12 Histórias Sobre Mim Que Você Não Sabe

Shaun Botterill/Getty Images

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1. Eu recebia ameaças de morte

Cara, aconteceu tantas vezes que até perdi as contas. Enquanto estávamos no vestiário do time visitante antes de um jogo, uma galera batia na porta. Eu disse bater, mas, você sabe, eles quase destruíam a porta na base do soco, gritando tudo o que você possa imaginar. 

"SE GANHAREM O JOGO, VAMOS MATAR VOCÊS."

"VOCÊS NUNCA VÃO SAIR VIVOS DAQUI."

Isso acontecia na várzea.

O lugar dos rejeitados.

Como eu.

Cara, fica difícil explicar o que é a várzea… No Brasil, a maioria sabe o que é, mas você precisa jogar para entender como realmente é.  Existem os grandes clubes, certo? E toda criança quer ser aprovada para jogar na categoria de base de um deles. Isso significa receber uma ajuda de custo para colaborar com a família e a possibilidade de se tornar jogador profissional. Muitos garotos reprovados nos testes acabam na várzea.

É uma rede independente de campeonatos organizados pelas comunidades. O nível é bem abaixo dos principais clubes. Você não precisa nem de contrato, basta chegar lá no dia da partida. O campo é de terra. O calor, absurdo. Alguém leva a bola de casa. Muitas vezes os gols não têm nem rede. Uniformes? Nem sempre. É camisa contra sem camisa. E os jogadores são os rejeitados, cara. Muitos jogam com raiva, pela sobrevivência, como se a vida deles dependesse das partidas.

Ainda bem que as ameaças de morte eram só ameaças. Sabíamos que os torcedores das equipes mandantes só queriam nos intimidar. Mas, às vezes, dava pra ver os donos da comunidade ao redor do campo com armas na mão. Quando nosso time atacava, dava pra ouvir o disparo de tiros. Como  marcar um gol desse jeito? E também tinha fogos a todo momento, cara.

Por isso que eu digo que se você consegue jogar na várzea, você joga em qualquer lugar.

Uma grande final europeia? Não estou nem aí. 

Um estádio lotado com 90.000 pessoas? É disso que eu gosto.

Tenho muito orgulho de ter disputado tantos campeonatos de várzea. Aproveitei cada segundo. Esses jogos me formaram para não eu não sentir a pressão. Quando eu estou jogando, eu quero ser vaiado. Eu preciso da pressão e da intimidação. São o meu combustível. 

Raphinha Leeds
Robbie Jay Barratt/AMA/Getty Images

2. Eu tinha duas famílias 

Uma em casa, outra na rua.

Olha, quando você cresce em um lugar como a Restinga, uma favela de Porto Alegre, você aprende rapidamente que você não consegue viver sozinho. Os seus amigos se tornam a sua segunda família. Mais cedo ou mais tarde eles vão precisar da sua ajuda, e vice-versa.

Não estou dizendo aqui que um salvava o outro da morte ou do tráfico de drogas. Muitas vezes eram pequenas coisas. A Restinga é muito longe do centro da cidade, então quase sempre saíamos bem cedo para os jogos e voltávamos à noite. Em diversas ocasiões, eu não tinha dinheiro para comida. Então, amigos dividiam o lanche comigo para eu não voltar pra casa com fome. Quando eu não conseguia pagar a passagem de ônibus, eu chorava muito, porque o futebol era a minha vida e eu queria jogar. Por isso, um amigo me emprestava o cartãozinho TRI (Transporte Integrado de Porto Alegre) da mãe dele, e então eu podia ir às partidas.

Quando nenhum de nós conseguia pagar para levar comida, pedíamos dinheiro para desconhecidos na rua. Você realmente precisa estar desesperado para chegar a esse ponto, mas estávamos com muita fome, cara. O problema é que as pessoas tinham medo de nós. Imagine a cena: você acabou de jogar futebol, está todo suado e sujo, talvez com hematomas e cicatrizes. Eles pensavam que queríamos roubá-los, né?

Era muito triste, porque só queríamos algo para comer. Um biscoito, um pedaço de pão… Qualquer coisa.

Preciso deixar claro que isso não acontecia com frequência. Os meus pais trabalhavam duro para colocar comida na mesa. Mas não éramos ricos. Nossa casa era tão pequena que dormíamos todos no mesmo quarto: meus pais, meu irmão mais novo, eu, os cachorros e os gatos. Graças a Deus sempre tínhamos os animais de estimação. Eles me animavam nos momentos que eu mais estava pra baixo. 

