Sempre Haverá Estrelas no Céu

Yuri Laurindo/One9 Content

*Alerta de conteúdo: este texto contém relatos fortes sobre suicídio e pensamentos suicidas. Se você está precisando de ajuda, não hesite em contatar o serviço de atendimento gratuito do Centro de Valorização da Vida discando 188.



As pessoas podem dizer que hoje eu estou bem. Sim, eu estou. Ou que estou melhor. Melhor do que antes, sem dúvida. Mas sofri bastante até me recuperar. É difícil para os outros entenderem porque ninguém está dentro de mim. E, sinceramente, eu não faço ideia de como as coisas chegaram ao ponto de eu desejar me jogar do 19° andar de um hotel em Abu Dhabi. Acho que quase tudo passa pelo futebol, não sei. Os meus vazios, as coisas que eu fazia para preenchê-los, a minha queda, minha salvação… 

Salvações, na verdade, porque o futebol me salvou várias vezes. 

Na primeira eu tinha só dois anos. Estava internado no hospital com uma pneumonia que os médicos não conseguiam curar. Meu corpo não reagia aos antibióticos. Na nossa família, quando relembram daquelas semanas de angústia e orações, dizem que eu fiquei “entre a vida e a morte”. E que só escorreguei pro lado da vida porque certa tarde meu pai apareceu com uma bola de futebol e ela me encheu da energia que eu precisava pra sarar.

Parece que no primeiro chute dentro da enfermaria eu quebrei um vidro. E foi uma alegria geral, uma festa. Depois de um tempo “desenganado”, outra palavra vincada na nossa história familiar, eu estava em pé. “Matheusinho vai ser jogador! E vai nos trazer muita luz”, disse o meu pai. Ele tava certo. Mas quem adivinharia que junto com a luz viria tanta sombra?

Um dia eu acordei e a escuridão tinha se instalado na minha alma.

Matheus Pereira

Pouco tempo depois a gente mudou de Belo Horizonte pra Governador Valadares. Meus pais e os cinco filhos. O trabalho do meu pai como vendedor de consórcios de carro já não estava bom, minha mãe fazia faxina em casa de família e a nossa condição ficou apertada. Em Valadares, uma cidade menor e mais barata que a capital, teríamos fôlego.

A bola milagrosa do hospital foi comigo. Eu não largava dela. Era a minha melhor companhia. Mas não me passava pela cabeça fazer teste, peneira, tentar uma carreira, nada disso. Só brincar de futebol estava bom, me fazia feliz. Aí entrei na escolinha de um clube chamado Filadélfia e, no meio do prazer que o futebol me dava, todos os dias ficava uma pontinha de tristeza. A cota mensal que meu pai podia pagar só me dava direito ao futebol. Então, no final dos treinos, enquanto os outros garotos do time iam pra piscina, eu ficava olhando do lado de fora da grade. Era uma viagem fulminante da alegria pra tristeza em poucos segundos. 

Depois de um tempo, como eu me destacava com a bola, os professores da escolinha, dois anjos chamados Bruno e Marcelo, conseguiram acesso ao clube inteiro pra mim.

Foi boa a sensação de descobrir que existem pessoas que estendem a mão, se preocupam. Aquele gesto do Bruno e do Marcelo fez um bem danado pra gente, foi um novo respiro, porque a venda de consórcios do meu pai tinha zerado e à noite, na hora do jantar, a conversa era sempre sobre mudar de cidade de novo.

E, de fato, nós nos mudamos, num processo que tumultuou ainda mais as nossas vidas e me fez virar jogador profissional.

Primeiro, meu pai foi sozinho pra Portugal. Eu não entendia direito o que estava acontecendo, ou como aquilo ia acabar. Eu só sentia uma tremenda falta dele me levando na escolinha de futebol. Foi outra tristeza. Num dia eu tinha meu pai o tempo todo do meu lado. No outro, eu não sabia onde ele estava nem se ia vê-lo de novo.

