Carta Para Mim Mesmo Quando Jovem

Gabriel Bianchini/Nike

Caro Petrucio de 15 anos, 

Escrevo a você direto do futuro, onde estou me preparando para uma competição muito especial. Eu sei que, por agora, você deve estar se arrumando para mais uma partida de futebol. 

O quê? Tem dúvida de que sou eu? Vou te falar, então, de coisas que só a gente sabe… 

Eu e você sabemos quem são os seus ídolos, Ronaldinho Gaúcho e Daniel Alves. E nós dois sabemos, também, o quanto você se inspira neles. Nos instantes mais decisivos, esses caras representam. É o que você também quer fazer. Representar para o Brasil. Representar o Brasil.

Eu te digo, Petrucio, que essas referências vão te guiar para o futuro. E isso será importante porque, mesmo que você ainda não saiba, o que está por acontecer vai mudar a sua vida de um jeito que você não pode imaginar.

Pega a visão.

Daqui a algum tempo, o seu esporte não será mais o futebol. Mas não fique triste. Veja só, o problema não está contigo, então, não precisa se culpar ou se preocupar. São os outros que não sabem enxergar o talento quando uma condição física parecer ser o que define alguém. 

Petrucio Ferreira carta The Players Tribune atletismo
Cortesia de Petrucio Ferreira

Confia em mim. Eu sou a sua versão mais experiente, eu sei que eles vão olhar para você como um deficiente, como se você fosse incapaz de realizar o que as demais pessoas fazem. Só que você não é deficiente. Pelo contrário, você é eficiente. E você vai provar o quanto eles estão enganados.

Sim, eles só agem desse jeito porque não te conhecem de verdade. Ah, se eles soubessem que você, agitado desde criança, pode correr muito mais do que os outros, mesmo sem a bola nos pés… E eles também desconhecem que a sua história envolve uma fatalidade, fruto das circunstâncias em que você foi criado. Um acidente com a máquina de moer capim, quando você tinha dois anos de idade, que quase fez com que todas as portas do mundo se fechassem pra você, lembra?

Só que você não se deu por vencido. Não é do seu estilo. No seu caso, os obstáculos vão te fazer ficar mais forte. E, então, você passa a resistir a todas as adversidades. Passa a não ter medo de qualquer adversário, seja no futebol, seja na roça, como quando você escapou de um enxame de abelhas.

Tá, isso pode parecer divertido hoje, mas, na hora, você ficou aterrorizado. 

Talvez as pessoas que te olham torto não saibam que Deus te presenteou com o dom da velocidade, a mesma que você usou para fugir daquele ataque das abelhas. Você esbarrou nelas sem querer e só se lembra de ter corrido como se fosse a última coisa que fosse fazer na vida. A cada instante, quando pensava em parar, você ouvia um zunido de abelha. Então, quando não aguentava mais, você simplesmente parou, disposto a se entregar e esperar as ferroadas no lombo. Só aí descobriu que uma delas tinha ficado presa em sua roupa. Não, ela não estava te perseguindo. A abelha foi carregada contra a vontade e apenas tentava se libertar…

Ainda consigo ver seu rosto pálido de tão amedrontado que ficou. Um cabra do sertão que nem tu correndo de umas abelhinhas, Petrucio?

Petrucio revezamento atletismo Paralimpiadas
Tom Dulat/Getty Images

Mais ou menos nessa época, ainda indignado por não te aceitarem no futebol, você vai sentir quando chegar a vez de ser recrutado para brilhar em outro esporte. Pense bem, alguma coisa que você faz com muita naturalidade desde criança. A corrida fugindo das abelhas já era uma pista… 

Isso mesmo! Um dia, um organizador dos Jogos Escolares que acontecem em sua cidade, São José do Brejo do Cruz, vai chegar perto de você e perguntar: “Por que você não se inscreve em uma prova de atletismo na modalidade paralímpica?”.

Tá certo, as palavras “paralímpica” e “atletismo” não são exatamente novas pra você, mas também é verdade que não faz lá muito tempo que você escutou esses termos pela primeira vez. Foi durante os Jogos de Londres, em 2012, quando o Alan Fonteles conseguiu aquele feito, um recorde na categoria. 

Sim, correr você sabe. O organizador dos Jogos Escolares viu isso na quadra de futebol, mas você reconhece que não tem técnica ou nenhum entendimento do que são as competições nessa modalidade. 

Qualquer outra pessoa teria mil motivos para seguir tentando a sorte no futebol e não embarcar nessa aventura, mas, por favor, aceite o desafio. Aceite o convite para participar da seletiva.

Te juro que depois disso, Petrucio, tudo vai acontecer rápido demais. 

Primeiro, você vai conseguir uma vaga para a etapa regional, em João Pessoa. 

