A Alegria Vem Pela Manhã

Lucas Seixas/The Players' Tribune

No começo do ano passado, tirei uma fotografia estranha que, por motivo de força maior, não tenho coragem de apagar do celular. É uma foto simples, meio feia até. Mostra uma marmita com meu nome escrito na tampa, dentro da geladeira. 

Luan

Jantar

Só isso.

Parece pouco pra ficar carregando pra cima e pra baixo como um amuleto, mas é que a minha vida inteira está ali. Não sei direito por que fiz a foto. Talvez porque, naquele momento, que até hoje eu guardo a data e o horário (16 de fevereiro de 2024, às 18h01), a marmita fosse a única coisa me dizendo: “Você existe, Luan. Você existe”. 

Caramba, estava tudo tão difícil pra mim… Apesar da esperança que eu tinha de retomar a minha história interrompida no São Paulo, me avisaram que eu “não fazia parte dos planos” e passei a treinar sozinho, separado do grupo e em horários alternativos, enquanto aguardava uma definição.

“Ok, sou profissional, respeito a decisão do clube e posso lidar com isso”, eu falava pra mim mesmo.

Mas eu não conseguia dormir. Passava noites em claro achando que nunca mais vestiria a camisa do Tricolor, me perguntando o que fazer com aquele aperto no peito, aquela sensação ruim de ter um trabalho importante pra terminar e não conseguir.

Um dia, treinei de tarde e fui jantar. Estava tudo quieto e vazio no refeitório do CT da Barra Funda. Um ou dois funcionários lavavam os pratos e as panelas lá dentro, e o barulho dos meus chinelos se arrastando no piso só aumentava a tristeza. Pensei em sair dali, ir comer fora, mas e se eu me sentisse pior?

Decidi ficar. Fui até a geladeira e peguei a marmita. Dentro dela tinha arroz, feijão, frango, salada e os meus 14 anos de São Paulo. Levantei o celular, pum!, fiz rapidinho a foto e salvei. Não postei nem enviei pra ninguém. Era um particular meu. Uma fotografia que me contava uma história de mil palavras. A história de um moleque cheio de feridas que, depois de muito tempo invisíveis, resolveram inflamar e doer.

Marmita Luan Sao Paulo
Cortesia de Luan

Hoje eu olho a foto e enxergo cada vez mais fundo dentro de mim. Vejo o menino acanhado do Morro Doce, zona oeste de São Paulo, chegando para fazer teste em Cotia. Vejo o adolescente que se destacou em todas as categorias da base e foi capitão da seleção brasileira sub-20. Vejo o homem feito, camisa 13, marcando o primeiro gol do nosso título paulista de 2021, aquele que interrompeu um jejum de nove anos sem troféus, 16 sem conquistar o Estadual. E sinto a mesma fome de sempre, que nunca passou.

Tinha 11 anos quando me tornei atleta do São Paulo. Antes, jogava na rua e numa escolinha do bairro. Teve um torneio de Dia das Crianças na igreja, o dono da escolinha me viu jogar e me ofereceu uma bolsa integral pra treinar com ele. Era o Marcelo Félix, que se tornou um grande amigo e pessoa muito importante pra minha família. Foi o Marcelo que conseguiu o teste no São Paulo. Fiquei duas semanas treinando em Cotia e fui aprovado. Que felicidade, meu parceiro! Eu faria qualquer coisa para prolongar esse sentimento pra sempre.

Eu amava jogar bola, séloko! Mas ter a chance real de fazer disso uma profissão, pô, aí já era patamar de sonho. Moleque de tudo, eu não fazia ideia de quanto era a ajuda de custo que o clube ia me pagar por mês, mas fui logo fazendo plano de comprar um carrinho usado pra minha mãe o mais rápido possível, só pensava nisso, porque era duro ver o cansaço no rosto dela, toda noite, quando ela chegava em casa.

Na minha infância, a dona Luzia revendia cosméticos e passava o dia todinho circulando em busão lotado pra entregar mercadoria de porta em porta para as freguesas. Até já brinquei com o Alexandre Pato uma vez sobre isso: “Aí, mano, tua esposa é dona da Jequiti, né? Minha mãe me criou revendendo essa marca, sabia?”.

