
Carta Para Mim Mesma Quando Jovem
Oi, Luiza de 15 anos! Como você está?
Te escrevo diretamente dos nossos 27 pra contar duas coisas que você não vai acreditar.
A primeira: estamos nos preparando pra disputar a nossa terceira Olimpíada.
TERCEIRA, Lu! Não é incrível? Vai ser em Los Angeles, em 2028.
A segunda coisa: nós chegamos até aqui porque em breve você vai se tornar a mais corajosa rainha da Festa da Polenta que Venda Nova do Imigrante (o Espírito Santo inteiro, se bobear) já viu. E esse fato mudará tudo pra gente. È vero! Parece conversa de maluca, mas calma que eu vou explicar.
Deve estar tudo meio confuso na tua cabeça desde que o médico falou aquelas palavras esquisitas, ontem: osteosarcoma femural.
Você estava louca pra jogar o campeonato de handebol, eu sei. Vinha treinando bem, se destacando, sentia aquela dorzinha chata no joelho, mas coisa pouca, e estava tão animada, tão certa de que o esporte era a tua razão de viver… Ele era — e ainda é — exatamente isso, Lu. O esporte salvou a nossa vida, literalmente, e disso você só vai se dar conta quando ficar um pouco mais velha. Porque foi pra tratar o que desconfiava ser uma tendinite que você procurou o médico a tempo. Já pensou se não fosse o esporte? Se não fosse tua vontade alucinada de jogar handebol? Deus nos livre!
Pra você ainda tá fresco, recente, mas eu nunca esqueci da nossa reação na hora em que o doutor mostrou o raio-x e traduziu o diagnóstico. Câncer nos ossos da perna esquerda. Caramba, que susto!
Logo de cara, a notícia não foi assim, vamos dizer, desesperadora. Isso pode soar estranho pras pessoas ao teu redor, mas hoje eu entendo melhor. Acho que a tua ingenuidade e a tua imaturidade de menina nos ajudaram nesse momento delicado. Elas protegeram a gente de sofrer um baque maior, do tamanho da gravidade da situação. Você até perguntou pro médico se seria “tranquilinho” participar do campeonato!
Como pode?!
Sim, aos 15 anos a gente sabe perfeitamente o que é um câncer. Mas até hoje, aqui em 2025, eu não deixo de me surpreender com o jeito que você está lidando com esse turbilhão aí em 2013. Cirurgia pra trocar o fêmur e o joelho por uma prótese, químio, rádio, queda dos cabelos, risco de vida, risco de amputação, risco de dar errado, nenhuma dessas informações te abalou ainda. Você só pensa no esporte.
Por isso, nos próximos dias, quando a ficha cair, vai ser insuportável se imaginar longe das quadras pelo resto da vida. A tristeza pode bater com força. Então eu gostaria que você respirasse fundo e estivesse preparada, Lu. Eu preciso que você aguente firme, positiva e se mantenha nos abraços e carinhos da nossa gente em casa e dos amigos. Isso será fundamental pra você seguir em frente.
Sabe, Lu, garotas da roça como nós, que passam a infância correndo, saltando, rodopiando, nadando, simplesmente não conseguem separar vida e movimento do corpo.
Onde começa um e termina o outro? Aqui perto dos 30 anos eu ainda não encontrei essa fronteira. Talvez ela nem exista pra nós. Será que é isso o que nos faz fortes?
De todo modo, ter o handebol arrancado desse jeito de você, separar abruptamente a vida do movimento do corpo sem que tenha sido uma opção sua… Olha, não vai ser fácil. Eu sinto tanto. Mas conta comigo, me escreve quando quiser desabafar. Vou estar sempre por perto, te ouvindo, te acolhendo e tentando ajudar. Eu sei pelo que a gente passou e te admiro um monte, viu?! Você é tão leve de espírito, gosta tanto de viver… Quero muito te agradecer, muito mesmo, por ter conseguido se manter serena e corajosa na nossa hora mais escura.
Capacitismo é uma forma de preconceito contra pessoas com deficiência baseado na ideia de que os corpos e as mentes “não deficientes” são superiores, ou mais válidos. Com as mulheres é ainda pior, mais cruel, porque é mais invasivo.
