Uma Vez Flamengo

Pedro Martins/The Players' Tribune

Eu estou com 34 anos. Três mais quatro dá sete e vão dizer que sete, também o número da minha camisa, é conta de mentiroso. 

Não é. 

O que eu tenho pra contar é a pura verdade, e isso pode surpreender quem olha a lista de clubes onde eu joguei, os gols que eu fiz, os troféus que eu levantei. A verdade é que, apesar de toda a quilometragem pelos campos do mundo ter me dado casca e serenidade, a verdade é que… 

Caramba… 

A verdade é que eu sinto medo. 

Acho bom que seja assim. 

Não é um medo antigo, como aquele que eu sentia quando era moleque, de chutar o meio-fio descalço, arrancar a tampa do dedão e não poder enfrentar o time da rua de baixo valendo uma tubaína. Ou o medo de pegar no sono e cair da garupa da moto do meu pai em plena Via Dutra quando ele vinha me buscar tarde da noite, no fim do treino na Portuguesa, pra gente voltar pra casa em Santa Isabel, 65 quilômetros distante. 

Nesses medos eu podia dar um jeito. No dedão em carne viva, vai vendo, eu tacava pó de café (não cometam essa burrada, é errado, perigoso!), a ferida fechava numa casca grossa e eu estava pronto pra jogar de novo. Na moto, pra evitar uma tragédia, meu pai me amarrava nele com uma corda, bem amarrado, e eu seguia a viagem todinha dormindo, porque àquela hora, depois de colégio, judô, futsal e futebol de campo, a minha bateria arriava. Não era o modo ideal de fazer as coisas. Era o que a gente podia fazer.

Mas esse medo que eu sinto hoje é diferente. Ele me pegou depois de velho, conforme fui ganhando experiência — o que parece ser uma contradição. 

Talvez seja. 

O fato é que ele está aí: eu tenho um medo danado de decepcionar as pessoas. Só que isso não me paralisa. Pelo contrário, é um troço que me deixa esperto, me faz acordar toda manhã e pensar assim: Bom, o que eu vou fazer hoje pra me livrar desse medo? 

Quer outra verdade? Eu só tenho uma resposta pra essa pergunta. Só existe uma coisa que eu posso fazer pra me livrar desse medo. 

É vencer. 

Isso mesmo. Pra mim, o oposto do medo não é a coragem, é a vitória.

Everton Ribeiro filhos Flamengo
Cortesia de Everton Ribeiro

Vencer acalma o meu espírito, manda embora o temor que eu sinto de não fazer direito o que eu sei fazer dentro de um campo de futebol e decepcionar as pessoas. Então, eu jogo uma água na cara e vamo que vamo: “Bora! Bora, que eu defendo o time do coração de pelo menos 40 milhões de pessoas e não quero decepcionar nenhuma delas”.

Eu assumi esse compromisso comigo e com o Flamengo assim que desembarquei no Rio, em 2017, e vi aquela multidão vestindo vermelho e preto e gritando meu nome no aeroporto.

Por ter jogado contra e ter visto do que eles eram capazes, eu achava que sabia tudo sobre esses malucos. Que nada. Foi só naquele saguão em festa, quando os caras fizeram eu me sentir parte da Nação, eu, um recém-chegado!, foi ali que eu entendi por que todo jogador brasileiro sonha em jogar no Flamengo um dia.

Alguns não vão admitir, tudo bem, mas que sonham, sonham. É mais forte que a gente. Eu, por exemplo, estava sossegado em Dubai. Morava na beira da praia, vinha jogando bem num dos times mais tradicionais de lá, vencendo jogos do campeonato e com um contrato de quatro anos para cumprir. Essa equação, pra mim, era o ideal de tranquilidade. Por que eu mudaria?

Porque era o Flamengo me chamando, pô! Se entrou o Mengão na equação, o resultado vai ser outro, não tem jeito.