Ela saía antes das seis da manhã e só voltava umas dez da noite, esgotada. Trampo pesado, mas nunca se queixou. Pelo contrário. Sempre teve orgulho, porque com esse trabalho pagou escola particular pra mim e pro meu irmão Lucas, do maternal ao terceiro colegial. “Escola boa ajuda a ter profissão boa”, ela repetia quando a gente era pequeno. 

Só que no nosso país tem muita gente que não tá nem aí pro esforço de uma mulher preta, pobre, nordestina e trabalhadora, né? Na escola, parecia que só de respirar eu incomodava os outros, sei lá. Por morar em comunidade e não em condomínio, por ter a cor que eu tenho, o cabelo que eu tenho, por não usar o tênis da moda que todo mundo usava, por levar um pãozinho com manteiga de casa em vez de comprar lanche na cantina, por não passear no shopping depois da aula…

Pô, tantas coisas…

Fora o vazio por nunca ter meu pai nas reuniões, nas festinhas ou assinando meu boletim. Ele saiu de casa quando eu tinha três anos, foi pra Bahia, nunca mais apareceu. Deixou minha mãe sozinha cuidando de dois filhos, e isso me machucou pra sempre. Complicado. Ser abandonado pelo pai é um sofrimento difícil de explicar. Parece um fantasma. Um treco calado, invisível, se esconde, finge que não existe, mas vai corroendo a alma da gente aos poucos, todos os dias. 

Então, quando entrei no São Paulo, aconteceu uma revolução na minha vida. Não tinha mais aquela divisão de preto e branco, pobre e rico, morador de comunidade ou de apartamento, com pai ou sem pai, maloqueiro ou playboy. Tinha bola. Ela era redonda pra todo mundo e nisso eu me garantia. Hoje eu sei direitinho o que se passou e como foi importante. O São Paulo me acolheu de um jeito que eu não costumava ser acolhido fora da minha casa. (Anote isso! No futuro, eu levaria o acolhimento que tive em conta na hora de tomar decisões cruciais sobre a minha carreira.)

Luan Rodrygo Gabriel Menino selecao sub 20 2019
Claudio Reyes/Getty Images

Mas era puxado ir e voltar de Cotia, hein? Mano, vou te falar… Quarenta e cinco quilômetros entre a minha casa e o CT. Nos primeiros cinco anos, eu não pude morar no alojamento do clube, porque a prioridade era pros meninos que vinham de outros estados ou de cidades distantes. Eu, como vivia em São Paulo, fazia uma correria insana no transporte público pra poder treinar, igual minha mãe fazia pra trabalhar. Acordava às seis e vinte da manhã e tomava dois ônibus até o colégio, que ficava na Lapa. Na hora do almoço, pegava mais dois pra voltar pro meu bairro. Minha mãe me esperava com uma marmita (olha ela aí de novo), eu entrava no carro do Marcelo Félix, aquele da escolinha, e ele me levava até um ponto na rodovia Raposo Tavares.

Eu comia a marmita nesse trajeto, dentro do carro. Aí passava o fretado do São Paulo e finalmente eu seguia pra Cotia. Treinava a tarde toda. À noitinha, pra não perder o fretado da volta, precisava escolher: tomar banho ou jantar, porque não dava tempo de fazer as duas coisas. Como minha mãe me ensinou a ser educado com as outras pessoas no transporte público, eu escolhia tirar o suor do corpo e viajar limpo e cheiroso. Deixava pra jantar em casa, umas dez e meia, onze. Aí ia dormir pra recomeçar tudo no dia seguinte. Foi assim dos meus 11 aos 16 anos. 