- Luiza Fiorese
Serena, corajosa e meio atrevida, né? Kkkkkk. Então… Aqui entra a Festa da Polenta em Venda Nova, a nossa cidade. Tudo vai acontecer nos seus 19 anos. Pouco tempo antes você terá ido morar sozinha, porque vai te incomodar o excesso de cuidado, o zelo demasiado, aquele jeito piedoso que passaram a lidar com você depois da cirurgia e do tratamento. O pessoal de casa não faz por mal. É uma situação nova, inesperada, e por falta de informação eles talvez exagerem, te tratem de um jeito inadequado.
Mas você fará bem de não gostar que te resumam à tua condição física, a uma perna com metal no lugar dos ossos, a alguém que não sonha, não deseja, alguém que não pode nada além de passar o dia no sofá sob olhares tristonhos de pena. Promete uma coisa pra mim, Lu? Se em algum instante te passar pela cabeça que é errado se sentir mal com essa situação ou se rebelar contra ela, aguenta firme. Promete que aguenta?
Porque não há nada de errado. Nada! Você estará certíssima em querer que te vejam e te tratem de outra maneira. Não esquece. É importante.
Aqui em 2025, isso que vai te irritar profundamente tem nome. É capacitismo, uma forma de discriminação ou preconceito contra pessoas com deficiência baseado na ideia de que os corpos e as mentes “não deficientes” são superiores, ou mais válidos. O capacitismo velado, como o que vai te acontecer em casa, não deixa de ser capacitismo. Então é pra se irritar mesmo. E deixa eu acrescentar uma coisa, Lu. O capacitismo com as mulheres é pior, mais cruel, porque é mais invasivo. São coisas chatas que farão parte da tua vida agora. Elas vão te aborrecer um bocado, mas você vai saber contornar e lutar, fica tranquila. O importante é não permitir que ninguém diga o que é bom ou ruim pra você, além de você mesma. Você é a Luiza. Tem uma vida enorme, família, amigos e uma perna com prótese. Ela é parte de você, mas não é você inteira nem te define ou resume.
Lembra sempre disso, combinado?
Bom, nesse sentido, a Festa da Polenta vai ser uma prova de fogo. Algo que você quer muito, mesmo sem elaborar de forma consciente. Uma ousadia danada se inscrever no concurso de rainha da festa, tipo miss, é ou não é? Sem dúvida, mas e daí? E, olha, Lu, tudo bem se na véspera, por um instante, você se sentir insegura ao pensar que será a única concorrente que manca desfilando na passarela pros jurados. Essa insegurança faz parte e não vai durar muito. Você vai se livrar dela de um jeito maravilhoso.
Na manhã do dia da festa, enquanto se arruma sozinha no quarto, você vai parar na frente do espelho, ver a tua grande cicatriz na perna e ter uma epifania. Vai dizer, olhando no fundo dos teus olhos:
“Quer saber? Eu estou com vontade de fazer isso. Eu quero fazer isso. Vou lá e vou ser eu. Simples. Vou ser a Luiza. Vou desfilar, dançar, rir e me divertir”.
Parece pouco, parece infantil. Não é nem uma coisa nem outra.
Nesse dia você se tornará adulta. E talvez não haja algo mais relevante em todo o seu processo, sabe por quê? Porque essa decisão diante do espelho, leve, mas carregada de coragem e sentido, será a tua construção. Você não escolheu ter um câncer na perna. Você não escolheu abandonar o esporte. Mas ali você escolherá jamais negar quem você é. E isso é grandioso, Lu. Grandioso, potente, lindo! E, vou logo avisando, vai te transformar e te conduzir por caminhos inesperados e deslumbrantes, te segura!
Pra começar você vai trazer o esporte de volta pra tua vida. Não é legal?! Se não dá como atleta, que seja como jornalista esportiva. Essa será a tua profissão, essa, sim, uma escolha que você fez. E logo no primeiro ano da faculdade você tomará mais uma decisão acertada: em vez de pagar por uma festa de formatura, poupará o dinheiro para realizar o sonho de infância de conhecer o Japão.
Agora, por que o Japão, né?