Em seguida, conquista a vaga para o Nacional, em novembro de 2013, no Parque do Ibirapuera, em São Paulo.

E quando você menos esperar, Petrucio, vem o impensável. 

Petrucio carta TPT The Players Tribune eficiente
Gabriel Bianchini/Nike

Você está com seus pais no sítio. E, de repente, sua mãe atende um telefonema – sim, só ela tem telefone celular. O quê? Um convite? Para o Sul-Americano? No Chile? “Só pode ser trote”, você pensa. 

Não, não é trote. Pode acreditar. Isso é real. 

O que para muitas pessoas pode não significar nada, para você, é uma conquista e tanto. Em pouco tempo, o seu sonho de representar o país como atleta está se tornando realidade.

Mas, Petrucio, eu queria te pedir uma coisa. Não fica muito chateado se, de repente, surgirem outros obstáculos no meio do caminho. Nós sabemos do que você é feito, que você cresce na adversidade, mas, às vezes, a dificuldade pode abater até mesmo os mais valentes. 

Em 2015, tudo parece se encaminhar para uma vitória sem escalas ou oponentes à altura, com o devido respeito a todos eles. Você consegue visualizar, inclusive, as suas passadas na pista. Na sua cabeça, os movimentos já estão calculados. Só falta a competição começar. Você vai esperar, ansioso. E vai ser aí que você se machuca.

Me desculpe, mas tenho más notícias: você não poderá competir em seu primeiro Mundial.

Eu queria que você, Petrucio, tivesse a cabeça que eu tenho agora para entender o porquê de algumas coisas nas nossas vidas. Na verdade, nem eu sei, passado tanto tempo, por que foi mesmo que eu tive de me lesionar daquele jeito. A única coisa que eu sei te dizer é que... Vai doer. E, não, não estou falando apenas da dor física. Tem a ver com a mente e com o coração. Não vou mentir, você vai sofrer, mas, assim como em outros momentos da sua vida, essa dor vai ser o seu combustível. 

Existe uma lição muito valiosa a ser aprendida. A lição da paciência.

Petrucio Ferreira

E no meio do desespero, quando tudo parece perdido, você vai entender que é preciso ter uma conversa consigo mesmo. Você quer ouvir o que tenho pra te dizer? E, aos poucos, você compreende que, nesse processo todo, existe uma lição muito valiosa a ser aprendida. A lição da paciência. 

Vai ser difícil, mas você vai superar, sim. Na hora em que se sentir sozinho, lembre-se que os planos de Deus são insondáveis, mas que Ele te protege mesmo quando parece ter te esquecido. 

A sua fé também vai te dar esperança na recuperação. E você vai torcer para os atletas brasileiros que estão disputando essa competição de 2015. A vitória deles é a sua vitória, também. E mais importante do que tudo isso: você vai se dedicar ao máximo para se preparar para os Jogos de 2016.

E é aqui que você vai perceber, de verdade, como tudo valeu a pena. 

Eu bem que gostaria, mas não sou capaz de dizer o que significa ganhar uma medalha de ouro no Rio de Janeiro. Em casa. 

Petrucio Ferreira medalha ouro Paralimpiada
Alexandre Loureiro/Getty Images

É como se todo o esforço, todas as dores, todos os olhares de desconfiança e desaprovação passassem pela sua cabeça no exato momento em que você está ouvindo o hino brasileiro, lá no alto do pódio. 

A sensação é assim, tão inesquecível, porque no lugar mais alto do pódio você vai sentir que o seu esforço está sendo recompensado. E você será muito grato por isso.

Mas posso te dizer com segurança, Petrucio, que o sentimento que mais vai te marcar é outro, algo que você talvez não consiga entender porque ainda é muito novo.

Vou tentar te explicar.

O que vai te tocar no fundo do coração é a possibilidade de ser um exemplo para outras pessoas, que também são eficientes como você. É gente que não desiste, mas cresce na adversidade. É gente que desafia o preconceito. 

E, num dia, quando estiver sobrevoando o mar, na volta de uma competição internacional, você finalmente vai compreender o que aconteceu na sua vida.

Vem um clique na sua cabeça.

“Caraca, o mundo é grande.”

E você vai entender num instante que foi você, um garoto que veio de um sítio no interior da Paraíba, no meio do mato, que quase não teve oportunidades... Justamente você, o atleta paralímpico mais rápido do mundo, e o mais celebrado naquele momento.



Calma, o sucesso não vai mudar o seu jeito de ser. Você continuará inquieto e ansioso a ponto de não conseguir nem mesmo assistir uma série de TV sem querer saber, logo de imediato, o que acontece no final. Ou, ainda, você vai ser do tipo de atleta que não gosta do fim de semana. O seu negócio, Petrucio, não é descansar, é correr. 

