Isso Deve Te Deixar Desconfortável

Becca Estrella/The Players' Tribune

Estamos em 2019 e eu represento a equipe dos Estados Unidos nos Jogos Pan-americanos do Peru.

Eu tinha acabado de ganhar o lançamento do martelo, numa prova muito disputada, então inicialmente eu estava nas alturas com aquela adrenalina. Mas quando a cerimônia de premiação começou e eu subi no pódio, algo parecia... Estranho. Esta foi a maior vitória da minha carreira — em situações normais, eu deveria ter ficado extremamente feliz. Mas eu não estava orgulhosa por estar no topo como pensei que estaria.

O fato é que, no instante em que o hino nacional começou a tocar, eu me senti inquieta.

Estou no pódio e estou nervosa. Fico me mexendo pra frente e pra trás, o cansaço da competição finalmente bateu. E, enquanto ouço o hino, penso em todas essas coisas — a história da canção, o que ela realmente representa e com quem está realmente falando. Estou pensando em Michael Brown, Laquon McDonald e Freddie Gray. Estou pensando na brutalidade policial e nos ciclos de violência e... Basicamente, em quanto custa ser negro neste país. Se realmente todos temos as mesmas liberdades.

E, em logo em seguida, eu só penso tipo: Quer saber? Esta canção não fala por mim. Este hino não me representa. É hipócrita.

Decidi que seria verdadeira comigo mesma. Eu não respeitaria algo que desrespeita pessoas que se parecem comigo.

Então, quando a música chegou nesta parte, “...a terra dos livres e o lar dos valentes”, eu lentamente levantei meu punho para o alto.

Fui suspensa por 12 meses pelo Comitê Olímpico dos Estados Unidos (USOPC) e pelo Comitê Olímpico Internacional (COI) por causa do meu protesto. Eu estava confusa — e também furiosa. Eu não roubei de ninguém no pódio. Eu não ataquei nem desrespeitei ninguém.

Usei aquele momento, meu momento, para fazer com que a minha voz fosse ouvida sem ter que dizer nada.

Gwen Berry Olimpiada
Ryan Pierse/GettyImages

Meu próprio Comitê Olímpico não lutou por mim. Eles apenas mantiveram a aplicação de uma regra que havia silenciado vários atletas por anos. Então, isso foi realmente muito difícil de engolir. Eu me senti como se estivesse sendo punida por falar sobre algo que foi varrido para debaixo do tapete por tanto tempo. E houve outra reação também. Eu assisti à destruição da minha carreira. Estava perdendo apoio financeiro a torto e a direito, e se a organização de justiça racial Color Of Change não tivesse me acolhido e me bancado, eu teria sido forçada a abandonar o esporte.

No ano seguinte, porém, observei como o mundo mudou rapidamente.

Quando George Floyd foi morto pela polícia em maio de 2020, foi como se, de repente, algo clicasse para as pessoas — algo que talvez estivessem ignorando por toda a vida. Foi como se o mundo desse um giro de 180º. As pessoas pararam e começaram a prestar atenção nas questões que sempre estiveram aí: a brutalidade policial, o racismo estrutural e a opressão da vida negra.

Exato, as mesmas coisas que passavam pela minha cabeça quando levantei o punho naquele dia em Lima.

As mesmas coisas em que John Carlos e Tommie Smith estavam pensando há mais de 50 anos.

De repente, a sociedade branca “acordou”. E, de repente, comecei a receber pedidos de desculpas. Mas eu não fiquei chateada com isso. Eu tive que usar minha plataforma na Color Of Change para ter certeza de que atletas como eu não seriam mais punidos por nosso ativismo.

Quando o USOPC finalmente mudou sua regra contra protestos, permitindo que todos os atletas da delegação dos EUA se manifestassem respeitosamente em apoio à justiça racial e social, tudo o que pude sentir foi alívio. Meu sacrifício valeu a pena. Os sacrifícios daqueles antes de mim, em todos os esportes, foram reconhecidos e respeitados. Minha voz foi ouvida.

Bom, pelo menos foi o que eu pensei.

De repente, a sociedade branca “acordou”. E, de repente, comecei a receber pedidos de desculpas.

