O Racismo Não é Uma Nota de Rodapé na História

Sam Maller/The Players' Tribune

Certa vez entrevistei Lester Maddox no meu programa de televisão. Era 1969, e ele era muito conhecido na época por ser um segregacionista do Sul que largou seu restaurante de frango para virar político. Maddox e eu tínhamos pontos de vista diametralmente opostos. Ele deixou o setor da gastronomia depois da aprovação da Lei dos Direitos Civis, em 1964, para não precisar atender clientes negros, ao passo que eu uma vez me neguei a jogar uma partida de exibição porque um restaurante havia recusado atendimento a mim e aos outros jogadores negros do meu time.

Maddox armou um circo em torno da sua recusa à integração racial no seu restaurante. Brandia machados e armas em protestos pacíficos e argumentava, ruidosamente, que ser obrigado a atender negros era uma afronta à liberdade dele. Fechou seu restaurante em Atlanta, disputou o governo da Geórgia e ganhou.

Então, por que eu daria espaço a um indivíduo que sustenta essas crenças racistas? Primeiro, porque parte da liberdade é permitir que todos — até mesmo as pessoas mais odiosas — possam falar. E, em segundo lugar, isso também mostra como uma pessoa chega a ter tais crenças. Veja bem: Lester Maddox não era exatamente um gigante intelectual, então duvido que, mesmo se tentasse, ele fosse capaz de questionar a cultura em que nasceu. Mas tê-lo no meu programa o expôs como o tonto que ele era, além de permitir que outras pessoas pensassem se era mesmo plausível a política de “separados, mas iguais”.

Embora aquele momento já tenha ficado para trás há muito tempo, fico impressionado com as semelhanças daquela época com a que estou vivendo agora. Até hoje, os pretos e pardos ainda lutam por justiça, os racistas ainda ocupam os cargos mais altos do país, e as crianças ainda crescem sob normas culturais que não são tão diferentes daquelas com as quais Lester Maddox cresceu.

Os efeitos do terror racial perpetrado ao longo de séculos não desaparecem simplesmente porque a sociedade assim deseja.

Bill Russell

Mas, quando eu digo que pretos e pardos continuam lutando por justiça 50 anos depois de eu entrevistar um segregacionista proeminente — “um rapaz do interior à moda antiga”, que disputou um cargo público com uma plataforma de ódio e venceu [1] —, não quero dar a impressão de que fico surpreso com isso. Não fico. Os brancos ficam surpresos com isso.

Aliás, acho que os brancos muitas vezes se surpreendem com o fato de a injustiça racial ainda existir, não se limitando a algumas “maçãs podres”. Esta surpresa é particularmente perigosa porque a injustiça racial é galopante em todos os setores da sociedade, da educação à saúde e os esportes, e o fato de muita gente ainda se surpreender com isso revela exatamente como são diferentes as experiências de vida dos negros e dos brancos.

Bill Russell Boston Celtics
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Cresci em Monroe, na Louisiana, nos anos 1930 e início dos 40, numa família que era capaz de rir apesar do terror racial que nos cercava. Houve uma noite em que a Ku Klux Klan veio buscar meu avô. Ele sabia que estavam vindo atrás dele, então levou sua família para algum lugar seguro e se sentou na sua casa esperando a chegada da Klan. Ele nunca disse nada sobre como foi esperar, sozinho no escuro, por homens que tinham a intenção de assassiná-lo, mas deve ter sido aterrorizante e enfurecedor em partes iguais. Quando eles chegaram, alguém deu um tiro, então meu avô foi pegar sua espingarda para poder reagir. O vô começou a atirar e continuou recarregando a arma até os homens da Klan irem embora. A história foi contada e recontada em toda a comunidade — o raro caso de um homem negro enfrentando a injustiça sem sofrer retaliações brutais. Todos riam quando chegava na hora da história em que a KKK ia embora correndo. Era um momento de puro alívio, mesmo só contando — mas todos nós sabíamos que eles poderiam voltar no dia seguinte.

Uma vez, meu pai ficou sem gasolina no seu caminhão de trabalho no final do dia e teve que ir a pé para casa. Ele estava andando na estrada quando dois homens brancos pararam ao lado dele num carro e perguntaram: “Oh, moleque, você sabe correr?”. Meu pai não disse nada e continuou andando. Um dos homens levantou uma arma antes de repetir a pergunta. Meu pai começou a correr. Uma bala passou zunindo. Para não ser morto, meu pai se jogou da estrada para a vala lateral. Quando contava essa história, ele costumava dizer que precisou gritar para as cobras se afastarem, o que sempre motivava gargalhadas.