Depois de um ano a minha mãe foi encontrar com ele. Ela nos deixou, a mim e meus irmãos, morando em BH com a nossa avó surda e muda. Pensa. Eu era um menino de 11 anos, meus pais tinham se mudado para Lisboa e a minha educação dali pra frente seria responsabilidade de uma senhora de idade que não falava nem ouvia. Pra completar, uns tios meus que também moravam ali eram envolvidos com tráfico de drogas.

Matheus Pereira Cruzeiro Players Tribune
Felipe Vianna/The Players' Tribune

Nesse tempo eu joguei pouco futebol. Ficava mais na rua arrumando briga e confusão. Uma vez passei alguns dias trancado em casa porque um garoto mais velho tinha jurado me matar. A situação piorou rápido e chegou aos ouvidos dos meus pais em Portugal. Eles sabiam como as coisas funcionavam ali quando me deixaram pra trás, só que o ser humano sempre tem esperança, sempre acha que vai dar certo, não é? Mas estava dando errado.

Existia um risco grande de eu seguir os passos dos tios. Então, minha mãe voou pro Brasil. O plano era pegar nós cinco e voltar pra Portugal. “Tá maluca?! Uma mulher com esse monte de criança pequena? É óbvio que vai ser todo mundo deportado”, diziam pra ela.

Mas o que minha mãe podia fazer? Que outra saída ela tinha? Chegamos no aeroporto em Lisboa e não deu outra: os seis pra salinha da imigração. Deram papel e lápis pros meus irmãos menores desenharem. De cara, eles desenharam um homem. 

— Quem é esse?, perguntou o oficial português.

— É o papai.

— E onde ele está?

— Viajou.

Nem deu tempo de contar a mentira que a nossa mãe tinha ensaiado, dizer que a gente estava viajando de férias, só passeando. O oficial falou:

— A senhora não precisa mentir. Só queremos saber a verdade.

— Tá bom. A verdade é que eu e meu marido estávamos desesperados e viemos pra cá tentar uma vida melhor. Deixamos os meninos no Brasil, mas eles começaram a correr perigo lá e eu fui buscá-los, pra ficarmos todos juntos de novo. O pai está aí fora esperando por nós.

— Está bem. Como a senhora falou a verdade, vamos deixar vocês entrarem. Boa sorte em Portugal.

Fala sério, né?! Qual a chance de um troço desse acontecer? Uma em um milhão? Mas aconteceu. E se eu achava que a minha vida já tinha mudado demais pra um garoto que iria completar 12 anos, num pinga-pinga sem fim pra lá e pra cá impedindo que eu criasse raízes, fizesse vínculos bons, me sentisse seguro, a tormenta estava apenas começando. E a maravilha também.

Eu passava muito, muito tempo chapado. Também bebia um monte e gastava o dinheiro que sobrava em baladas. Depois me sentia um trapo, um miserável.

Matheus Pereira

Comecei a treinar num clube chamado Trafaria, do lado de lá do rio Tejo. Foi ali que um dia um olheiro me viu e me levou pro Sporting. Era o José Meirelles, que Deus permitiu estar no lugar mais improvável possível para me direcionar a um período de peneiras em um grande clube português.

Passei dois anos no Sporting só treinando. Não podia jogar nas competições por ser um imigrante ilegal. É uma condição desconfortável essa, de medo e insegurança. Por outro lado, eu era um imigrante ilegal que só queria se divertir em um clube que estava acreditando em mim. Principalmente porque eu arrebentava nos treinos, jogava muito, confirmando que o olho do olheiro era bom mesmo.

Quando eu finalmente consegui um visto de residência, assinei meu primeiro contrato com 15 anos e passei na tesouraria do clube pra retirar meu primeiro cheque. Foi aí que a ficha caiu.

Caramba, eu faço isso por prazer, pra me sentir feliz, me sentir alguém, e os caras ainda me pagam um dinheiro desse tanto? Eu vou é cair pra dentro, porque é a minha chance de mudar tudo, de chegar lá em cima. 

Lembro dessa imagem que construí na minha cabeça: chegar lá em cima. Eu só não sabia que lá em cima podia ser um lugar perigoso pra mim.