Gwen Berry

Avancemos para as provas pré-olímpicas deste ano, e tudo isso desmoronou rapidamente.

Depois de lutar para entrar na equipe, terminei as etapas de qualificação em terceiro lugar e garanti minha passagem para Tóquio. Eu nem estava pensando em nenhum tipo de polêmica, porque me disseram que o hino nacional não tocaria enquanto eu estivesse no pódio. Então, assim que subi na plataforma... O que foi que eu ouvi?

O hino.

É aqui que as coisas se complicam. No atletismo, o hino nacional não é tocado durante todas as cerimônias de pódio — ele só toca uma vez por dia num horário pré-agendado —, e neste dia em particular, eu acho que aconteceu apenas durante a cerimônia de medalha para o lançamento do martelo. Mas não posso mentir, definitivamente eu me senti um alvo. Como não poderia? Parte do motivo pelo qual eles até mudaram a regra para permitir protestos em Tóquio tem a ver com tudo que aconteceu comigo em 2019. Parecia estranho e me magoou. Estou no pódio pensando: O que devo fazer? Devo ir embora? Eu deveria sair? Devo renunciar à medalha?

Gwendolyn Berry racismo
Patrick Smith/GettyImages

Nem mesmo estávamos nos Jogos de verdade ainda. Não havia gente suficiente nas arquibancadas para prestar atenção em nada disso. Então, em vez de ir embora, decidi ficar lá. Eu disse a mim mesma para apenas relaxar. Respirar.

E, enquanto estou tentando me acalmar, eu me reviro em todos os sentidos. Assim como em 2019, estou nervosa, tentando organizar meus pensamentos, tentando conter minha raiva. Mas, para as pessoas que estão assistindo na TV, pela forma como as câmeras foram posicionadas, parece que estou intencionalmente virando as costas para a bandeira.

Perto do final da cerimônia, levantei minha camisa de Atleta Ativista como um lembrete a todos do que eu defendo. Um lembrete para meus colegas do atletismo dos EUA, para os torcedores, para qualquer pessoa que esteja assistindo em casa, que eu sempre vou falar abertamente sobre o que penso.

Gwen Berry racismo
Becca Estrella/The Players' Tribune

A reação foi quase imediata. Era como se fosse 2019 novamente. A mídia conservadora estampou dezenas de manchetes como GWEN BERRY DÁ AS COSTAS À BANDEIRA DOS EUA DURANTE HINO NACIONAL NA OLIMPÍADA. Teve uma matéria que me chamou de “a atleta olímpica americana esnobe”. O deputado Dan Crenshaw pediu a minha retirada da equipe olímpica dos EUA.

Vivenciar o alvoroço que se seguiu foi muito pesado. Todas as minhas redes sociais foram inundadas com o apoio de meus companheiros de equipe e fãs, assim como ataques de ignorantes e opositores.

Na verdade, eu estava em Houston quando vi os comentários do senador Ted Cruz sobre mim. E, a propósito, achei muito hipócrita, porque ele falou sobre eu não respeitar a bandeira, quando ele literalmente saiu de férias para o México enquanto o Texas estava em estado de emergência durante a tempestade de gelo, em fevereiro. (Sim, ainda nos lembramos disso, Ted!! Então, você não pode falar nada de mim. Você quer falar sobre respeito a um hino e a uma bandeira, mas você nem se importa com as pessoas que jurou proteger e governar. Se preocupe com isso.)

Embora seus comentários tenham gerado muitas reações negativas por parte dos trolls, um dos motivos de eu falar abertamente sobre o que eu penso é para deixar as pessoas desconfortáveis. Eu realmente quero que as pessoas prestem atenção não apenas em mim, mas também no que eu defendo.

Ser uma atleta olímpica não se trata somente do que eu represento, mas de quem eu represento. Por quem estou me manifestando. De quem eu sou um reflexo. Quando estou no pódio, sou um reflexo de mães adolescentes. Eu sou um reflexo das mulheres negras. Eu sou o reflexo de todos aqueles que tiveram de superar a pobreza.

Quando você é uma mãe negra, o trauma de ver os assassinatos de rapazes como Trayvon Martin, Tamir Rice e incontáveis ​​outros te atinge de uma forma diferente.