Sempre em movimento, você vai começar a preparação para os Jogos de Tóquio já em 2016. A sua dedicação será total. E é por esse motivo que, em 2020, você vai ficar aflito. Em primeiro lugar, porque o mundo estará em pânico com o surgimento de uma pandemia. 

Covid-19. 

Guarde essa sigla. Infelizmente, por muitos meses, você vai se deparar com ela no noticiário. É triste o que vou dizer agora, mas muitas vidas, no Brasil e no mundo, vão nos deixar. A tristeza é verdadeira. Em segundo lugar, justamente essa mesma pandemia vai colocar em dúvida a realização dos Jogos de Tóquio de 2020. 

No começo, ninguém sabe dizer se o evento será cancelado ou se vai ser somente adiado. Você vai agir do seu jeito. Vai se reinventar. Então, quando vem a notícia de que os jogos ficarão para 2021, você terá a certeza do que deve ser feito. Nada de descanso. Seu caminho será outro, com um condicionamento todo especial. De volta às suas origens, lá no sítio dos seus pais na Paraíba. 

No lugar mais alto do pódio, você vai sentir que o seu esforço está sendo recompensado.

Petrucio Ferreira

O momento é difícil pra todo mundo, sim. Mas você vai entender que tem o privilégio de ficar junto da sua família. Perto dos seus pais. E do seu sobrinho, que te ajuda na preparação. E você vai usar tudo o que está à sua volta para ficar em forma, até mesmo as técnicas da infância, de quando você corria atrás das galinhas no meio da caatinga, livrando uma pedra, uma jurema, um cardeiro, um pé de xique-xique… 

Todos esses obstáculos que, de alguma forma, te ajudaram a ser o corredor que você se tornou. Para a surpresa de muitas pessoas, você vai estar até mais condicionado do que antes.

Para isso, o trabalho de Pedrinho, seu treinador, será essencial. Ele estará com você desde o começo. Com o tempo, as pessoas vão te questionar sobre isso, querendo saber por que você não troca de técnico. Elas vão dizer que existem outros, ainda melhores do que ele, em outras partes do Brasil e do mundo.

Mas você estará com Pedrinho e não abre. Como poucas pessoas, ele sabe que o atleta de alto rendimento não é uma máquina. Pedrinho trabalha não só o atleta, mas a pessoa além do atleta. 

Paralimpiada bandeira Petrucio Ferreira Dos Santos
Buda Mendes/Getty Images

Eu preciso terminar esta carta, Petrucio, porque não quero que você se atrase para o seu jogo de futebol, mas tem umas coisas que eu ainda quero te contar. Você vai ter uma surpresa especial na véspera dos Jogos de Tóquio. Na cerimônia de abertura, sabe quem vai carregar a bandeira do Brasil? 

Isso mesmo, Petrucio, você.

Nos dias anteriores à cerimônia, você vai enxergar os principais momentos de sua carreira. Aos 24 anos, você ainda tem muito pela frente, mas quem poderia imaginar que um garoto que saiu de uma cidade com menos de 2.000 habitantes teria a oportunidade de representar o Brasil dessa maneira?

Junto dessa bandeira, você vai carregar o orgulho de ser quem é: Petrucio Ferreira dos Santos, nordestino, atleta paralímpico brasileiro. 

E você vai sentir, também, que não estará sozinho nesta caminhada. Com você, seguirão todos aqueles, homens e mulheres, adultos e crianças, que ousam driblar as adversidades, assim como você fez – do jeito que aprendeu ao se inspirar em Ronaldinho Gaúcho. E você vai carregar, em Tóquio, a bandeira do Brasil com o orgulho que vem do Nordeste brasileiro, assim como Daniel Alves sempre fez. Eles não serão seus ídolos por acaso. E assim você também estará lá, representando.

Petrucio atletismo paralimpiadas medalha ouro
Gabriel Bianchini/Nike

Você vai entender, Petrucio, que o esporte que você representa tem o poder de dar visibilidade aos jovens talentos que estão escondidos por todo o nosso Brasil. Saiba que quando você estiver passando na TV eles vão te olhar e, com admiração, vão se inspirar em você e na sua jornada.

Mesmo sendo tão jovem, você já passou por tanta coisa (um ataque de abelhas não é nada perto das provações que virão depois) que, a essa altura, já deve ter aprendido outra lição, a maior que o esporte pode oferecer: na linha de chegada, as dores do corpo e a esperança da alma se reencontram.

Com a sua história, você vai ensinar pra muita gente que o lugar mais alto do pódio tem a ver com a conquista, com o trabalho e com o orgulho de ser quem você é. 

Do Brasil. Do Nordeste. Da Paraíba. 

Com muito amor no coração e o chapéu do sertanejo na cabeça.

Atenciosamente,

autografo Petrucio Ferreira

VEJA MAIS