Matheus Pereira Sporting
Giuseppe Bellini/Getty Images

Estava indo tudo direitinho na minha jornada de nova grande promessa do futebol português. Ninguém esperava um novo Cristiano Ronaldo, claro, mas botavam muita fé em mim. Hoje, refletindo sobre tudo o que aconteceu e ainda sem entender completamente, eu me pergunto se essa pressão, que talvez estivesse só na minha cabeça, pode ter me ajudado a afundar na escuridão. Francamente, eu não sei. Não sei mesmo…

A situação em casa é que não ia bem. Um tempo depois que assinei com o Sporting, meus pais se separaram e eu tive que me mudar outra vez. Agora sozinho: fui morar no CT e quase pus tudo a perder.

Desde os tempos com a minha avó surda e muda eu sentia uma grande insatisfação dentro de mim. Uma rebeldia que eu não sabia de onde vinha, uma necessidade de desafiar, desobedecer, uma inquietude que me consumia. Vivendo no CT, mais uma vez sem ninguém olhando por mim ou me falando sobre as coisas importantes, eu fui brincar na beira do abismo.

Me juntei à rodinha da maconha e passava muito, muito tempo chapado. Também bebia um monte e gastava o dinheiro que sobrava em baladas. Depois me sentia um trapo, um miserável. Me culpava de um jeito insuportável ao imaginar a tristeza dos meus pais se eles soubessem. Eles me deram uma educação cristã, eu sou filho de um lar cristão, nada a ver com aquilo.

Como eu podia ser capaz de me perder daquela maneira justamente no momento em que Deus escancarava as portas do futebol pra mim? Não sei. Essa resposta eu também vou ficar devendo. 

Lá em Alcochete, onde tinha alguns “amigos”, a sexta-feira era o nosso dia de enfiar o pé na jaca. Ao final da tarde, juntávamos num canto e eu era o encarregado de enrolar o baseado. Aquilo fazia eu me sentir o cara, forte, sabedor de todas as respostas. Teve uma sexta-feira em que eu enrolei o baseado, passei e, quando ele voltou pra mim, eu olhei a cena toda ao redor e me deu um negócio. Acho que foi o Espírito Santo sussurrando no meu ouvido… 

“Não. Hoje eu não quero droga”, falei pros moleques, que me zoaram. “Amanhã tem jogo contra o Benfica e eu quero jogar bem.”

Os caras riram.

No dia seguinte, acabei com o jogo e fui sorteado pro antidoping. Imagina! Se fosse em qualquer outra partida da temporada ia dar merda. Naquela, não. De novo eu pensava nas minhas chances.

Qual a probabilidade de um imigrante ilegal assinar contrato com um dos maiores times da Europa, ajeitar a vida da família, se perder nas drogas e sair ileso do antidoping? Nesse momento eu acho que Deus falou comigo: “Matheus, eu estou cuidando de você. Mas, se você não ajudar, fica difícil”. Beleza, Senhor, entendi. Mas eu não sou capaz de me ajudar. Nunca fui.

Chegou uma hora que o Sporting perdeu a paciência e, pra não me dispensar, decidiu que era melhor eu tomar um ar fresco fora de lá. Tive que mudar de novo. Me emprestaram para o Chaves, onde o técnico era o Luis Castro.

Pela primeira vez na vida eu fui morar totalmente sozinho. A cidade não tinha nada, era muito pequena e pacata. Treinava de manhã e ficava o resto do dia sem ter o que fazer. Comecei a sentir aquela inquietude voltando. Logo, logo eu ia me meter em roubada. Mas dessa vez tinha uma coisa diferente.

Luis Castro Matheus Pereira
Cortesia de Matheus Pereira

Em vez de rebelde e angustiado, eu me sentia triste. Uma tristeza profunda que não me deixava sair de casa. Nessa situação, tristeza atrai tristeza e, no meu caso, sempre acaba mal, porque eu não consigo evitar. Comecei a me achar uma farsa.

Pô, esse é o pupilo do José Meirelles? 

A grande promessa do futebol português desde Cristiano Ronaldo? 

