Dias de Glória

Staff Images/Cruzeiro

Torcida cruzeirense,

Fiz questão de esperar o momento certo para escrever esta carta pra vocês. Perdoem o meu portunhol, mas como dizemos lá no Uruguai: listo el pollo.

Nós, uruguaios, usamos essa expressão sempre que terminamos uma tarefa ou cumprimos um objetivo. E agora, finalmente, eu posso dizer que cumprimos o nosso. Não só por alcançar o tão sonhado retorno à primeira divisão, mas também por ter conquistado o acesso e a taça de campeão com a maior antecedência da história da Série B.

Eu sei que para vocês, que se acostumaram a ver este clube — o maior vencedor do Brasil no século XXI — levantar os principais troféus do continente, um título da segunda divisão pode não representar aquilo que a Nação Azul realmente merece. Mas saibam que, para nós, que aceitamos o desafio de recolocar o Cruzeiro em seu devido lugar, esse primeiro passo significa muita coisa.

Talvez vocês custem a acreditar no que eu vou dizer, mas preciso confessar algo aqui… Eu sabia, desde o dia em que pisei na Toca da Raposa, que nós iríamos triunfar. E não estou dizendo no sentido de bater a meta do acesso. Eu digo triunfar no sentido de ganhar, de vencer, de ser campeão. De fazer história.

Paulo Pezzolano tecnico Cruzeiro
Thomas Santos/Staff Images/Cruzeiro

Me desculpem por não ter contado isso antes, mas eu sempre soube. Na verdade, eu soube antes mesmo de chegar a Belo Horizonte.

Tive a sorte de receber três propostas de emprego na mesma semana. Duas equipes do futebol argentino, que disputariam a Libertadores, e o Cruzeiro. Antes de tomar a decisão, eu fui dormir e pensei comigo: Qual será a melhor escolha? Qual caminho eu devo seguir? Então, quando eu coloco todas as possibilidades na balança, a única coisa que consigo enxergar é a grandeza do Cruzeiro. Juntamente com minha comissão técnica, eu estava convencido de que iria dar certo.

Você deve estar se perguntando: “Mas será que o Papa não hesitou nem por um instante?”.

É claro que eu também sabia que seria complicado. Peço licença para usar outra expressão típica do Uruguai: no es soplar y hacer botella. Isso significa que nada é tão fácil como parece. E não foi mesmo.

Já tinha essa noção antes de aceitar o convite do Cruzeiro, porque treinadores consagrados haviam passado por aqui e não conseguiram levar o time de volta à Série A. Não é algo normal para um clube grande disputar a segunda divisão pelo terceiro ano consecutivo.

Sabendo disso, entendemos que nosso primeiro objetivo em Belo Horizonte seria trazer a torcida para o nosso lado. Mas o que acontece assim que chegamos? A saída do Fábio. Muitos de vocês ficaram tristes, indignados, justamente o contrário do que havíamos planejado.

Se foi aí que eu hesitei? De maneira nenhuma. Nesse momento, eu fiquei ainda mais convencido de que, sim, ia dar certo. De que esse episódio, no fim das contas, acabaria fortalecendo o nosso trabalho.

Eu sabia, desde o dia em que pisei na Toca da Raposa, que nós iríamos triunfar.

Paulo Pezzolano

A única coisa que pedi aos jogadores foi para que representassem a nossa torcida dentro do campo. E isso nós conseguimos. Por sorte, desde o primeiro jogo, vocês se sentiram representados. Em um clube gigante como o Cruzeiro, o torcedor desempenha um papel muito mais importante do que as pessoas imaginam. Todos pensam que só o resultado é capaz de encher um estádio. Mas não é assim. Quando a torcida enxerga o comprometimento dos jogadores com a causa, eu garanto que isso atrai mais até do que as vitórias.

Posso dizer porque foi exatamente com isso que o torcedor cruzeirense nos brindou. Jamais vou esquecer o que vocês fizeram na final do Mineiro. Apesar de termos perdido o título para o rival, aconteceu algo que eu nunca tinha visto em toda minha vida. 

Tomamos um gol… e a torcida seguia cantando. 

Tomamos outro… e a torcida seguia cantando. 

Acabou o jogo… e a torcida seguia cantando.

Perdemos um clássico, uma final de campeonato, e a torcida seguia cantando.

Ali eu tive a certeza de que havíamos alcançado o primeiro objetivo: vocês estavam do nosso lado. Alguns podem até dizer que é normal a torcida abraçar o time nas fases ruins. Pode ser… Talvez seja assim no Brasil. Mas uma torcida seguir cantando sem parar, mesmo após uma derrota para o rival, é inigualável. Ali, naquele dia, foi o nascimento deste ano tão especial que vivemos.