3. Quando eu tinha sete anos, fui à festa de aniversário do Ronaldinho

Como assim?, você deve estar pensando. O meu pai é músico, e o grupo de pagode dele estava lá para tocar.

Veja bem, o Ronaldinho nasceu na mesma comunidade onde eu cresci, então meu pai e meus tios o conheciam. Sempre quis ser como o Ronaldinho. Os dribles que ele dava, a maneira com que ele aproveitava cada minuto em campo… Eu ficava fascinado. Parecia que ele fazia uma promessa antes de começar o jogo: passe a bola pra mim e eu vou te fazer sorrir.

Se eu não me engano, na época dessa festa ele tinha acabado de se transferir para o Barcelona. Lembro que chegamos a uma casa gigante e ele estava na porta, recebendo os convidados e abraçando um por um. Aquele sorriso, cara. Você sabe do que eu estou falando.

Parecia que ele fazia uma promessa antes de começar o jogo: passe a bola pra mim e eu vou te fazer sorrir.

Raphinha

Assim que me viu, ele me pegou no colo e começou a andar comigo pela festa. Eu fiquei paralisado. Não sabia como reagir. Mas o carisma dele é capaz de conquistar a criança mais tímida do mundo. Ele trata todos muito bem, até os mais jovens.

Tenho certeza que essa foi a melhor festa de aniversário que já fui que não foi a minha. (Beleza, vai, vou incluir a minha também haha).

Já vi o Ronaldinho diversas vezes desde então, e me sinto abençoado por poder considerá-lo um amigo. Confesso que hoje fico mais em choque quando o vejo do que quando era criança!! Parece surreal a chance de estar com o cara que assisti no YouTube e na TV. Ele ainda assiste aos meus jogos e fala que curte o meu estilo de jogo. Cara, como responder a um elogio desse?

Raphinha jogador Leeds United
Stu Forster/Getty Images

4. Eu escapei do submundo das drogas 

Tive sorte. Até os meus 17 anos, eu só tinha disputado torneios de várzea, e eu estava gastando mais dinheiro nas passagens do que a minha família podia pagar. A minha meta era conseguir uma ajuda de custo mensal para contribuir com as contas da casa, mas como isso não acontecia, o caminho mais fácil seria eu cogitar outras maneiras de ganhar dinheiro. Muito fácil.

Mas esse é um mundo sem paz, e eu já perdi amigos suficientes para entender esse submundo. Hoje você está vivo, amanhã você está morto. 

Os meus pais sabiam disso claramente. Tivemos exemplos na família de pessoas que seguiam esse caminho, com um fim trágico. Fui sortudo de ter uma família que pudesse me aconselhar, porque na minha comunidade era muito comum ser criado apenas pela mãe ou até mesmo pelo irmão mais velho, um vizinho ou um amigo. Se eu contar nos dedos a quantidade de amigos que cresceram com pai e mãe, não enche uma mão.

5. Eu poderia ter sido um barbeiro

Você pode levar alguns socos antes de perder por nocaute.

Aos 18 anos, eu já tinha sido rejeitado por tantas categorias de base que eu não conseguia mais contar. No Internacional, Grêmio e em qualquer outro lugar era a mesma história: uma semana de testes e depois vinha a desculpa.

"Ele é muito pequeno."

"Ele é muito franzino."

"Ele não tem força."

Sempre a mesma coisa, cara. Sempre. 

Pouco antes de fazer 19 anos, eu estava no time sub-20 do Avaí, em Florianópolis, a seis horas de carro de Porto Alegre. Nunca tinha ficado tanto tempo longe de casa em busca de um contrato profissional. Eu me lesionei e, quando estava recuperado, não conseguia uma vaga no time. Não era nem relacionado para as partidas. Estava treinando sozinho.

Normalmente eu teria voltado para a várzea, onde eu me sentia em casa. Era onde eu jogava bem. Ninguém falava do meu tamanho. Na verdade, o que eu mais ouvia era que, cara, se eu realmente quisesse, eu teria grandes chances de me tornar profissional.

Mas, no Avaí, eu não aguentei. Liguei para os meus pais dizendo que queria desistir, que precisava voltar para casa. Tinha chegado ao limite.

O meu pai disse que, por ele, tudo bem. A minha mãe também.

"Mas", a minha mãe disse, "se você desistir do seu sonho, você vai ter de arranjar um emprego comum."

Eu pensei: Hummm… 

Veja bem, eu sonhava ser jogador de futebol desde os sete anos e no meio da trajetória tive que fazer escolhas. Com isso em mente, não terminei a escola, o que provavelmente me levaria a trabalhar em um supermercado, na barbearia ou algo do tipo. Eu sei como é essa vida, porque a minha mãe trocou de emprego inúmeras vezes. O currículo dela parece um livro. Cabeleireira, manicure, revendedora de perfumes, de roupas, recepcionista, secretária, etc etc etc. 