Nesse tempo, se na bola eu conseguia me destacar e me firmar como jogador da base de um dos maiores times do mundo, na vida ainda tinha muito chão ensaboado pra escorregar e cair. Aos 14, falei com meu pai pela última vez. Foi por telefone. Contei que estava indo bem no São Paulo, pedi pra ele vir me ver jogar e até acreditei que viria. Mas ficou nisso. Não conversamos nunca mais. No corre do dia a dia, eu não percebia como a ausência dele me afetava. Por isso não sentia revolta, raiva, nada disso. Só tristeza. Ela estava o tempo todo dentro de mim, se acumulando como poeira, camada em cima de camada, até juntar com outras dores e me soterrar completamente. O futebol era o que me salvava.

Quando completei 16 anos, pude morar no alojamento do CT. Isso facilitou demais as coisas e me deu um gás sensacional. Primeiro, sem o vaivém entre Morro Doce e Cotia, dava pra descansar e me alimentar melhor, já que o fretado do São Paulo levava e buscava a gente na escola. Treinava de manhã e à tarde e estudava à noite. O clube cobrava notas boas e presença nas aulas, caso contrário era rua. Mas eu era um trator nessa época.

Eu não tinha força pra levantar da cama, mas me trocava e ia treinar só pelo Luciano. Graças a ele eu continuei o tratamento e me recuperei.

Luan

Os caras me chamavam de Tanque de Cotia. Vira e mexe, eu treinava nas categorias acima da minha. Queria a todo custo provar que merecia estar ali, não ter meu nome na lista de dispensas que rolava todo fim de ano e, pô, comprar o carrinho da minha mãe.

Foram anos de muita dedicação e empolgação. Tudo me dava uma alegria danada: ser quem eu era, fazer o que eu fazia, sentir o que eu sentia, estar onde e com quem eu estava. Eu achava que só dependia de mim fazer com que aquela sensação boa nunca acabasse. Bastava continuar trabalhando forte, que tudo ficaria bem.

Quando fiz 18 anos, ainda no sub-20, assinei meu primeiro contrato profissional com o São Paulo. Me senti outra pessoa, nunca achei que pudesse ser tão feliz. Fui falar com a minha mãe: “Agora a senhora pode diminuir o ritmo de trabalho. Não dá pra parar, mas logo eu consigo comprar um carro pra senhora fazer as entregas e a gente pode até começar a pensar em ir morar num apartamento”. Ela não quis saber de nada. Acho que não havia espaço pra grandes mudanças no coração dela. Foi um custo convencê-la a pelo menos a trocar o busão pelo Uber.

Luan gol Sao Paulo final campeonato paulista 2021
Anderson Rodrigues/FPF

Numa dessas de tentar distrair a mente, na segunda-feira mandei um zap pro coordenador da base pedindo ingressos pra ver o profissional contra o Corinthians, no fim de semana. Campeonato Brasileiro. Ele nem respondeu.

Na quarta à noite, tô lá de boa no alojamento assistindo Flamengo x São Paulo pela TV e o Jucilei se machuca. Senti um gelo na espinha. No fim da partida pisca uma mensagem do coordenador no meu celular. Mas não era pra falar dos ingressos. Na manhã seguinte eu devia ir direto pra Barra Funda, treinar com o time principal, porque o Diego Aguirre, que era o treinador, tinha pedido. Mal dormi essa noite. Na quinta, treinei que nem um leão. Na sexta também. E, no sábado, quando saiu a lista dos convocados pro clássico, meu nome estava nela. Tive que ler umas dez vezes pra acreditar. Que loucura! 

Comecei a semana só querendo ver o Tricolor da arquibancada e terminei sentindo na pele, dentro de campo, a força da nossa torcida. Quase 60 mil pessoas no Morumbi. Saí do banco, joguei, tomei cartão amarelo e festejei a vitória contra o rival: 3 a 1. 

Mas o que eu vou carregar pra sempre desse dia são as palavras do Diego Souza. Cara experiente, né? Ele percebeu o nervosismo que eu tentava disfarçar quando entrei na partida. Colou do meu lado e falou assim: “Ó, não precisa ser o melhor jogo da tua vida, não precisa fazer mais do que você faz na base. Só joga sério e concentrado. Se você errar, a gente tá aqui pra te ajudar. Vai tranquilo”. E ele ainda me elogiou na entrevista depois da partida, dá pra acreditar? Cara firmeza demais o Diego Souza. Sou muito grato. Aquele gesto dele fez total diferença no começo da minha caminhada como jogador profissional. Atuei bem, entrei de titular no jogo seguinte, contra o Cruzeiro, e não voltei mais pra Cotia.