Como eu disse, não foi fácil. Ninguém nos deu nada de graça. E os cruzeirenses sabem do que eu estou falando.

Para mim, o Cruzeiro era um gigante adormecido. Se a gente quisesse triunfar, teríamos de nos preocupar com cada pedaço, com cada detalhe do clube. Um clube que padecia na escuridão. 

Quando cheguei à Toca, era possível sentir o sofrimento pelo semblante das pessoas. Havia um silêncio, uma atmosfera sombria no ar. Parece que todo mundo esperava que viesse alguém e despertasse este gigante do sono profundo.

Em pouco tempo, o céu abriu e voltou a ficar azul. Ao contrário de alguns meses atrás, hoje todo corredor tem luz. Cada parede está devidamente pintada. Os campos de treinamento bem cuidados. Todos os trabalhadores, da comissão técnica aos cozinheiros, sentem prazer em estar aqui. As instalações são as mesmas, mas agora elas têm vida. E isso faz toda a diferença.

Durante a pré-temporada, eu assisti a todos os jogos do Cruzeiro do ano anterior. Entendi que, para conectar o torcedor a essa nova realidade do clube, nós também precisaríamos gerar algo diferente em campo. Foi aí que eu me lembrei do meu início no Uruguai. De como surgiu a minha paixão pelo futebol.

Quando comecei no Baby Fútbol, que são as competições entre equipes de bairro de onde saem todos os jogadores uruguaios, meu ídolo máximo era o Francescoli. Eu queria jogar como ele, marcar gols como ele. Para mim, o maior propósito do futebol sempre foi festejar um gol. Nessa época eu não entendia muito do jogo, apenas queria que a minha equipe atacasse e nada mais.

Bem depois de me tornar jogador é que passei a entender de verdade sobre futebol. Já no fim da minha carreira, tive um técnico chamado Liber Vespa, que havia sido um meio-campista destacado da seleção uruguaia. Ele me treinou no Torque City, e a gente jogava com muita posse de bola. Dentro do campo, eu desfrutava do que fazia. Era lindo jogar assim. Ver a outra equipe correr atrás da bola, nosso time sempre marcando em bloco alto… Pô, isso era prazeroso demais. E ajudou a despertar aquele sentimento de menino que só queria ver sua equipe atacar e marcar gols como inspiração em minha trajetória como treinador.

Paulo Pezzolano Players Tribune
Hector Vivas/Getty Images

O estilo de Liber Vespa, sem dúvida, é uma referência. Mas fui agregando outros conceitos ao meu trabalho, sobretudo a intensidade.

Não gosto que meus times toquem a bola por tocar. O objetivo é tocar a bola para encontrar buracos na defesa adversária e atacar. Quero fazer gols, não importa qual seja o resultado. Jogar bem significa ter mais oportunidade de gol que o rival, basicamente.

Se nós temos seis oportunidades de gol e o rival apenas duas, nós jogamos melhor. Se em dez jogos atacamos mais que os rivais, a maior probabilidade é que a gente tenha mais vitórias que derrotas. 

Isso é ser protagonista do jogo.

Minha intenção era retomar o protagonismo do Cruzeiro, com e sem a bola, pois é algo que está muito presente na cultura do clube. O que geramos de diferente em campo foi o que o torcedor cruzeirense, assim como eu, sempre gostou de ver: uma equipe que joga bom futebol. 

Isso é ser Cruzeiro. Um protagonista na história do esporte brasileiro.

Ronaldo Pezzolano titulo Cruzeiro serie B
Staff Images/Divulgação/Cruzeiro

A essa vocação ofensiva, agregamos um pouco da mentalidade uruguaia. Como vocês sabem, somos um país de três milhões de habitantes. Toda nossa população provavelmente caberia dentro de Belo Horizonte. Para conquistar títulos e revelar tantos jogadores, nós, uruguaios, precisamos ser perseverantes e ter a cabeça muito forte. Não nos rendemos por qualquer coisa. Gostamos mais das coisas difíceis que das fáceis.

Com esta equipe do Cruzeiro acontece algo parecido. Nosso time cresce nas adversidades e nos momentos de pressão. Os jogadores têm rebeldia e coragem para atacar qualquer adversário, uma virtude que se manteve ao longo de toda a temporada, mesmo depois das derrotas.

Aqui entra um personagem importante não só para sermos fieis à nossa proposta de jogo, mas também para que a gente pudesse consolidar essa identidade…

O nome dele é Ronaldo Nazário.

Logo que nos reunimos pela primeira vez, via Zoom, já percebi que estava diante não apenas de um jogador lendário que virou dirigente. Eu estava diante de um homem com capacidade de gestão e inteligência acima da média.