Esse cara que fez tudo errado e veio parar aqui nesse fim de mundo que nem shopping tem?

Não tinha a menor chance de eu jogar bem com a cabeça desse jeito. Um dia, depois de mais um treino péssimo, eu bati na porta da sala do Luis Castro. Eu me sentia aflito, parecia que meu peito ia explodir. Contei tudo pra ele.

— Professor, eu não estou conseguindo. É tudo muito pesado pra mim.

— Miúdo, na vida, às vezes, quando a gente não consegue sozinho, tem que deixar outro nos guiar. Fique calmo. Sempre haverá estrelas iluminando o céu, mesmo que você não as veja por causa dos dias nublados. 

O futebol mais uma vez me estendia a mão. Eu entendi que o “outro” que me guiaria era Deus. Me agarrei nisso, me reconciliei com a minha fé e, aos poucos, fui melhorando. 

Não sei se era exatamente disso que o Castro estava falando. Mas serviu pra eu me sentir menos sozinho e ferrado. Doze meses depois, quando acabou meu empréstimo ao Chaves, eu voltei pro Sporting com outra mentalidade.

Matheus Pereira Players Tribune
Felipe Vianna/The Players' Tribune

Agora eu quero arrebentar. Chega de ser promessa. Eu vou acontecer. Vou fazer valer o dom que eu tenho, o dom que as pessoas acreditam e admiram em mim, vou sair desse buraco em que eu me meti e me estabelecer na vida, em Portugal, no futebol.

Mas mal bati de volta em Lisboa e tive que me mudar outra vez. Alemanha. Fui emprestado pro Nuremberg. Eu não falava alemão, inglês, francês, nenhum outro idioma além do português. Então foi o período que eu vivi mais calado na minha vida.

Por sorte eu tinha acabado de me casar e minha esposa me ajudou a segurar a barra. Fiz uma boa temporada e, mesmo jogando por um time que lutava contra o rebaixamento, fui considerado um dos melhores jogadores jovens da Bundesliga. Minha parte estava entregue. Bom, tô pronto pra voltar e recomeçar no Sporting, eu pensei. Era o meu desejo.

Mas não.

Quiseram me emprestar. Eu desmoronei outra vez. Aquele peso, aquela sensação de que o mundo está contra você, aquela dificuldade de respirar, aquela certeza de que você é um inútil. As conquistas — e eu tinha muitas, apesar de tudo — não me diziam nada. Eu só afundava. Não adianta: eu sou esse cara que fica pingando de um lado pro outro e não deslancha em lugar nenhum.

Tá bom, eu sei que é difícil de entender pra quem olha de fora. Nem eu mesmo consigo explicar. Só posso dizer o que eu sentia: a tristeza e o fracasso corroendo cada pedaço do meu corpo.  

Acabei indo jogar na segunda divisão, mas na Inglaterra. Meu novo clube era o West Bromwich. Apesar de mais uma mudança, e eu estava farto delas, me agarrei nessa oportunidade . O projeto era muito bom — e, na parte financeira, igualmente. Tinha uma cláusula no contrato que obrigava o clube a me comprar por um dinheiraço se eu fizesse 30 jogos ou se o time subisse para a Premier League. As duas coisas aconteceram. Foi o meu melhor momento profissional.

Matheus Pereira West Brom Premier League
Danehouse/Getty Images

Eu jogava bem, me sentia importante pra equipe, pros torcedores, e as probabilidades malucas da vida estavam de novo do meu lado: um croata no time, o Krovinovic, que tinha jogado no Benfica e falava português, me ajudava demais. O mais louco de tudo é que nós disputávamos a mesma posição. Apesar disso, em nenhum momento ele me sacaneou ou deixou de me estender a mão.

Foi mais um anjo que o futebol pôs na minha vida. Aquela voz de Deus, lembra? “Matheus, eu estou cuidando de você.” Só uma coisa me incomodava: a relação com a minha família estava ruim e, pra manter o foco na carreira e ter paz, eu tive de tomar uma decisão muito difícil: me afastar de vez dos meus pais. Paramos de nos falar, cortei todos os contatos. 

