A Colheita
A vida de um atleta de alta performance é incrível. De um extremo para o outro, você pode sentir todas as sensações e, ainda assim, permanecer fiel aos seus princípios.
Durante muito tempo, quando eu era criança, ficava pensando no que poderia acontecer com a minha vida.
O que será de mim, Edmílson?
Trabalharia com os meus pais na lavoura, colhendo laranjas e batalhando dia após dia para sustentar a mim e à minha família?
Nada era certo. Só tinha convicção de que não me via estudando por muito tempo. Nada contra, muito pelo contrário. Apenas não me encontrei na escola. Quem sabe se tivesse outra oportunidade…
Não consegui me conectar com os estudos. Ao menos não como foi com o futebol, que eu gostava de jogar todos os dias, para desespero da minha mãe, que corria atrás de mim lá na Vila São Sebastião, em Taquaritinga.
O lugar onde eu cresci tinha esse campinho. Lá, a gente jogava bola e até hoje é um lugar tão especial que, muitos anos depois, decidi colocar a pedra fundamental da Fundação que eu e minha esposa construímos para as crianças.
Mas ainda não é hora de contar essa parte da minha vida. Assim como tudo tem seu tempo, também é preciso respeitar os processos.
Naquela época, quando criança, eu não sabia que podia sonhar em ser um atleta de alta performance. Na verdade, eu só tinha muita raiva. Era difícil explicar, mas eu alimentava um ódio, uma inquietação no coração, que não me deixava em paz.
Então, primeiro aos poucos, depois, de repente, aconteceu. Como eu jogava futebol, apareceu uma oportunidade que transformaria a minha vida. No XV de Jaú, tive a chance de poder jogar por um clube. Nosso treinador era o José Poy, que teve uma grande carreira como jogador do São Paulo. Eu não sabia, mas o meu futuro começava a ser escrito naquele momento.
A minha vida seguia. Apesar do XV de Jaú, eu seguia incomodado, vivendo uma vida que não tinha propósito. Até que…
Um dia, o goleiro do time me chamou para uma reunião. Outros jogadores estavam lá e, pra dizer a verdade, eu já tinha ouvido falar dos Atletas de Cristo, mas eu tinha minha religião.
Fui criado na Igreja Católica e meus pais me levavam para a Missa aos domingos. Só que a partir daquele dia, na reunião com os jogadores, os Atletas de Cristo, alguma coisa mudou. Eu não sabia explicar direito, mas não tinha como saber: era o poder de Deus. A partir daí, eu não me sentiria perdido.
Nunca mais eu sentiria aquela raiva. Antes de me tornar jogador, eu me transformei como pessoa. E para sempre, nos momentos mais importantes, eu ouviria aquela voz.
“Deus é contigo.”
Então, de repente, comecei a perceber as coisas acontecendo à minha volta.
Num jogo contra o Olímpia, atuando pelo XV de Jaú, eu anulei o centroavante deles, o Táxi. Aquele jogo me cacifaria para uma partida ainda mais desafiadora. Contra o São Paulo Futebol Clube, em 1994. Parte daquele time era o esquadrão que disputaria a Libertadores pela terceira vez consecutiva.
Mais ou menos nesse período, minha família vinha passando por provações em Taquaritinga. Os efeitos do Plano Collor ainda eram sentidos e eu pensei, mais de uma vez, em desistir do futebol para ajudar meus pais na lavoura. “É a bola ou a laranja”, eu ponderava, refletindo sobre qual caminho deveria tomar.
Mas a minha colheita viria de outro lugar.
Depois do jogo contra o São Paulo, veio a proposta: virar jogador do time que na época era bicampeão da Libertadores da América e bicampeão mundial. A mão do meu pai até tremia na hora de assinar o contrato.
A viagem para São Paulo dura seis horas de ônibus, mas eu nem notei, nem dormi. Só fiquei pensando.
Prestes a completar 18 anos, fui morar nas dependências do clube, onde aprendi e me desenvolvi como se estivesse na faculdade.
Os mais veteranos eram atletas que tinham jogado no mais alto nível: Juninho Paulista, Zetti, Toninho Cerezo.
E Deus tinha preparado tudo de tal maneira que o meu professor seria um verdadeiro mestre: Telê Santana.
Foi o seu Telê quem me deu conselhos que nunca mais esqueci.
Ele disse por que eu tinha de guardar o meu dinheiro, me alertando sobre a importância de pensar no meu futuro. Me falou por que era necessário que eu morasse no clube, ressaltando que eu não me atrasaria para os treinamentos e poderia me preparar melhor.
E ele me explicou, acima de tudo, que o mais importante era ser profissional. Gostando ou não, são conselhos que ninguém mais dá hoje em dia. Por isso, sou e sempre serei grato por esse tempo.
No campo, seu Telê viu que podia confiar em mim. E numa partida contra o Cruzeiro, pelo Brasileirão, finalmente aconteceu.