Ele nunca disse nada sobre como foi esperar, sozinho no escuro, por homens que tinham a intenção de assassiná-lo, mas deve ter sido aterrorizante e enfurecedor em partes iguais.

Mas havia algumas histórias das quais ninguém conseguia rir — histórias sobre o desaparecimento de homens negros. Era assim que os linchamentos aconteciam naquela época, discretamente, sem nem mesmo uma linha nos jornais. Os negros tinham muito medo de questionar publicamente o que tinha acontecido com os homens que desapareciam, mas, da porta de casa para dentro, havia muitas especulações.

Tudo isso pode parecer uma história arcaica, sem relação com os dias de hoje. Afinal, são histórias da minha primeira infância, histórias que têm 80 anos. Mas, em termos de tempo, 80 anos são apenas uma ou duas gerações. As crianças negras de hoje não crescem com medo de serem mortas pela Klan no meio da noite — mas temem que a polícia o faça. Os efeitos do terror racial perpetrado ao longo de séculos não desaparecem simplesmente porque a sociedade assim deseja. No entanto, nem tudo está perdido. Há várias formas de fazê-los desaparecer. Eles desaparecem com uma reflexão profunda, com um exame das nossas normas culturais e nossas estruturas de poder, com o desmantelamento e reconstrução das nossas instituições, e com o fim da supressão de eleitores, para que todos possam votar pela mudança cima pra baixo nas eleições. Em 1969, os pretos e pardos lutavam contra injustiças sociais que são igualmente disseminadas hoje em dia — só o modo de administrá-las mudou. Elas são fáceis de enxergar quando se olha especialmente para a política. 

Questionado sobre a integração racial para um artigo publicado em outubro de 1967 na Esquire, Maddox disse, com seu sotaque sulista: “Quando o governo tentou obrigar os meus clientes a se sentarem ao lado dos crioulos, eu fiquei possesso. A gente não topa essas coisas por lá. Sou um sujeito pacífico, e sempre tratei com justiça os meus ajudantes de cor, com o devido respeito e salários decentes. Só não vou ser vizinho de porta deles, não, senhor”. Em outras palavras, Maddox não tinha nada contra os negros, desde que fossem subservientes aos brancos e permanecessem nos seus bairros. Este sentimento continua firme e forte hoje em dia.

Em julho de 2020, por exemplo, Donald Trump, um empresário nova-iorquino que virou político, tuitou sobre o fim de um programa governamental criado para combater a segregação racial em moradias nos subúrbios: “Tenho a satisfação de informar a todas as pessoas que vivem sua Vida de Sonhos nos Subúrbios que vocês não precisarão mais ser incomodados ou financeiramente prejudicados por terem uma moradia para pessoas de baixa renda sendo construída no seu bairro...”. É claro que, quando ele diz que “moradias para pessoas de baixa renda” seriam construídas “no seu bairro”, ele quer dizer que “pessoas negras e pardas” se mudariam para os subúrbios, que ainda são majoritariamente brancos devido a disparidades econômicas e restrições discriminatórias na concessão de crédito imobiliário. Apesar de separadas por 53 anos, a única diferença substancial entre as declarações dos dois homens é o sotaque.

Negros esportes americanos Bill Russell Mohammad Ali
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Uma mudança real demora — e muito. Isso é revoltante, mas não surpreendente, quando se pensa em termos de alicerces. Os Estados Unidos são um país de contradições por causa da sua fundação. Por um lado, há a ideia do que os Estados Unidos deveriam ser, e, por outro, do que os Estados Unidos realmente são. Os Estados Unidos afirmam ser a terra dos livres, mas foram fundados sobre o genocídio indígena e construídos sobre a escravidão. Como resultado dessa origem discordante, os Estados Unidos são um país em conflito com seu passado.

Enquanto uma grande parcela dos norte-americanos considerar que a escravidão e a injustiça racial são meras notas de rodapé na história, não haverá como superar o racismo. Apenas 53 anos não bastam; aliás, nem 153 anos bastam. É como se desculpar por algo sem saber pelo que você está se desculpando — nenhum entendimento real decorre disso. Se os EUA não refletirem sobre seu passado, as divisões só vão piorar.

Uma mudança real demora — e muito.

Mas o engraçado no passado é que ele nunca passou de verdade. De certa forma, toda a minha vida foi construída sobre um alicerce construído por meus pais. Isso não é exclusividade minha. Para o bem ou para o mal, a sua vida também foi construída sobre os alicerces, sejam eles quais forem. Com os EUA não foi diferente. Seus alicerces estão imediatamente aparentes; basta olharmos.