Eu me sentia feliz de ser jogador do São Paulo, de conseguir melhorar a vida da minha mãe e mais feliz ainda de ter o apoio da torcida. Uma das coisas mais legais no Tricolor é ser cria de Cotia. O são-paulino valoriza muito a gente. E quanto mais a galera gritava meu nome no Morumbi, mais eu tinha vontade de retribuir.

Só que eu sou volante, né? Homem de marcação. A minha retribuição fica meio limitada. Por isso foi surreal quando a defesa do Palmeiras rebateu uma bola pra fora da área e ela veio no meu peito. 

Dia 21 de julho de 2021, não esqueço jamais.

Morumbi, uma quarta-feira, 36 do primeiro tempo, segundo jogo da decisão do Paulista. O Crespo, nosso treinador, tinha dito na preleção que, se cada um dos 11 em campo cumprisse bem a sua função, a gente estaria mais perto da vitória.

A minha função era uma só: anular o Raphael Veiga, não deixar ele jogar.

Mas a bola me procurou, eu estava livre, o que podia fazer? Amorteci na caixa duas vezes, botei no chão e chutei pro gol. No meio do caminho, ela desviou no Felipe Melo e entrou. Mano do céu, que sensação maravilhosa viver aquilo. Não dá pra explicar o que é marcar um gol que abre o placar e o caminho para um título. A gente perde um pouco a noção.

Na comemoração, enquanto corria sei lá pra onde, lembrei que na base a gente dizia que não bastava vencer, tinha que vencer jogando bem. E agora eu estava ali, marcando meu nome na história de um clube que tem três Libertadores e três Mundiais, mais pronto do que nunca para continuar escrevendo outras páginas vitoriosas com o Tricolor.

Luan Sao Paulo campeao paulista 2021
Anderson Rodrigues/FPF

Infelizmente não foi bem assim. Os bons ventos pararam de soprar e a poeira tomou conta de mim de novo.

Três meses depois, no meu primeiro treino com o Rogério Ceni de técnico, me machuquei sozinho e saí carregado de maca do campo. A lesão era grave (muito mais do que as pessoas imaginavam na época), incomum e tinha nome e sobrenome: avulsão tendínea do adutor da coxa esquerda. O músculo, em vez de se romper, arrancou um pedaço minúsculo do osso e ele ficou lá. Tratava, tratava e não melhorava. Um mês, dois meses, três meses, quase um ano e nada. 

Quando conseguia treinar, meu desempenho era muito abaixo do que todo mundo estava acostumado, nem eu me reconhecia. Fui ficando envergonhado e com medo, a ponto de pedir uma reunião com o Rogério pra me desculpar. Eu simplesmente não conseguia. Trabalhava no clube, trabalhava em casa e não conseguia mais voltar a ser o Luan de antes. Foi uma queda do penhasco. Num dia eu estava lá no alto, estreando no profissional, me tornando titular, marcando gol de título, ouvindo sondagens de clubes de fora, pensando em seleção… e no outro estava com aquele aperto no peito de novo, dormindo mal, aí veio o desânimo, o abatimento e nem me dei conta quando me esborrachei lá embaixo. 

Aos poucos fui me afastando de tudo, ficando mais dentro de casa, tentando achar respostas que não existiam.

Por que comigo?

Por que agora?

O que eu fiz de errado?

Depois de tanto tempo no futebol, no ambiente e com a galera que eu mais gostava de estar, eu não suportava a ideia de só assistir de fora justamente no momento em que eu tinha tanto pra crescer. Nessas horas, é difícil perceber a poeira cobrindo a gente. Acho que acontece aos poucos. No meu caso, fui perdendo a vontade de ir pro CT. Estava quase largando a fisioterapia e, se fizesse isso, o passo seguinte com certeza seria largar de mim.

