Obrigado, Corinthians

Thiago Ribeiro/Agif/Gazeta Press

Salve Nação Corinthiana, meu coração fora do peito…

Obrigado por tudo. 

Sim, infelizmente esta é uma carta de despedida.

Acho que nunca me senti assim antes, dando mó pala nos últimos dias e fazendo coisas pra não pensar, ver se consigo parar de chorar. Escuto música, assisto filme, jogo no celular, colo sozinho nos rolês, ando por aí… Mas tá muito difícil, vou te falar. Se for contar o tanto que já chorei deve encher uns 37 baldes daqueles que a gente colocava embaixo das goteiras lá em casa. Tá osso! 

Por isso, já sentindo a saudade apertar antes mesmo de partir, eu pensei em vir aqui desabafar por escrito. Relembrar a magia toda, o milagre, contar dessa paixão que nasceu comigo, guiou meus passos, meu futebol e mudou a minha vida. 

Falar da glória de jogar pelo Corinthians sendo corintiano. De meter gol na Bombonera vestindo a nossa camisa branca, o nosso shorts preto e a nossa vontade infinita de lutar, que está acima de tudo, amém!! 

Então, Fiel, agora que é chegada a hora de subir no avião e me jogar no futuro distante — põe distante nisso —, eu preciso me despedir direito. Pra que a nossa história não termine assim, num portão de embarque. Pra que a nossa história não termine. 

Porque, no que depender de mim, eu nunca vou te abandonar.



E já que eu lembrei daquela partida contra o Boca, vou seguir por aí. Foi marcante demais, céloko, começando pela declaração que eu dei antes do jogo. Me perguntaram como ia ser jogar na Bombonera pela primeira vez, eu tão jovem e tal. Respondi que ia ser como outro jogo qualquer. 

Pô, não foi marra. Fui sincero. É que desde o futsal, onde comecei com sete anos de idade, eu jogo bola do jeito que eu gostaria de viver: sem medo. Na vida nem sempre dá, mas no futebol dá, principalmente se a gente é cria do terrão. 

Bom, mas depois que eu mandei essa na véspera do jogo, levei umas broncas da galera mais velha lá no CT: “Porra, Du, não diz uma coisa dessas. Jogar na Bombonera é embaçado, difícil pra caramba”. Os caras me deram mó dura, vocês tinham que ver. Mas eu disse pra eles: “Difícil, mano? Difícil foi o que eu passei nessa vida”. E quis o São Jorge que meu primeiro gol com o nosso manto saísse naquela noite. Vou dizer, hein? Quando rola uma fita dessas, a gente flutua: os primeiros segundos são de delírio, de loucura, sei lá… 

Du Queiroz gol Boca Juniors Corinthians Bombonera
Alejandro Pagni/Getty Images

De cara baixa um silêncio absurdo, de cemitério. Em seguida, a vibração da nossa torcida vem vindo, vindo e, pá!, toma conta do estádio inteiro dos caras. 

Caraca! Onde é que eu tô, parça?! 

Se pá eu tava vivendo o segundo momento mais feliz da minha vida. Porque o primeiro foi o dia em que meu pai saiu da cadeia.

Du Queiroz

Só sei que eu corri chorando e cada soluço era uma confirmação pra mim: Ah, Corinthians, obrigado por me deixar sentir isso. Eu tô onde eu sempre quis estar, eu sou quem eu sempre quis ser. Se eu morrer agora, nessa corrida sei lá pra onde, me ajudaí, pra onde é que eu vou?!, quem eu abraço???, o que é que eu grito?, se eu morrer agora com o bando de louco comemorando comigo o meu primeiro gol, pô, se morrer agora eu morro feliz. 

Ali na hora, na adrenalina, quando a alma parece escapulir corpo, ali no quente eu não tive uma noção clara, mas se pá eu tava vivendo o segundo momento mais feliz da minha vida. Porque o primeiro foi o dia em que meu pai saiu da cadeia.



Eu nasci e cresci no bairro do Butantã. Fica na zona oeste de São Paulo, só que “do outro lado do rio”… Entre tios, tias, primos, primas e agregados, moravam umas quarenta pessoas lá no quintal. Era o terreno onde primeiro tinha a casinha da minha vó. Ela teve seis filhos. Cada um que casava, em vez de sair, entrava: comprava uns blocos, construía um puxadinho e ia ficando, a família crescendo e se espalhando no quintal. A vó acolhia todo mundo. Pessoa muito boa, coração de ouro. 