Toninho Cerezo sentiu uma lesão. Seu Telê já estava enfermo, vendo o jogo da arquibancada. E do banco, o então auxiliar, ninguém menos que Muricy Ramalho, consultou o técnico para saber quem ia entrar.
No íntimo, eu ouvi uma voz dizendo:
“É a sua vez.”
No campo, pelo rádio, eu ouvi seu Telê instruindo o Muricy:
“Põe o Magrelo.” (Só imagina se, aos 19 anos, eu não era magro…)
Antes de me tornar jogador, eu me transformei como pessoa.
- Edmílson
Não podia acreditar que iria estrear substituindo uma das referências na posição, Toninho Cerezo. E logo que eu entrei... Gol do Cruzeiro. Foi um adversário difícil, mas conseguimos virar o jogo. E em poucas partidas, me consolidei na posição.
O torcedor são-paulino dos anos 90 estava acostumado aos títulos e, por isso, deve ter achado estranha aquela entressafra. Sim, nós ganhamos o Paulista, mas o time estava em transição e o clube não foi vencedor como em outras temporadas.
Meu tempo no São Paulo foi de plantação, de aprendizado. Mesmo assim, no período em que fiquei por lá, respeitei as cores do clube.
E as coisas estavam para mudar novamente quando soube que Arsène Wenger, do Arsenal, tinha enviado uma equipe de olheiros para assistir a uns jogos aqui no Brasil.
Alguns jogadores brasileiros, como Edu Gaspar e o Sylvinho, foram contratados.
E o Edmílson?
Na época, por causa das regras para jogadores estrangeiros, acabei ficando de fora.
Parecia inacreditável, mas fiquei com a sensação de que tinha deixado um trem passar. Imagina poder jogar na Premier League e ser treinado pelo Wenger?
Mas não aconteceu e eu estaria mentindo se dissesse que não fiquei frustrado.
Afinal, era uma transferência que poderia mudar tudo.
Pouco tempo depois, fui, enfim, negociado para o futebol europeu. Me apresentei ao Lyon, da França.
Acho que todo mundo reconhece a importância do Lyon não só no campeonato francês, mas no contexto europeu.
Mas naquela época poucas pessoas conheciam o Lyon aqui no Brasil. E quem conhecia não dava o devido valor ao clube. O time ainda não era o multicampeão que viria a se tornar.
Mas não olhei pra nada disso. Estava pronto para vencer na Europa.
Então, quando o repórter francês me questionou sobre a minha chegada no clube, destacando que havia sido sondado pelo Arsenal, eu respondi com uma profecia.
“Vim aqui para ganhar títulos.”
Deus me honrou e o Lyon passou a empilhar conquistas da Ligue 1, além de um título da Copa da Liga Francesa.
Pelo Lyon, me recordo de uma partida em especial: do jogo contra o Barcelona, no Camp Nou, pela Champions League. Perdemos de 3 a 0, na mesma semana dos atentados do 11 de Setembro. O que me marcou foi a impressão que tive logo que entrei no estádio do Barcelona. Quando você chega ali, não tem como não querer fazer parte do clube, não tem como não querer vestir aquela camisa.
Foi então que disse para uma camareira:
“Um dia ainda vou jogar nesse time aqui.”
Foi a segunda profecia.
Naquela época, eu já vinha sendo convocado para a Seleção Brasileira, fazendo parte daquele grupo que ficaria para a história.
E não tem jeito: na Seleção, você veste a camisa e a pressão vem junto. Hoje quase ninguém se lembra, mas jogamos aquelas Eliminatórias para 2002 totalmente desacreditados. Fomos eliminados da Copa América para Honduras. E, quando saiu a convocação, parecia que ninguém estava convencido de que poderíamos ser campeões.
Mas nós, jogadores, respeitamos o tempo das coisas, o processo. E fomos campeões com uma campanha invicta.
Quanto a mim, depois do Penta, segui conquistando títulos pelo Lyon, mas rapidamente tudo iria mudar.
Me lembro de como as coisas aconteceram nos detalhes. Pela Seleção, já em 2004, fui convocado para as Eliminatórias da Copa de 2006. O jogo era contra a Argentina. Antes, teve esse amistoso contra a seleção da Catalunha. Nós passamos o trator: 5 a 2. E batemos a Argentina por 3 a 1. Mas tem um detalhe importante para a minha história: nesses jogos, não atuei na zaga, como estava acostumado. Joguei no meio-campo, como volante.
O estafe do Barcelona assistiu aos dois jogos.
Na minha cabeça, alguns jogadores eram candidatos naturais para atuar no Barcelona, mas meu agente me disse que se interessaram por mim.
Então, aconteceu.
Ninguém precisava me dizer o tamanho do Barcelona como instituição. Clube centenário, que teve craques na sua história, camisa pesada, grandes conquistas.
Mas na minha vez…
Quando cheguei, o Barcelona estava há muito tempo sem ganhar La Liga e há mais tempo ainda sem conquistar a Champions.
A pressão era grande, mas eu já estava acostumado. Depois da Vila São Sebastião, depois do XV de Jaú, depois do São Paulo, depois do Lyon… Eu me sentia preparado.
