Não era resenha de técnico novo. Ele destrinchou tintim por tintim os nossos pontos fortes, alertou sobre os pontos fracos, explicou como trabalharíamos pra melhorar e como isso nos conduziria até uma decisão. Tudo com aquele jeito sereno e tranquilo dele. Depois de tanto sofrimento, era o que a gente precisava.

O time estava numa vibração impressionante quando saiu do CT da Barra Funda para ir pro Rio jogar a primeira partida da final. O trajeto até o aeroporto foi uma loucura. Tinha são-paulino em todas as esquinas com bandeira, crianças vestindo a camisa escrita Nestor atrás, homens e mulheres chorando. Eu nunca tinha sentido tanta energia fora do Morumbi e fiquei bem emocionado.

Era um dia especial. Nós jogamos muito no Maracanã, vencemos a partida e voltamos com a vantagem pra conquistar em casa a primeira Copa do Brasil da história do São Paulo.

Gol Nestor Sao Paulo final Copa do Brasil
Rubens Chiri/SPFC

Eu não esperava terminar o melhor ano da minha carreira lesionado. Mas, enfim… Tá aí outro negócio que faz parte da profissão. Agora é seguir trabalhando para voltar melhor, me preparar para correr ainda mais e nunca deixar de acreditar.

Acreditar, como eu acreditei, que não era o Nestor que muita gente dizia ser só mais uma decepção da base. Acreditar que a minha história pode inspirar a molecada cheia de sonhos que está vindo por aí e servir como um lembrete de que os meninos de Cotia merecem a confiança dos torcedores são-paulinos.

Acreditar, como eles acreditaram, que por mais sufocante que pareça a realidade, sempre haverá um vento soprando a nosso favor. E que depois da tempestade, vem a ventania.

autografo rodrigo nestor

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