Lesao Luan Sao Paulo musculo
Cortesia de Luan

Hoje eu entendo que as dores que me derrubaram não vinham só de um pedacinho de osso alojado no músculo da minha perna. São feridas muito antigas, e elas só param de arder se consigo falar sobre elas.

Luan

Quem me deu força nesse tempo foi o Luciano, outro grande amigo que o futebol colocou no meu caminho. Ele me ligava todos os dias às 8h em ponto: 

“Cadê você, Pit?”, ele dizia — os caras lá do clube me chamam assim, por causa do apelido de Pitbull.

“Já tô aqui no CT te esperando. Você vem, né? Tá chegando?”.

Eu não tinha força pra levantar da cama, mas me trocava e ia só pelo Luciano. Graças a ele eu continuei o tratamento e me recuperei. Fisicamente, pelo menos.

Lembra que eu disse que o acolhimento em Cotia seria fundamental para me ajudar a tomar as maiores decisões da minha carreira? Então, depois de sarar da lesão, eu tive algumas propostas para deixar o São Paulo, inclusive de um clube rival.

Muito se falou nessa época. Que eu não queria ficar, que eu não estava focado, que eu estava forçando a barra pra sair. Pô, nada a ver… Eu nunca pensei em deixar o São Paulo, nunca me vi em outro lugar. Como não estava jogando, nem tive a chance de explicar isso para a torcida. Mas a verdade é que, por respeito e gratidão, eu só sairia se fosse um desejo do clube.

Luan volante camisa Sao Paulo
Lucas Seixas/The Players' Tribune

Renovei meu contrato e bem que tentei ficar feliz como antes, juro que tentei. Mas, sendo muito honesto, não consegui escalar o penhasco de novo. Não me conformava com aquela falta de energia, de ânimo, aquela tristeza, a pena de mim mesmo, um nó na garganta que não passava de jeito nenhum. Se a lesão na coxa estava cicatrizada, por que diabos o peito ainda me doía?

Fomos campeões da Copa do Brasil e da Supercopa, mas, pela primeira vez desde os meus 11 anos, eu não era mais protagonista no São Paulo. Perdi espaço no time, prestígio com a torcida e deixei de ser relacionado pros jogos. Fora dos planos, treinando separado e comendo marmita sozinho no refeitório, acabei emprestado pro Vitória. 

Tive muito medo de o São Paulo não me querer de volta. Eu já tinha passado mais tempo da minha vida dentro do que fora do clube. Era minha casa. O pior era o sentimento de não ter feito nem a metade do que fizeram por mim.

Mas a passagem por Salvador acabou sendo ótima. Lá eu pude ter uma sequência grande jogando de titular, o que me fez sentir como nos velhos tempos. Agradeço muito ao Vitória por isso. No final do empréstimo, retornei mais leve, sacudido da poeira e cheio de expectativa. Era a minha grande chance de retomar o que na minha cabeça eu tinha deixado pendurado em algum prego do CT da Barra Funda quando me lesionei: o meu presente como jogador do São Paulo.

Eu queria dar ao clube muito mais do que eu já tinha dado. Eu precisava disso pra seguir em frente. Vestir a camisa tricolor de novo, ouvir 60 mil no Morumbi empurrando o time, dar volta olímpica levantando troféu, tudo o que eu sonhava desde menino e ficou suspenso quando me machuquei. Mas aí veio a frase mais doída que a gente pode ouvir no futebol: “você não está nos planos”. 

Sim, mais um ano fora dos planos. Mais uma vez treinando separado como na época em que fotografei a marmita na geladeira.

Eu desabei de novo.

Nesses dias de aflição, eu fiz umas coisas meio desesperadas. Eu não estava nada bem. Ligava pro Carlos Belmonte, diretor de futebol, e pedia pra pelo menos fazer a pré-temporada. Esperava o Zubeldía nos corredores e implorava uma oportunidade de treinar com o time.