Nas duas temporadas, eu fui destaque do West Brom. Performei com uma regularidade que nunca havia tido. Mas isso não impediu que a equipe voltasse para a segunda divisão. Era o tempo da pandemia de Covid, e os clubes resolveram segurar os investimentos. Apareceu uma proposta absurda do Al-Hilal, da Arábia Saudita, e eu me mudei mais uma vez.

Fiquei com medo do que essa nova mudança faria com a minha cabeça, mas era muito boa financeiramente. Conversei com a minha esposa e decidimos aceitar. Não demorou pro declínio psicológico reaparecer. Nem sempre existe uma causa específica, acho que é mais o conjunto de uma vida inteira, mas, morando em Riad, eu senti falta da minha igreja. 

Em West Bromwich a gente participava de uma pequena comunidade cristã e isso me fortalecia, eu estava amparado. Na Arábia Saudita, não tinha.

Também comecei a sentir falta dos meus pais e não conseguia encontrar uma maneira de retomar o contato com eles. Então, um dia eu acordei e a escuridão tinha se instalado na minha alma.

Minha esposa fez o que pôde. Ela foi guerreira, nunca saiu do meu lado e fez bem em chamar um amigo meu pra ficar comigo o tempo todo, ser meu motorista na Arábia Saudita. Mas não adiantava.

Primeiro, tentando algum alento, nós começamos a ir pra Portugal em todas as folgas. A gente ficava na praia, revia uns amigos, eu me reerguia e… desabava de novo quando regressava a Riad. Depois, achei que seria uma boa ideia voltar a beber — beber muito. Quem sabe embriagado eu esqueço um pouco de mim? Claro que eu piorei. E piorava ainda mais quando a ressaca passava e eu me sentia culpado pelo que fazia comigo e por não conseguir melhorar. 

Se existiam estrelas mesmo no céu nublado, como disse o Luis Castro, elas estavam apagadas pra mim. A minha vida era uma repetição que eu não suportava mais. Pedi pra sair do Al-Hilal sem saber aonde ir. Naquela altura, eu não queria ir pra lugar nenhum. Eu não queria nada, não tinha mais prazer em nada, não prestava pra nada. Eu era um nada. Já tinha desistido de jogar futebol.

Matheus Pereira Al Hilal Ramon Diaz
Matthew Ashton/AMA/Getty Images

Foi nessa época que apareceu uma possibilidade de ir pro Corinthians. Meu amigo e minha esposa acharam que, naquele estado em que eu me encontrava, jogar num time grande no Brasil com tanto foco da mídia poderia piorar tudo. Eles estavam certos, mas eu não admitia. Só queria sair da Arábia, a qualquer custo.

E foi assim que acabei indo parar em Abu Dhabi, contra a minha vontade. Ah, vamos tentar mais uma vez. Pode ser legal. Um país de menor expressão no futebol, dizem que é bom pra viver, seguro e tal. “Pode ser bom pra você fazer uma descompressão.” O ser humano sempre tem esperança, sempre acha que vai dar certo, não é? Eu já conhecia aquele filme. Antes de qualquer coisa, eu me conhecia. Sabia o tamanho da minha dor e passei a ter medo de onde ela estava me levando.

O clube era o Al-Wahda, que colocou a gente pra morar num hotel de luxo, no apartamento do 19° andar. Até hoje a minha esposa diz que a vista lá de cima era linda. Eu não lembro de ter olhado algum dia pra ela. Pra mim era tudo escuridão e desespero. Eu estava cansado de lutar. Estava cansado de ficar cansado. Eu queria me livrar de tanto sofrimento que eu nem entendia de onde vinha. Tinha noite que eu bebia três garrafas de vinho. Treinei bêbado várias vezes e fiquei outras tantas internado no hospital com hipocalemia, tomando soro pra tratar a falta de potássio no sangue, porque eu não me alimentava, só ingeria álcool.

Até que um dia eu abri a janela do nosso apartamento com vista espetacular e só não me joguei porque a minha esposa foi mais rápida. Ela me agarrou, me puxou pra dentro e a gente ficou um tempão chorando abraçado ali no chão da sala, sabendo que não era o fim — nem o meu, nem o do meu sofrimento.