Pude notar isso antes mesmo de conversar com ele, ao conhecer as pessoas que estão ao seu redor. Do CEO administrativo ao seu braço-direito no futebol, ele se cercou de uma equipe muito competente. E todos têm uma função bem definida no clube. Quando vejo organização, planejamento e competência no projeto, nem precisava conhecê-lo pessoalmente para saber que se trata de um cara preparado para a função que ocupa.

Sem contar que, vamos combinar… É o Ronaldo! O Fenômeno, um dos melhores atletas de todos os tempos. Por tudo o que conquistou como jogador, ele teria autoridade suficiente para mandar e desmandar de acordo com suas vontades.

Ronaldo Paulo Pezzolano Cruzeiro
Staff Images/Divulgação/Cruzeiro

Mas se tem uma coisa que eu posso garantir é que ele nunca, nunca mesmo, se intrometeu em qualquer assunto do campo.

Nunca deu palpite em escalação.

Nunca sugeriu esse ou aquele jogador.

Nunca quis impor qualquer coisa ao time.

Às vezes, vemos presidentes, dirigentes ou conselheiros que jamais chutaram uma bola achando que entendem mais de futebol que os próprios treinadores. Querendo se meter onde não são chamados nem têm qualificação para trabalhar.

E aí, no Cruzeiro, temos um Ronaldo absolutamente consciente de seu papel. Até porque ele sabe que, se quisesse escalar o time, seria treinador, não o presidente… Hahaha!

Ter alguém como ele nos apoiando na direção é mais que uma honra. É um lembrete diário sobre o tamanho deste clube e o lugar aonde realmente queremos chegar.



Vocês, cruzeirenses, acompanharam melhor do que eu a agonia deste clube no CTI. Imagino que muitos rivais, que observaram de fora a situação, deram o Cruzeiro como morto e enterrado. Mas nós provamos que um gigante, por mais adormecido que esteja, nunca morrerá.

Hoje eu consigo dimensionar um pouco da alegria que vocês sentiram ao ver o time de volta à Série A, porque a torcida foi capaz de demonstrar plenamente esse sentimento.

A primeira vez que escutei a música que embalou a nossa campanha este ano eu me arrepiei, juro. E isso aconteceu uma, duas, três vezes mais… Todas as vezes que vocês cantaram essa letra nas arquibancadas do Mineirão. Uff, vocês não sabem como é emocionante ouvir isso lá do gramado!!

Creio que o Dia da Glória representa o símbolo do renascimento, a data tão esperada por vocês ao longo desses anos sofridos. O dia que, infelizmente, outros tantos cruzeirenses — como Salomé e Pablito — não tiveram a oportunidade de comemorar. 

Fizemos por vocês e por eles.

Em um clube gigante como o Cruzeiro, o torcedor desempenha um papel muito mais importante do que as pessoas imaginam.

Paulo Pezzolano

Mesmo com a sensação de dever cumprido, carrego comigo a ideia de que os dias de glória ainda estão por vir. Nós merecemos mais. O Cruzeiro merece mais. Vocês merecem mais, muito mais.

A nós, cabe lutar a cada dia para manter a dignidade que recuperamos desde aquele primeiro jogo da temporada e o respeito que conquistamos com a raça de um time acostumado a guerrear.

Quando eu digo time, eu quero dizer TODO MUNDO. Diretoria, funcionários, comissão técnica, jogadores e torcida. Conseguimos trabalhar em equipe dentro e fora do campo. Todos remando pro mesmo lado. Por isso, não tenho palavras para expressar minha gratidão a vocês e a cada um que trabalha incansavelmente aqui dentro da Toca para tornar o Cruzeiro ainda maior.

Torcida Cruzeiro acesso Serie A
Staff Images/Divulgação/Cruzeiro

Voltar a competir na primeira divisão será um tremendo desafio. O processo de reconstrução do clube está apenas começando. Porém, assim como no início deste ano, quando decidi aceitar a proposta do Cruzeiro, eu tenho uma certeza. 

Podemos ter menos recursos financeiros, menos investimento e menos qualidade que outros times, mas eu posso assegurar que sempre compensaremos com mais vontade e comprometimento com a causa, pois a marca de jogar com raça, representando a torcida em campo, ficará para sempre. E que você, torcedor cruzeirense, independentemente dos resultados, continuará se orgulhando desta equipe e dos jogadores que defendem esta camisa.

Seguirá cantando nas vitórias e nas derrotas, apoiando como sempre. Pra ver um Cruzeiro cada vez mais forte, nos braços de seu povo.

Pra ser campeão de novo.

autografo Paulo Pezzolano

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