E eu não estava sozinho.
Enquanto o chute do Belletti morria na rede, eu tive a certeza de que o Barcelona não ia perder aquela Champions League.
- Edmílson
Faziam parte daquela equipe: Deco, Ronaldinho Gaúcho, Valdés, Rafa Márquez, Puyol, Eto’o. Toda uma geração que entraria para a história do Barcelona.
Na Champions 2005-06, nós avançamos, primeiro cavando uma vaga numa fase de grupos muito difícil.
Nas oitavas, pegamos um time que, anos depois, se tornaria um rival europeu conhecido, o Chelsea. Jogo duro, mas passamos.
Contra o Benfica, nas quartas, fizemos dois jogos bastante disputados e prevalecemos. Fomos para a semifinal.
Contra o Milan, seria uma prova de fogo.
Aquele Milan era uma seleção: jogadores que formariam a base da Itália campeã de 2006, além do Schevchenko, do Dida, do Kaká.
Ganhamos de 1 a 0 em Milão e seguramos o empate em casa.
Aí veio a final.
Depois de tantos anos, o Barcelona ia decidir o título com o clube que era a sensação europeia. Sim, o Arsenal. O time que contava com Ashley Cole, Fàbregas, Henry… e treinado pelo Wenger.
Todo mundo que já disputou uma partida como essa sabe: final não se joga, se ganha. E eu tinha essa sensação, de que a gente ia vencer.
Na verdade, eu disse isso. Era a terceira profecia.
E tudo ficaria mais fácil, pensei, quando, aos 18 minutos, o Lehmann, goleiro da seleção alemã, foi expulso.
Mesmo sendo o Arsenal do Wenger, o Barcelona estava com um homem a mais. O jogo tinha tudo para ficar mais fácil.
Estava escrito. Era a profecia se cumprindo. Até que o Campbell, zagueiro do Arsenal, acerta um cabeceio fatal: gol dos caras.
Fomos para o intervalo com o título indo para Londres. Nosso técnico, Frank Rijkaard, começou a mexer no time. Eu saí pra dar lugar a um tal de Iniesta (acho que vocês conhecem, certo?).
Começou o segundo tempo e a partida continuava muito difícil. O Arsenal não só se defendia. Eles tiveram chance de marcar outro gol. Dava pra sentir o clima de nervosismo no ar.
Aos 16 do segundo tempo, nova mudança. Rijkaard colocou Larsson no lugar de Van Bommel. O empate estava se desenhando. Aos 26, nova alteração: sai Oleguer, que também estava pendurado com cartão amarelo, e entra o Belletti.
Então eu vi o Larsson dar o passe para o Eto’o marcar o gol de empate aos 31 do segundo tempo. Voltávamos para o jogo. Era manter o foco que dava, na pior das hipóteses, para chegar na prorrogação.
Mas, mesmo fora de campo, eu tinha fé na vitória.
Aos 36 do segundo tempo, enquanto o chute do Belletti morria na rede do goleiro Almunia, pude viver um momento indescritível. E foi então que tive algumas certezas.
Que o Barcelona não ia perder aquela Champions.
Que 12 anos depois de quase ter desistido do futebol profissional para voltar a viver na roça, eu estava vivendo o sonho que nem sabia que seria possível.
Que todas as pressões, inseguranças e frustrações me prepararam para viver aquele momento, a final da Champions League.
Que, graças a Deus, entre a bola e a laranja, eu decidi insistir no meu verdadeiro propósito.
Talvez se, em 2000, a transferência para o Arsenal tivesse dado certo, eu viveria uma jornada incrível em Londres, teria jogado aquela que é hoje a principal liga de futebol da Europa e teria a experiência de ter sido liderado pelo Arsène Wenger, um dos maiores treinadores de todos os tempos.
Mas eu jamais saberia o sentimento de vestir a camisa do Barça e de conquistar aquela Champions, uma vitória que levou milhares de pessoas às ruas de Barcelona quando carregamos o troféu para o Camp Nou.
Sou a prova viva de como um cara improvável também pode se tornar um vencedor. Nunca fui o mais talentoso, nem o melhor da minha posição, muito menos o melhor da minha categoria. Mas, com toda segurança, fui um dos que mais trabalhou incansavelmente para se tornar um atleta profissional.
O que será de mim, Edmílson?
Vai ganhar uma Copa pelo Brasil e ser campeão do maior torneio do mundo pelo Barcelona!
Nem nos meus melhores sonhos de infância eu poderia imaginar que o futebol transformaria o meu destino dessa forma. Algumas semanas depois de levantar a taça da Champions, quando já estava convocado para a Copa de 2006, fui cortado por uma lesão no joelho direito.
Se eu fiquei triste? Claro que sim. Mas o esporte me deu muito mais do que eu, lá no interior de São Paulo, sonhava em conquistar. E Deus me ensina todos os dias que você deve experimentar todas as sensações e se manter fiel aos seus valores, à espera do tempo certo para colher tudo aquilo que plantou.