Você é a Luiza. Tem uma vida enorme, família, amigos e uma perna com prótese. Ela é parte de você, mas não é você inteira nem te define ou resume.
- Luiza Fiorese
Você não entende essa fissura no Japão. Por que o Japão e não a Disney como todas as nossas amigas?! Eu também nunca entendi. Seja como for, teu plano será simples: pegar o diploma em 2019, raspar as economias no banco e voar pra Tóquio para cobrir a Olimpíada de 2020 como repórter freelancer. Ótimo plano, Lu. Só faltou combinar com o destino.
Calma! Não precisa fazer essa cara de decepção que eu sei que você está fazendo (te conheço! kkkk). Você vai pra Tóquio, só que de outro jeito.
É que no fim de 2018, um ano antes de se formar na faculdade, você vai participar do programa da Fátima Bernardes, na TV Globo, e uma telespectadora muito especial estará assistindo. O nome dela é Gizele Dias, mas no futuro você a chamará de anjo da guarda. Assim que te vir entrar, mancando como na passarela do Rainha da Polenta, com a tua grande cicatriz na perna, ela vai dar um pulo na poltrona diante da TV.
“Uau!! Essa menina pode ser jogadora de vôlei!”
A Gizele não fará ideia ainda da tua história no esporte, dos anos todos que você se dedicou ao handebol, mas uma atleta sabe reconhecer outra. Então, alguns dias depois de ouvir tua história, ela vai te telefonar e bagunçar a tua cabeça:
“Luiza, você conhece o vôlei sentado? É esporte paralímpico, eu sou da Seleção Brasileira, e acho que você se daria bem. Não quer vir fazer um treino com a gente?”
Ai, Lu, você vai precisar respirar fundo quando essa hora chegar. Porque vai sentir um aperto no peito e ficar na dúvida. Muitas sensações fortes ao mesmo tempo inundando o coração, sabe?
Por isso, respira.
Mais uma vez… respira.
Você estará prestes a fazer mais uma cirurgia, bem grande, pra trocar a prótese e não será a última. Mas não é isso que vai te assustar. O mais difícil será lidar com a possibilidade real de preencher o enorme vazio que se instalou em você desde que precisou se distanciar do handebol. Vai se perguntar se está preparada para preencher esse vazio com outro esporte. Quando a Gizele te ligar com o convite pra conhecer o vôlei sentado fará seis anos que você não entra numa quadra.
Na faculdade até vai rolar um envolvimento na atlética, organização de jogos e tal, mas isso será muito maior. “Ai, meu Deus, como vai ser? Como eu vou me sentir? Será que eu consigo?”, são as perguntas que você vai se fazer. Pois é. Aquela insegurança vai bater de novo. Hora, portanto, de a Luiza lutadora parar na frente do espelho e repetir pra si mesma: “Quer saber? Eu estou com vontade de fazer isso. Eu quero fazer isso. É o esporte, é o meu grande amor me chamando. Vou lá e vou ser eu. Simples. Vou ser a Luiza”.
E você se conhece, não é? Não preciso dizer que, lógico, você vai se apaixonar pelo vôlei sentado. Vai começar a treinar em Suzano, São Paulo, e no final do mesmo ano, junto com a formatura na faculdade, vai ser convocada para a Seleção Brasileira! É assim que você vai pro Japão. Os Jogos Olímpicos e Paralímpicos de 2020, porém, acontecerão só em 2021 por causa de um vírus que se espalhará pelo mundo inteiro causando tristeza, dor, desespero e, entre outras medidas de segurança, o adiamento das competições por um ano. Esteja preparada para usar máscara de proteção, Lu. Vai ser como uma nova peça de roupa pra todo mundo.
Por um loooooongo período, num esforço para conter a disseminação o vírus, não vai ser possível se reunir com as pessoas em ambientes fechados para conversar, tomar um café, fazer compras, nada. Menos pior que você poderá usar esse tempo pra treinar em casa por conta própria e se familiarizar com os fundamentos da nova modalidade. Pede pra mamãe te ajudar. Vocês podem usar a garagem como quadra, esticar um elástico como rede e assim dá pelo menos pra ir aprimorando o saque. Vai por mim, Lu. Isso será útil quando você entrar nos jogos durante as Paralimpíadas. Teus saques ajudarão a seleção a conquistar a medalha de bronze em Tóquio! Sim! Não é o máximo?