Com o passar dos anos, ela conseguiu economizar dinheiro para pagar a mensalidade do curso dos sonhos dela, e hoje ela faz o que ama, como trabalhar com crianças com dificuldade de aprendizagem. 

Ela nunca desistiu, sabe?

Então, ela me explicou tudo isso. Ela acreditou que eu jogaria em algum clube depois que os momentos de dificuldade passassem. Ela imaginou que, por causa dos obstáculos na minha frente, eu tinha deixado de enxergar o que eu realmente queria para o meu futuro, o que acabou sendo verdade. Quando a ligação terminou, a minha visão estava clara outra vez e eu pude ver qual ainda era o meu grande sonho. 

6. O meu tio tinha razão

Ele também virou jogador profissional, mas desistiu no meio do caminho por não suportar as saudades da família e dos amigos. Embora eu não pense em fazer o mesmo, entendo o que ele sentiu. Algumas pessoas pensam que existimos apenas para correr atrás de uma bola durante 90 minutos aos fins de semana, só que somos seres humanos também e muitos de nós precisam lidar com o fato de viver muito distantes de quem mais amamos.

O preço que pagamos é alto, caro, principalmente quando você vem do outro lado do mundo como no meu caso. Não vemos o crescimento dos amigos, não conhecemos os filhos deles. Quando os nossos avós adoecem, não estamos lá para ajudar. Como venho da favela, infelizmente ainda acontece de perder muitos amigos para o crime. Muitos estão presos. Alguns, mortos. Nunca tive a chance de me despedir.

7. Bruno Fernandes é o meu irmão mais velho 

Pelo menos é como eu o vejo. Nossa amizade começou antes mesmo de jogarmos juntos no Sporting. Assim que ele soube que eu seria contratado, ele me mandou mensagem dizendo que não via a hora de estarmos juntos em campo. Eu teria chegado ao clube com muita timidez se eu não conhecesse ninguém, então ele foi fundamental na minha adaptação.

O Bruno me ajudou demais, cara. Em Portugal, conversávamos sempre e saíamos para jantar. Quando fui para o Rennes, ele me deu vários conselhos. Ele é muito inteligente. Quando eu estava a caminho de Leeds no avião, ele também me mandou mensagem, dessa vez me dando confiança, falando que o meu estilo se encaixaria perfeitamente na liga. Ele estava certo de novo.

Raphinha Bruno Fernandes
Patricia de Melo Moreira/AFP via Getty Images

Só de estar perto dele serve como inspiração para mim, pela maneira com que ele se comporta. No futebol de alto nível, nunca vi alguém trabalhar tanto como ele. É muito difícil fazer o que ele faz, mas se você se esforçar do mesmo jeito e ouvir o que tem a dizer, dá ao menos para se aproximar do padrão dele.

Gosto de brincar que no próximo jogo entre nós vou dar umas canetas nele. Hahaha! Também existe provocação saudável entre amigos.

Vamos nos ver muito em breve no campo, irmão. E é melhor fechar as pernas :)

8. Cresci com os gols do Thierry Henry

Eu assistia à Premier League com o meu pai. O Henry estava voando, cara. A classe, as finalizações… Surreal! Lembro que os estádios estavam sempre lotados. As músicas, a atmosfera. O barulho. Eu era bem novo, então não lembro os detalhes, mas eu provavelmente estava sentado em algum boteco da Restinga quando eu prometi para mim mesmo: um dia eu vou jogar lá

9. No meu primeiro encontro com Bielsa, ele me assustou

Cara, ele apareceu do nada! Era o meu primeiro treinamento no Leeds. Ele só surgiu quando já estávamos no campo. Eu estava brincando sozinho com a bola, e senti um cutucão nas costas. Eu me virei e era ele: Bielsa!

Para falar a verdade, eu estava ansioso por esse momento. Muitas pessoas já tinham falado: "Uau, você vai trabalhar com o Bielsa!", então eu sabia que era algo grande. Mas o Marcelo é o treinador mais humilde que você possa imaginar, e esse jeito dele me deixou à vontade logo no primeiro dia. Ele me deu as boas-vindas no Leeds e me assegurou que me ajudaria — o que ele realmente tem feito desde então. Nos primeiros meses, ele parava os treinos, me puxava de canto e mostrava os melhores movimentos e decisões a tomar. Já devo muito a ele. 