Dia de jogo do Timão era doideira. Falando assim nem dá pra dar uma ideia exata. Saía gol nosso e, mano do céu!, tremia tudo. Tremia o chão, as janelas, tremia o telhado, até as estrelas em cima da gente tremiam. Gritaria e felicidade geral, porque só tinha corintiano ali, todo mundo. E vou dizer, hein? Não teve um jogo meu na Arena que eu não lembrasse do nosso quintal no Butantã. Eu entrava em campo e a energia de vocês, um negócio que não dá pra explicar, tem que sentir, só de lembrar eu fico emocionado, aquela atmosfera me levava pra casa. E em casa, com o meu pessoal, o meu manto, os meus amores todos, no meu quintal não tinha como sentir medo, tá ligado? Ah, Fiel, carai… Vocês são relíquia, mano!

Mas aí, na vez do meu pai, que é o filho caçula, muito novo ainda, trampando de motoboy, minha mãe também muito nova, ele tinha 17 e ela 16 quando eu nasci, eles não tiveram grana pra comprar os blocos. O jeito foi colar no quarto da vó. Esse quartinho foi a nossa nossa casa até pouco tempo atrás. Vivíamos ali eu, meu pai, minha mãe, minha irmã e a vó. 

Viver é modo de dizer, né?, cês tão ligado. Imagina um quartinho pra cinco pessoas… Mas era o que dava pra gente. 

Nossa casa-quarto era só pra dormir mesmo. O dia eu passava na rua. Bicicleta, taco, pipa e bola, bola pra caramba, céloko… A lembrança mais legal que eu guardo da minha infância é o som que o nosso portão fazia quando eu chutava a bola nele. Um portão de ferro, pesado, fazia um barulhão da porra. E eu ficava contente, pensava assim: Carai, mano, meu chute tá forte, acho que vou conseguir ser jogador profissional. Até que a minha mãe gritava lá de dentro: “Eduardo! Olha o portão! Vai derrubar o portão, Eduardo! Já pra dentro, Eduardo!”. Vixe, quando ela chamava de Eduardo era zika. 

Du Queiroz infancia Corinthians corintiano
Cortesia de Du Queiroz

A gente não tinha muito. Eu ia na escolinha de futebol sem pagar a mensalidade e calçava chuteira doada, de segunda mão. Ou segundo pé, no caso. A frase que eu mais ouvia do treinador nessa época não era “Pega, Du! Marca! Pra cima deles, Du!”. Era “Como tá de chuteira, Du? Quando acabar essa, me avisa”. Bagulho zoado. Mas lá em casa um ia ajudando o outro e a gente levava. Porque o bom de morar a banca toda junta, família grande, é que o pouco que tem é de todo mundo. E o ruim é que às vezes o pouco é tão pouco que a tentação de encostar no corre errado fica muito grande. Foi o que aconteceu com meu pai. 

Um dia, a gente tava no nosso quartinho e do nada, pá!, pancada na porta, grito, barulheira… E, antes que a gente pudesse levantar, os polícias estavam lá dentro. Tudo armado, jogando as nossas coisas no chão, revirando a casa inteira. Eu bem criança ainda, não entendia o que tava rolando. Mas até hoje eu sinto

A cena do meu meu pai indo embora algemado, a tristeza no rosto dele, é uma coisa que não dá pra esquecer. A partir daí, os nossos dias mudaram completamente. Mudaram dentro de nós, porque era uma dor que ninguém via.

Em mim doía o dia a dia, o cotidiano mesmo. Acordar e meu pai não estar ali pra me dar bom dia. Ir dormir e meu pai não estar ali pra me dar boa noite. Ir pra escola, fazer teatrinho de Dia dos Pais, e as outras crianças me perguntarem: “Du, cadê o seu pai? Só veio a sua mãe?”. Eu falava: “É… Meu pai tá viajando…” E saía fora pra não chorar na frente delas. 

Minha mãe segurou a barra do melhor jeito que ela conseguiu. Mas não ter o pai em casa é dureza. Marca a gente. E eu tô ligado que muitos de vocês sabem o que significa. Essa ausência durou três anos e meio, com momentos menos piores e momentos horríveis. Era horrível, por exemplo, quando saía a notícia que tava rolando rebelião no presídio do meu pai. Batia um desespero… A gente catava as coisas e corria pra lá.