Vai ser inesquecível. E aí, quando você estiver no pódio vendo a bandeira brasileira subir, tudo finalmente fará sentido. Não haverá mais perguntas, insegurança, medo, nem vazios. Japão, esporte paralímpico, vida, movimento… Todos as tuas paixões e teus sonhos estarão conectados dentro de você. Sinta-se fortalecida, Lu. Porque você merece, porque você batalhou e também porque vai precisar ser forte quando voltar pro Brasil.
Ai, Lu, desculpa trazer essa notícia… Não encontro um jeito razoável de te contar e creio que esconder não seja a melhor saída. Lu… O maldito vírus vai levar a Vovó Ema e a Vovó Terezinha ao mesmo tempo, e um tempo depois, o Vovô Joaquim também. Sim, você terá a chance de colocar a medalha de Tóquio no pescoço deles numa linda manhã de sol em Venda Nova. Vai ser legal curtir a conquista que contém tanto deles também, e a lembrança desse dia, terna e cheia de saudade, pulsará pra sempre em nós.
Mas já faz quatro anos e continua doendo muito. Eu ainda não consegui me recuperar. A partida deles mudou a gente, sabe? Sinto que eu era uma pessoa enquanto os tinha por perto e sou outra depois que eles partiram. Acho que eu perdi um pouco da minha felicidade. Estou certa, contudo, de que onde estiverem eles seguem torcendo por nós e até comemoram com uma bela macarronada caseira o Campeonato Mundial de Vôlei Sentado que a gente conquistou em 2022, na Bósnia.
Bença, Vô. Bença, Vó. Eu amo vocês!
Depois, Lu, na Paralimpíada seguinte, em Paris 2024, você vai lembrar direitinho porque detesta perder. A velha Luiza do handebol estará de volta kkkkk.
Acho que este é um conselho em vão, mas vou te dar mesmo assim: tenta levar a derrota de um jeito mais leve. Apesar dela, haverá coisas boas pra lembrar. Jogos em Paris, caramba! E com nosso amor do lado. Que oportunidade! Vai ser demais, te garanto. E você será titular do time dessa vez! O Brasil disputará um torneio lindo, lutando até o último ponto com todas as adversárias.
Ok, perder o bronze pro Canadá vai ficar entalado na nossa garganta, eu admito. Mas as derrotas às vezes servem pra gente aprender, treinar mais. Pensando aqui friamente com meus botões, eu acho que a gente perdeu na parte psicológica. Precisamos melhorar nisso pra brigar pelo ouro em Los Angeles 2028. Bom, mas por que será que eu tenho a sensação de que aí em 2013, quando nada disso ainda aconteceu, você está lendo estas linhas com uma vontade de revanche escorrendo pelo canto da boca? Ah, dona Luiza Guisso Fiorese! Eu te conheço!
Mas, olha, Lu, brincadeiras à parte, eu quero terminar dizendo algo importante que eu descobri sobre nós, depois de tudo que passamos. Que é o seguinte: nós somos mais do que as nossas medalhas ganhas ou perdidas, somos mais do que o câncer, somos mais do que as cirurgias, do que a nossa cicatriz. Eu acredito que a vida transformou a gente num canal. Vai ver até o fato de termos nos formado em jornalismo tem a ver com isso, sei lá… Porque o que eu mais sinto vontade hoje é de me comunicar com outras pessoas com deficiência, muitas pessoas, todas!, e contar da nossa luta, dizer pra não darem ouvidos quando alguém disser, com palavras ou gestos, que elas não podem sonhar alto.
Eu sinto como se a gente tivesse essa missão de gritar que isso é tudo mentira. Berrar que a gente pode e deve sonhar alto, sim! Dizer que a gente é capaz de chegar aonde quiser. Com as nossas limitações, as nossas adaptações, no nosso tempo, mas a gente chega, portanto podem ir saindo da frente! É essa mensagem que eu quero transmitir, Lu. Você me ajuda?
Conto com você e vê se cuida!
Um beijo,
Luiza