Fui fazer terapia, quatro sessões por semana, e isso me ajudou como nada tinha sido capaz antes. Mas demorou pra eu desistir de morrer. Durante algum tempo, na minha cabeça só tinha uma palavra: morte, morte, morte. A única coisa que eu conseguia enxergar era a morte. Meu amigo motorista até concentrava comigo antes dos jogos. Sozinho, eu era uma ameaça. Podia fazer mal a mim mesmo e aos outros. 

Matheus Pereira Abu Dhabi
Felipe Vianna/The Players' Tribune

Numa noite de recaída em casa, eu peguei a chave do carro e saí correndo. Desci rápido pelo elevador, peguei o carro na garagem e dirigi feito doido. Não me importava o destino, desde que ele fosse o fim.

Daí toca o meu celular. Era minha irmã mais nova. Já atendi chorando. “Eu não aguento mais, eu não aguento mais, eu não aguento mais. Me ajuda, pelo amor de Deus! Eu quero me matar. Eu preciso me matar.” Ela tinha me ligado pra dividir comigo a notícia mais feliz da vida dela: ela ia ser mãe. E eu ali estragando tudo — tudo o que estivesse perto ou longe de mim.

Nós conversamos bastante, a minha irmã disse que o bebê ia precisar de um tio craque que ensinasse ele ou ela a jogar bola. Isso me comoveu muito e me trouxe uma felicidade momentânea, que não foi suficiente para silenciar aquele impulso de morte na minha cabeça.

Tinha parado no estacionamento de uma lanchonete chamada Shake Shack, que fica na baía de Abu Dhabi, pra atender a minha irmã. Assim que desliguei o celular, eu desejei ir à ponte Hudariyat. E se eu me jogar dali? É isso. Eu vou me jogar dessa ponte. Pronto. Acabou. Dei a partida e o carro não pegou. Tentei de novo. Nada. Passei uns 10 minutos tentando fazer o carro funcionar e não conseguia. Insisti de todas as formas, mas não pegava. Parecia que tinha algo me travando. Até que minha esposa aparece, abre a porta do carro e me dá um abraço.

Nessa noite, voltando pra casa com ela, eu senti que foi o Espírito Santo que me segurou ali dentro do carro. E que, de alguma maneira, seja pela ligação da minha irmã ou pela chave emperrada na ignição, Deus permanecia me guiando. Ainda assim, eu estava decidido a acabar com meu sofrimento de outro jeito: abandonando o futebol.   

Matheus Pereira Cruzeiro casa
Felipe Vianna/The Players' Tribune

O futebol era o culpado, só podia ser. Essa vida que ele me deu é boa, mas muito complicada. Eu não sei lidar com ela. Nem voltar a falar com meus pais eu consigo. Então acabou. Chega. Não quero mais ficar pra lá e pra cá, não quero mais dar assistências, não quero mais fazer gols, não quero mais a vibração da torcida, não quero mais dinheiro. Eu vou parar e depois, se sobreviver, eu vejo o que faço da minha vida. Por enquanto eu quero só ficar na minha casa, quietinho e seguro.

Terminou o contrato de empréstimo com o Al-Wahda e voltei pra Portugal. Eu tinha certeza que longe do futebol, com o tempo, eu ficaria bem. Funcionou por uns dias. Fiquei bem. Ou melhor... Melhor do que antes. Eu não precisava de futebol pra nada. A bola milagrosa era uma mentira tão grande quanto eu. Adeus, futebol.

Demorou pra eu desistir de morrer. Ainda assim, eu estava decidido a acabar com meu sofrimento de outro jeito: abandonando o futebol. 

Matheus Pereira

Naquela altura, eu já tinha prometido à minha esposa e a mim mesmo que não voltaria de jeito nenhum para a Arábia e não cumpriria o restante do contrato no Al-Hilal. Mas aí a Seleção Brasileira foi fazer um amistoso contra Senegal em Alvalade, o estádio do Sporting.