Sabendo que meu filho, não importa o quão inteligente ele seja, não importa o quão brilhante ele seja, não importa o quão especial ele seja, vai se deparar com pessoas por aí que nunca, jamais, jamais o verão como alguém que merece viver e prosperar no mundo... Eu sei que sempre que não estou perto do meu filho, ele corre o risco de ser espancado, abusado ou mesmo assassinado por um sistema de supremacia branca.

Quando estou no pódio, sou um reflexo de mães adolescentes. Eu sou um reflexo das mulheres negras. Eu sou o reflexo de todos aqueles que tiveram de superar a pobreza.

Gwen Berry

Se você acha que esses medos não se justificam, se ainda não consegue ver como as vidas dos negros estão sendo alvejadas, então, obviamente, vivemos em duas realidades distintas, ou você se faz de cego de propósito. Tive que usar minha plataforma para falar sobre essas questões porque não importa se eu já disputei duas Olimpíadas. Não importa se eu representei meu país em palcos internacionais.

Meu país me mostrou repetidamente que não dá a mínima para o meu filho. E isso significa que este país não dá a mínima para mim.

Então, sim, a mídia pode apresentar qualquer narrativa que se encaixe na agenda. Ted Cruz e quem quer que possa transformar isso em seu discurso para convertidos. Mas este não é apenas um pequeno momento de destaque para mim. Não estou procurando meus 15 minutos de fama. Na verdade, prefiro não ter que lidar com tudo isso. O que quer que você pense sobre o meu protesto... Ouça, estou feliz que você esteja pensando sobre isso. Tudo que tento fazer é sensibilizar as pessoas e nos manter em pauta. Porque tão rápido quanto o mundo mudou depois de George Floyd, ele voltou ao normal. A polícia não parou de nos matar e, como país, voltamos aos negócios normalmente. Mas os negros não têm esse mesmo luxo, nós não podemos simplesmente ligar a TV e relaxar.

Isso é vida real.

Isso é maior do que as Olimpíadas. Essa merda é pessoal.

Gwen Berry Estados Unidos racismo
Patrick Smith/GettyImages

As coisas não correram como eu queria em Tóquio — não consegui subir ao pódio. Mas ver Raven Saunders, minha colega e amiga, chegar lá e chamar a atenção para as injustiças intersetoriais na comunidade LGBTQ+ e negra, me deixou muito orgulhosa. Na verdade, conversamos antes sobre coisas a fazer e maneiras que poderíamos realmente tentar usar nossos momentos para provocar mudanças. Então, ver isso realmente acontecendo era tudo.

Honestamente, eu não poderia estar mais orgulhosa. Eu sei que ajudei a plantar essa semente. Raven é como uma irmã mais nova para mim, e eu estou feliz por ter sido capaz de influenciá-la de uma forma positiva.

E como Raven foi tratada, mesmo depois de tudo que passamos no último ano e todo o suposto crescimento que tivemos nos esportes? Ela foi colocada sob investigação pelo COI. Literalmente ridículo.

Isso só mostra que o COI é composto por um bando de monstros corporativos. Francamente, acho que eles são mentirosos. Eles são parte do problema. De alguma forma, eles estão lá para supervisionar todos os outros, mas não há ninguém para supervisioná-los. Ninguém os investiga, embora tenham uma lista recheada de escândalos em seu nome. Como isso pode ser certo ou justo?

Gwen Berry hino Estados Unidos
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Mas, independentemente de quão insignificante seja o COI, estou muito grata por estar em uma posição em que posso usar minha plataforma para amplificar a verdade.

Se as pessoas ouvirem o nome Gwen Berry e imediatamente pensarem na polêmica do hino nacional — se eu não for lembrada por mais nada —, estarei OK comigo.

Mas, enquanto você pensa sobre isso, quero que faça um questionamento simples.

Pense no que estava tocando quando eu levantei meu punho: “...a terra dos livres...

Pergunte a si mesmo — depois de tudo o que aconteceu, tudo o que você viu com seus próprios olhos e tudo o que ouviu nos últimos anos...

Livre pra quem?

Pra todo mundo?

Eu sei a resposta. E você?

Gwen Berry autografo

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