No muro, os caras colavam uma lista com nomes. E os nomes riscados eram dos presos mortos. Minha mãe percorria a lista com o dedo tremendo. Duas vezes, pra ter certeza. Só então ela respirava fundo, sentava no chão e chorava de alívio, porque o nome do meu pai não tava riscado. Pô, não desejo isso pra ninguém, mano!

E o momento menos pior era o dia de visita. Eu levava a bola, tinha quadra lá, e rolava um futebol. Todos os presos assistiam. Eu saía driblando todo mundo, metia um monte de gol e os caras brincavam com meu pai: “Porra, Paulinho, segura o seu moleque, não dá pra ele vir aqui e ficar dando elástico em todo mundo, tio. Segura ele!”. Meu pai dava risada e ficava orgulhoso de mim, a gente se abraçava e de certa forma isso aliviava um pouco a nossa dor. Futebol, né, família? Futebol tem dessas paradas fora das quatro linhas também.  

Du Queiroz gol Corinthians x Flamengo
Wagner Meier/Getty Images

Aí, depois de três anos e meio, meu pai voltou. Como esquecer daquele dia? Ele me pegou no colo, ficou abraçado mó cara, tempo normal, prorrogação e pênaltis. E a primeira coisa que ele me disse foi assim: 

— Qual seu time do coração, filho?

— Corinthians, pai, igual você.

— Então vamos ver o Coringão no Pacaembu.

Na época o Corinthians tava numa fase meio ruim, na Série B e tudo. Meus amigos são-paulinos e palmeirenses me zoavam e aquilo me chateava. Criança, né? A gente só quer ver nosso time ganhando. Mas eu nunca desisti do Corinthians. E naquela tarde no Pacaembu com meu pai eu entendi duas coisas importantes.

Se vocês me perguntarem quem era o adversário e qual foi o placar do jogo, eu não vou lembrar. Pra mim ficou o que tinha de mais forte ali: estar com o meu pai, depois de tanto tempo, só eu e ele, vendo o Corinthians jogar. Nesse dia, eu, que já era corintiano, entendi o que é ser corintiano. 

Claro que vencer e ganhar títulos é importante, mas pra gente não basta. Ser corintiano é ter esses momentos inesquecíveis na vida junto com o Corinthians. São coisas nossas, memórias que a gente carrega pra sempre e que o Timão fez parte. No meu caso, ser corintiano foi ter meu pai de volta, ele na luta dele por dias melhores, nós dois juntos no Tobogã do Pacaembu torcendo pelo nosso time, o time que não desiste de lutar — igual meu pai, igual a gente dentro do campo, igual vocês na arquibancada. 

Ser corintiano é ser do time do povo que não desiste de lutar, essa foi a segunda coisa importante que eu entendi naquela tarde. Isso é Corinthians. É nóis, mano! E eu sei que vocês entendem direitinho o que eu tô falando.

Ser corintiano foi ter meu pai de volta, ele na luta dele por dias melhores, nós dois juntos no Tobogã do Pacaembu torcendo pelo nosso time.

Du Queiroz

Só que aí São Jorge cochilou e eu acabei indo pras categorias de base de outro santo, o São Paulo. Brincadeira. É que eu treinava no Butantã e, por ser perto de Cotia, onde fica a base do São Paulo, eles sempre vinham fazer amistoso contra nós. Um dia me chamaram pra ir fazer um teste lá. Fiz o teste e passei. Foi um período muito daora pra mim. 

Primeiro, a família viu que era uma oportunidade de caminhada do bem. Como meus primos no quintal, eu também tava muito exposto ao caminho ruim e, pra despencar na ribanceira, é dois palitos. Eu vou dizer pra vocês: oportunidade de pegar em uma arma não faltou. Mas eu vi a cadeia, eu conhecia, eu sabia como era e não queria aquilo pra mim. 

Então o São Paulo me ajudou a ficar na estrada, sem desviar pro acostamento, tá ligado? O clube tem boa estrutura, trata bem os moleques da base. Lá me ensinaram que a gente pode ter um time do coração, sem problema, mas, na hora de jogar, é poucas ideia. Tem que lutar pela camisa que você tá vestindo até o fim.



Fiquei no São Paulo dos 9 aos 13 anos, até que um dia me chamaram e me dispensaram. Foi um baque. Eu já tinha uma rotina ali, achava que era só manter e meu sonho de ser jogador profissional ia se realizar logo mais. Eu achava que não tinha mais volta, que eu tava no caminho. Aí tudo desmoronou de repente. Fiquei triste demais. E então vem meu pai de novo:

— Agora é Corinthians, Du. Você vai pro Corinthians!