Bom, quer saber? Tô aqui de bobeira, com tempo de sobra, vou lá. Comprei ingresso e fui assistir. De repente, sentado na arquibancada, eu me pego emocionado. Sinto meu coração bater diferente. Comecei a fantasiar que o treinador ia me chamar e eu ia entrar em campo pra ajudar a Seleção.

Me deixei levar por esses pensamentos e fui parar na minha Belo Horizonte da infância, quando a vida era mais difícil, mas menos complicada. Estava toda a família junta, unida, como sempre fomos antes de partir para Portugal, e eu era só um garotinho sobrevivente de uma pneumonia brincando na rua com meus irmãos e meus amigos. Parecia um sentimento tão simples, tão bobo e tão genuíno, que nesse dia eu entendi: as melhores coisas da vida são as mais simples, as mais autênticas.

Matheus Pereira mulher esposa
Felipe Vianna/The Players' Tribune

Será que eu seria capaz de reencontrar uma vida autêntica no futebol? Ainda daria tempo? Onde isso seria possível? Qual o caminho?

O caminho quem me mostrou foram as cinco estrelas mais bonitas do céu. Aquelas cinco que brilham sobre um azul infinito e glorioso. Quando o Cruzeiro me procurou, eu imaginei as cinco estrelas brilhando em cima do meu coração e falei: “Caracaaa, é isso!”. O que pode ser mais autêntico na minha vida do que o Cruzeiro?

Eu sempre fui cruzeirense. Antes que tudo acontecesse, quando o futebol era só uma alegria imensa e verdadeira, eu brincava de bola querendo ser o Alex, querendo vencer a Tríplice Coroa, mesmo que todos os meus familiares torcessem para o rival.

Se podia dar certo, se havia alguma esperança, o Cruzeiro era o meu único caminho. Juntei as minhas coisas em Portugal e, ansioso, pela primeira vez fiz uma grande mudança por livre e espontânea vontade.

No Cruzeiro eu reencontrei mais do que paz. Eu me reencontrei. Parece bobagem, mas não é. Porque no meio da escuridão, e eu andei muito por lá, a coisa mais difícil que tem é a gente se reconhecer. E isso piora demais uma situação que já está ruim. A gente não sabe mais quem é. 

Matheus Pereira gol Mineirao Cruzeiro
Gustavo Aleixo/Cruzeiro

Chegar num estado de degradação mental em que você se anula a ponto de desejar morrer é um processo violento e complicado de sair. Traz muita dor pra você, pra quem você ama e praqueles que te amam. Ninguém sai disso sozinho. Precisa pedir ajuda e acreditar nas palavras do Luis Castro: “Sempre haverá estrelas iluminando o céu”. Eu sei que não é fácil, mas, por favor, acredite e peça ajuda. A vida não desiste da gente. Ela insiste.

Eu tô aqui de prova. A terapia me ajudou demais, e Deus me mostrou uma luz no fim do túnel. No meu caso, a luz das estrelas, que me guiaram na escuridão e recolocaram brilho nos meus olhos. Era o futebol me estendendo a mão — sim, mais uma vez.

No Cruzeiro, eu me reencontrei.

Matheus Pereira

Por isso, quando cruzei o portão da Toca, em julho do ano passado, eu prometi segurar essa mão com toda força do mundo, ser eternamente grato e retribuir com conquistas a confiança do meu clube de coração.

Espero que este meu testemunho possa ajudar outras pessoas que estão sofrendo. Hoje eu estou bem. Melhor do que antes. E ainda tenho coisas para resolver e curar.

Mas, enfim, eu me reconheço de novo: no alívio de não precisar mais esconder tudo o que passei, no reencontro com a paixão de menino onde ela sempre esteve e, principalmente, no Mineirão cheio de cruzeirenses em noite de céu estrelado, onde me enxergo sóbrio, inteiro e feliz para cumprir a minha promessa.

Autografo Matheus Pereira


Se você ou alguém que conhece precisa de ajuda, entre em contato com o Centro de Valorização da Vida pelo número 188. O atendimento é gratuito e 24 horas.

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