Quando os primeiros rumores da negociação apareceram, a galera foi nas minhas redes sociais perguntar se era verdade e pedir pra eu vir. Eu nunca tinha passado por isso, de torcedor me pedir pra jogar no clube dele. A torcida estava muito empolgada. Aí a Marília, minha esposa, postou uma foto de um corvo no céu e o pessoal achou que fosse um urubu, um sinal.

Não era. Mas acabou sendo. Porque, conforme o tempo passava, eu sentia como se fosse um chamado, uma força que até hoje não consigo explicar, mas que estava lá.

Parecia uma onda me puxando e prometendo as conquistas mais grandiosas da minha carreira. Como ignorar isso? Eu simplesmente precisava vir.

A minha história no futebol nunca seria tão bem contada se eu ficasse naquela equação tranquila à beira mar. Mesmo depois de ter sido bicampeão brasileiro com o Cruzeiro, que me deu projeção nacional e me abriu as portas da seleção, o Flamengo era minha chance de um desafio único, de construir mais lembranças boas pras pessoas que eu amo e para a maior torcida do mundo. Até que finalmente eu falei pra Marília: “Amor, está decidido. Eu vou pro Flamengo. Vou pra ser campeão e fazer história”.  

Everton Ribeiro campeao Libertadores Flamengo
Gilvan de Souza/Flamengo

Passados seis anos, o que eu posso dizer é que tem sido muito, mas muito maior do que eu imaginava. Aqui, você vacilou, se distraiu, a emoção e a mística rubro-negra te pegam de jeito. Outro dia, no estacionamento do CT, eu estava de saída e um garotinho veio falar comigo:

— Tio, qual é o seu sonho?

Caraca! Só uma criança pra fazer uma pergunta dessas. Meio desprevenido, eu respondi de bate-pronto, sem pensar muito, de coração aberto:

— Meu sonho é continuar vencendo com o Mengão.

O garotinho me deu um abraço, foi embora sorrindo e, mais tarde, pensando a respeito desse instante tão bonito, eu me senti um pouco aquele menino. Ficou clara a alegria que esse clube traz pra mim e pros meus filhos. Parece resenha, mas quem é pai sabe do que eu tô falando. Os filhos da gente são tudo.

Eu tenho dois moleques. Dois carioquinhas flamenguistas da gema. Totói, mais novo, brincalhão, extrovertido, não pode ver alguém com a camisa do rival na rua que já manda “Aê, nós vamos amassar vocês!”. A pessoa dá risada, brinca com ele, vem conversar, trata a gente com cordialidade. O mais velho, o Guto, nasceu prematuro em 2018 e precisou ficar na UTI neonatal. Todas as noites eu ia dormir no hospital com ele e a Marília. E no meio desse turbilhão, na quarta-feira, tinha jogo contra o Emelec, no Maracanã, valendo classificação pras oitavas da Libertadores. Vocês podem imaginar como estava sendo difícil pra mim.

Mas aí uma coisa maravilhosa aconteceu.

Na quarta à noite eu subi pro campo pensando no Guto e na Marília.

Como será que eles estão?

Eu não devia ficar na maternidade com eles? 

Eu ia me perdendo nessa aflição quando pisei no gramado e um grito absurdo, diferente dos outros que eu já conhecia, começou a vir da arquibancada.

Levei um tempo pra compreender o que a galera dizia. Quando compreendi, quase caí no chão. O Maraca inteiro cantava o nome do meu filho. Dá pra imaginar um negócio desses? P****, velho! Vocês entendem quando eu digo que tenho medo de decepcionar as pessoas, de decepcionar a Nação? E que o único jeito que eu tenho de lidar com isso é vencendo? Então. Naquela noite eu fiz os dois gols do jogo e, embora não fosse ainda a nossa hora na Libertadores, eu soube que algo muito grande estava sendo construído.

Foi ali que eu entendi por que todo jogador brasileiro sonha em jogar no Flamengo um dia.

Everton Ribeiro

É que eu já eu tinha passado por algo semelhante e de alguma maneira aprendi a identificar um momento decisivo quando ele acontece.