Eles impregnam tudo, dos homenageados em monumentos e estátuas à história que ensinamos nas salas de aula e às mascotes que escolhemos para nossos times. Recentemente, estátuas de confederados foram derrubadas, algumas de forma planejada, e outras à força. Eu me lembro de quando um monumento em homenagem aos soldados confederados foi construído em 1963, em Boston, embora não estivéssemos no Sul, exaltando pessoas que lutaram em prol da escravidão, apesar de já terem transcorrido então 100 anos desde que Lincoln emitira a Proclamação de Emancipação. Aquele monumento foi erguido em resposta ao fim da segregação. Foi construído pelas Filhas da Confederação, longe do Sul, como uma reminiscência do Velho Grande Sul. Expressava nostalgia por uma época em que os negros foram escravizados, em que havia orgulho de lutar contra a liberdade, e continua sendo um exemplo claro de como o coração do passado pulsa no presente.

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Sam Maller/The Players' Tribune

Em nenhum lugar isso é mais facilmente visível que na educação. A educação é uma das ferramentas mais poderosas que temos na luta contra o racismo, porque é fundamental na formação das crenças de uma geração inteira. As crianças aprendem o abecedário, mas também aprendem sobre a história dos EUA e a cultura norte-americana. Quando eu era criança, topei com um trecho de um livro de história dos EUA que ainda me dói na alma. Dizia que os escravizados viviam melhor como escravos do que vivendo livres na África. Isso me enfureceu ainda quando criança. Vida sem liberdade não é vida.

É improvável que as crianças encontrem uma passagem tão explicitamente racista hoje em dia, mas elas experimentam formas mais sutis de racismo, como aulas de História Negra, que são ensinadas como adjacentes à história norte-americana, e não como parte integral desta. Para erradicar o racismo, devemos dar aos nossos filhos uma educação que inclua toda a história norte-americana e que examine como essa história continua a moldar nossas instituições, nossas crenças e nossa cultura.

Os Estados Unidos não são a terra dos livres se os assassinos de negros sempre acabam sendo libertados.

Bill Russell

Os ícones que escolhemos como mascotes esportivas também dizem muito sobre a cultura norte-americana. Uma das mascotes mais onipresentes é o índio americano, normalmente retratado como uma caricatura racista e às vezes complementado com uma injúria racial. No ano passado, o Washington Redskins [“peles-vermelhas”] finalmente decidiu mudar de nome, após anos de relutância, apesar dos reiterados apelos dos povos indígenas e de grupos de militância da justiça social. Não deveria ser necessária militância ou pressão social para que se reconheça que uma injúria racial não é algo aceitável como nome de time. Ensinamos nossos filhos que insultar é errado, porque é desrespeitoso e magoa. Nomes de times e mascotes não são uma exceção, e o fato de tantos nomes e mascotes racistas ainda existirem é um indicativo de como o racismo está profundamente enraizado na cultura norte-americana.

O racismo nos EUA não afeta apenas pretos e pardos. Ele se infiltra nas instituições, no espetáculo, na música, no jornalismo, nos esportes e nas mentes dos norte-americanos. Não podemos mudar a fundação dos Estados Unidos, mas podemos refletir sobre ela. Ou podemos continuar (como fazemos há séculos) dizendo que somos a terra dos livres, quando está claro que esse sentimento só se aplica aos brancos.

Bill Russell Barack Obama
Chip Somodevilla/GettyImages

Os Estados Unidos não são a terra dos livres se os negros precisam se preocupar com a possibilidade de serem assassinados enquanto dormem, como ocorreu com Breonna Taylor.

Os Estados Unidos não são a terra dos livres se os negros precisam temer que um policial se ajoelhe no seu pescoço por oito minutos e 46 segundos, como fizeram com George Floyd, até que sua vida seja sufocada.

Os Estados Unidos não são a terra dos livres se crianças negras não podem brincar com uma arma de brinquedo sem terem medo de serem assassinadas, como Tamir Rice.

Os Estados Unidos não são a terra dos livres se os negros têm que se preocupar com o risco de serem caçados e assassinados enquanto praticam corrida, como Ahmaud Arbery.

Os Estados Unidos não são a terra dos livres se os negros sabem que podem levar um tiro pelas costas na frente dos seus filhos, como Jacob Blake.

Os Estados Unidos não são a terra dos livres se os assassinos de negros sempre acabam sendo libertados.

Sem justiça para todos, nenhum de nós é livre.



[1] É importante mencionar que Maddox não obteve a maioria dos votos, mas acabou sendo eleito governador de forma indireta pela Assembleia Legislativa estadual, por 182 votos a 66.

Autografo Bill Russell NBA

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