E eu meti marcha. A peneira no Parque São Jorge era assim: começava na segunda-feira e o treinador distribuía um cartãozinho amarelo pra cada moleque. No fim da tarde, ele anotava nos cartões quem podia voltar no dia seguinte. Eu voltei na terça, na quarta, na quinta e na sexta ele me mandou passar na sala do diretor. Pensei: Ixi, já era! Sala de diretor. Vão agradecer, tudo mais e me mandar pra casa. Mas não. Entrei na sala, o diretor pegou meu cartãozinho, rasgou e falou:

— Pode jogar fora esse cartão. A partir de hoje você é jogador do Corinthians.

Porra, Fiel, vocês podem imaginar o peso dessa frase? 

“Você é jogador do Corinthians.” 

Eu tinha 14 anos e felicidade igual eu só tinha sentido quando meu pai voltou da cadeia e me levou no Pacaembu.

Du Queiroz Corinthians Players Tribune
Thiago Ribeiro/Agif/Gazeta Press

Bom, eu assinei um contrato e o coroa finalmente pôde comprar os blocos pra subir uma casinha separada pra nós no quintal da vó. Uma casinha pequena, mas não era mais um quarto. E a partir daí foi continuar lutando, né? Porque pra chegar no profissional do Corinthians todo moleque da base sabe desde o começo: não pode parar de lutar. Era isso que eu tive em mente toda vez que vesti a camisa do Timão. Lutar como um torcedor corintiano, lutar como cada um de vocês lutariam se estivessem no meu lugar. O Corinthians pra mim é isso: luta.

E pra vocês verem como a nossa luta se desenrola, um dia, eu ainda na base, mas de vez em quando treinando no profissional, um mlk me diz: “Du, continua trabalhando do jeito que você tá trabalhando porque tá dando certo. O Cassio te elogiou hoje”.

Pô, o Cassio, mano! Céloko!! É o nosso líder. O cara tem uma influência monstro no clube, além de ser parceiro demais. Ele reparou num menó da base, cara! 

Passaram uns dois ou três dias, cheguei pra treinar no sub-23, e o supervisor, o Alessandro, me chamou: “Você vai pro jogo do profissional hoje. Tá com o RG aí?”. 

Caramba! 

Na mesma hora eu liguei pra minha família pra contar que nem ia dar pra voltar pra casa. Pelo telefone eu ouvia a festa do povo lá. Pensei comigo: Carai, os barracos do quintal devem estar tremendo igual em dia de jogo

Du Queiroz Corinthians Zenit
Rodrigo Corsi/Ag. Paulistão

A partida ia ser contra a Chapecoense, em Chapecó. Como eu tinha ido só pro treino, tava sem nada. Nem cueca na mochila eu tinha. Quando chegamos no hotel, o Alessandro me deu um dinheiro pra comprar pasta e escova de dente. Ainda dei sorte porque de Chapecó nós fomos pra Fortaleza e, nos treinos entre um jogo e outro, eu arrebentei.

Depois da partida contra o Fortaleza, no vestiário, quando a gente fechou, o Sylvinho, que era o treinador, falou assim: “Eu queria agradecer ao Du por estar aqui se dedicando, ajudando e buscando o lugar dele. Du, você não vai mais descer pra base. Vai ficar com a gente”. 

O resto da história vocês conhecem. 

Agora eu tô aqui em casa, o passaporte na mesa, a minha mala de viagem aberta em cima da cama, e eu só consegui colocar três coisas dentro dela até agora: escova, pasta e uma camisa do Timão. O sentimento é estranho, de dever cumprido, mas incompleto. É, Fiel, eu sei que nem sempre correspondi ao que vocês esperavam. Nem sempre acertei. Mas eu lutei. Lutei pacarai! E, depois de tudo o que esse clube me deu, não tenho do que reclamar.

Eu também sentei nessa arquibancada aí onde vocês estão e já xinguei, chorei, briguei, me diverti, já delirei, quase desmaiei até. Conheço cada palmo desse cimento que une a gente, porque ele tá dentro de mim, nasceu comigo, e se fortalece nos abraços que eu dou no meu pai corintiano, nas vezes que eu volto no quintal corintiano da minha quebrada, ou quando eu olho pras bandeiras corintianas na Arena. Eu sinto tudo o que vocês sentem, porque eu sou (e sempre serei) um de vocês: só um corintiano, maloqueiro e sofredor.

Graças a Deus.

autografo du queiroz

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