Luan Sao Paulo Players Tribune
Lucas Seixas/The Players’ Tribune

Passava muito tempo sozinho, no meu quarto em casa, fazendo lista de jogadores que sofreram lesões graves, mas deram a volta por cima… Zico, Ronaldo, Beckham, Ibrahimovic, Neymar. Eu tinha me recuperado, podia jogar em alto nível. Só que o medo de ser emprestado ou vendido e nunca mais voltar pro São Paulo acabava comigo. 

Teve um dia de semana em que eu estava assistindo a um jogo nosso pelo Paulista na TV e surtei. Uma angústia insuportável. Então, assim que a partida acabou, comecei a ligar e mandar mensagem pros meus companheiros que tinham acabado de jogar. Não lembro exatamente o que falei ou escrevi, mas deve ter sido algo preocupante, porque os caras foram lá em casa naquela mesma noite. Luciano, Jandrei, Alan Franco e Alisson.

E sabe o que eu fiz?

Não os recebi.

Me tranquei no porão e não saí pra falar com eles. Lá de dentro, soluçando de tanto chorar, eu pedia pra eles serem campeões. Sentia uma vergonha enorme. Não por aquela cena deprimente, mas por não jogar, não desfrutar do dia a dia com meus companheiros, não poder ajudá-los em campo e não saber como me livrar daquela impressão de que o mundo inteiro estava contra mim.

Foi quando decidi procurar ajuda e comecei a fazer terapia. Sozinho, dificilmente eu sairia do meu porão. Tem sido bom pra mim. Hoje eu entendo que as dores que me derrubaram não vinham só de um pedacinho de osso alojado no músculo da minha perna. São feridas muito antigas, e elas só param de arder se consigo falar sobre elas. Se consigo “elaborar”, como diz a Rosana Costa, minha psicóloga. 

Ainda tenho dias difíceis, não tão difíceis como antes, mas no geral me sinto bem melhor. Vou fazendo a minha parte e também contei com uma bênção de Deus: a volta do Crespo ao São Paulo me encheu de ânimo. Pô, é o cara que traz a garra argentina pro time, uma filosofia de jogo que tem tudo a ver com o velho Tanque de Cotia. É o cara da frase: “Onde as pernas não chegam, o coração vai chegar”, o cara com quem marquei um gol de título. Mesmo sendo o treinador que conhece o meu potencial, hoje eu só penso em ficar bem, treinar bastante e recuperar na bola a minha antiga condição.

Foi emocionante no primeiro treino do Crespo. Eu disse pra ele contar comigo no que precisasse. Se fosse pra eu começar no banco e entrar só cinco minutos, estava bom. Se fosse pra jogar 90, prorrogação e pênaltis, estava bom. Se fosse pra nem ser relacionado, estava bom. Se fosse pra ser substituído, estava bom. Eu só queria ajudar de alguma forma. O Crespo não me prometeu nada. Só me deu um abraço e falou pra eu continuar trabalhando. 

Estou nos planos novamente, pensei, enquanto a gente se abraçava.

Luan volante Sao Paulo comemoracao
Lucas Seixas/The Players' Tribune

Depois de tanto tempo vagando sozinho no inverno, eu sentia o sol quente na cara de novo e estava pronto pra vestir e honrar a camisa do São Paulo do jeito que ele achasse melhor. Porque, como diz um salmo que a minha mãe gosta e eu postei no Instagram na minha reestreia contra o Juventude, depois de 660 dias afastado do meu presente, da minha história, “o choro pode durar uma noite, mas a alegria vem pela manhã”.

Mesmo quando cheguei a acreditar que nunca mais jogaria aqui, todo dia tinha uma mensagem nova de algum torcedor são-paulino na rede social:

“Contamos com você, cara!”

“Te esperamos de volta.”

“Fica firme, vai dar tudo certo.”

Vocês nem imaginam o quanto esse apoio ajudou a me reerguer. Talvez eu nunca mais seja o jogador de 2021, mas faço o possível para ser um profissional e, principalmente, uma pessoa melhor a cada dia, a cada refeição no CT ao lado dos meus companheiros de time, a cada vez que abro a foto da marmita no meu celular e enxergo toda a minha história, a cada jogo, a cada noite de Libertadores… a cada manhã.

autografo Luan Sao Paulo

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