Aliás, o Marcelo sempre busca a vitória. Não importa contra quem e onde, nós nunca mudamos quem somos. E eu amo isso.

10. Tive medo de perder a perna

Você lembra quando o Fernandinho fez uma falta em mim no Etihad Stadium na reta final da temporada passada? Ele bateu na minha coxa com muita força. Às vezes, a minha mente funciona como na várzea: um pouco de gelo no lugar da pancada e vida que segue, que venha o próximo jogo. Se não tem sangue, não foi falta, cara! Lá, às vezes, só com fratura para parar o jogo!

Por causa disso, eu falei para o Marcelo: "Não se preocupe, em dois, três dias estarei pronto."

Carl Recine/Pool via AP

Mas quando eu cheguei em casa e tirei a faixa, a minha perna não parava de inchar. Uma delas estava duas vezes maior do que a outra. A minha pressão caiu. Liguei para o médico, que me levou ao hospital. A dor estava tão insuportável que precisei de anestesia. Eu não conseguia andar. Sequer conseguia entrar no carro sozinho.

Aparentemente, tive algo chamado hematoma interno. Os especialistas disseram que eu precisaria de cirurgia para remover todo o sangue. Até aquele instante eu nunca tinha sido operado.

Eles também disseram que eu ficaria fora do restante da temporada, o que às vezes me fez sentir que eu perderia a minha perna. Graças a Deus, eles não encontraram um coágulo sanguíneo, que era o que eles mais temiam. Tive de passar a noite internado à base de analgésicos e outros remédios. Na manhã seguinte, eu voltei para casa e, em três dias, não precisei mais das muletas.

Mas depois a dor voltou.

Tive de tirar ainda mais sangue da minha perna. Fui levado ao hospital quatro vezes — quatro vezes, cara — e os médicos drenaram quase 100ml. Foi horrível. A pior parte era perder os seguintes jogos:

Liverpool (C)

Manchester United (C)

Brighton (F)

Tottenham (C)

Mesmo assim, eu tinha uma meta. Eu queria muito jogar o último jogo da temporada, porque era a data marcada para termos a torcida de volta ao Elland Road. Ainda consegui voltar antes do esperado, e atuei alguns minutos contra os Spurs. Joguei com muita dor, cara. Mas tudo valeu a pena, ainda mais naquela última partida.

11. Aquele gol de falta foi para a mãe do Ronaldinho

Ela tinha nos deixado havia poucos dias. Eu não pude ir ao Brasil para me solidarizar com a família, então, antes do nosso jogo contra o Southampton, em fevereiro, eu enviei a eles uma coroa de flores. Quando cheguei ao vestiário, tive a ideia de escrever uma mensagem na minha camisa térmica:

Muita força para a família Assis Moreira.

Descanse em paz, Dona Miguelina.

Fiz isso porque senti que marcaria um gol naquele dia. No momento que tivemos a falta perto do fim, senti como se fosse uma benção, e graças a Deus a bola entrou. Depois, autografei a minha camisa da partida e a mandei para o Ronaldinho. Pelo o que o meu pai conta, ele ficou muito feliz com o presente. Ele, o sobrinho, o irmão, a sobrinha, todos gostaram do gesto. Isso significa muito para mim.

Mesmo que eu já tenha me mudado da Restinga, as velhas regras ainda valem. Sempre cuide da sua segunda família. Acolha os seus irmãos quando eles mais precisam de você. 

12. Eu simplesmente amo o Leeds, cara

Sou muito feliz aqui. Todos, absolutamente todos, me receberam de braços abertos: o Marcelo, o dono do clube, os jogadores, o staff, a torcida. Um amigo me mandou a minha música feita pelos torcedores, não entendi completamente, mas receber essa homenagem é um sonho realizado.

Na temporada passada eu só pensava no dia em que jogaria no Elland Road lotado. Foi muito difícil chegar na Inglaterra e atuar em estádios vazios, porque os torcedores são um dos principais motivos da minha vinda para a Premier League. 

Mas gostaria de dizer a todos os torcedores do Leeds que já senti o carinho e o amor de vocês. Sinceramente, não consigo transformar em palavras a minha gratidão pela maneira com que me receberam no clube.  

Só pelo jogo contra o Everton no fim de semana passado, posso dizer que a espera valeu a pena. O barulho, cara. Foi exatamente como eu lembro a minha infância. Aconteceu do jeito que estava imaginando.

Mal posso esperar para vê-los de novo. Vocês nos apoiam, e nós deixamos tudo em campo por esta camisa. E eu farei o meu melhor para vê-los sorrindo.

Autografo Raphinha

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