Foi na minha estreia oficial como jogador, vamos dizer assim. Eu tinha nove anos. Jogava bola na rua, ou, no máximo, se fosse à vera, num haras onde a gente cortava bambu pra fazer os gols e espantava os cavalos do campo. Um dia, do haras me levaram pra fazer teste no futsal da Portuguesa. Em seguida, me registraram na Federação Paulista e avisaram que eu ia jogar no domingo, bem no dia do meu aniversário. Fiz três gols. O último, de cavadinha sobre o goleiro, enlouqueceu a torcida. Foi a primeira vez que eu vi as pessoas tão empolgadas com algo que eu tinha feito.

Tudo bem que era um grupo pequeno, formado por nossos pais, mães, avós, irmãos e tios. De qualquer forma, eles ficaram alucinados com o meu gol e a emoção que eu senti, de tão viva, quase dava pra pegar com a mão. Fiquei tão contente que deslizei de joelho pra comemorar e me esfolei inteiro no piso duro da quadra. Hahah!

No final daquele ano, recebi o prêmio de revelação do Campeonato Paulista e do Campeonato Metropolitano, as famílias do time fizeram a maior festa pra mim e eu fiquei meio sem jeito: não sabia como retribuir tanto carinho. Mal podia imaginar que carinho maior me esperava no Maracanã e que eu teria uma família bem mais gigante pra agradecer.

Ok, jogar no Flamengo não é uma eterna lua-de-mel. Há momentos pesados de cobrança e pressão e, sinceramente, eu acho que nem dá pra ser diferente. Tudo no Flamengo é intenso, grande, poderoso: a história, as conquistas, os ídolos, a torcida, os clássicos.

Quem joga aqui precisa entender que carrega a esperança, o sonho, a felicidade de milhões de pessoas. Tem pai de família que economiza no supermercado pra ver o Flamengo no Maracanã pelo menos uma vez na vida. Quem não entende isso não entende o Flamengo, não entende o futebol, não entende nada. 

Flamengo campeao Libertadores 2022 Guayaquil
Gilvan de Souza/Flamengo

Quando eu jogava na Lusa, a minha avó fazia cocada na véspera das partidas e vendia no ginásio pra inteirar a grana da gasolina do carro que levava a família inteira pra torcer por mim.

Muito tempo depois, em Dubai, quando eu cheguei, comecei mal porque estava sem treinar fazia um mês e meio. Os caras também me deixaram duas semanas parado num hotel até que o contrato ficasse pronto.

Sem pré-temporada, fui mal nos primeiros jogos e eles me mandaram pro sub-21. Eu era jogador de seleção, campeão brasileiro, Bola de Prata e tudo o mais. Fui jogar no sub-21 com estádio praticamente vazio. Era um silêncio tão triste que do campo eu ouvia a Marília chorando na arquibancada.

Então, eu estou contando essas coisas pra deixar claro que representar bem essas pessoas, ou, como eu digo, tentar não decepcioná-las, é o mínimo que dá pra fazer. No fundo, a gente joga bola por isso. Podem achar que é grana e adrenalina. Também, mas não é o que vem primeiro. A gente joga pra fazer feliz quem ama a gente.

O futebol é um gesto de amor. Quem já vestiu esse manto sagrado sabe do que eu estou falando.

Claro que as coisas não estão totalmente sob o nosso controle. Futebol é assim. Às vezes, por um detalhe, azar, sorte, um vacilo na marcação, um problema particular de um jogador naquele dia, um erro do treinador, uma lesão, ou simplesmente porque o adversário jogou melhor, tudo vai por água abaixo: a esperança, o sonho e a felicidade de milhões se tornam frustração, raiva e tristeza. É pesado, muito pesado, mas não tem como a cobrança ser leve num clube com a grandeza do Flamengo, que tem uma das poucas torcidas do mundo capaz de virar um jogo. 

Não, não estou exagerando. 

Eu vi acontecer mais de uma vez. 

Libertadores de 2019, por exemplo. Oitavas de final de novo, Emelec de novo. Na ida, fomos derrotados em Guayaquil por 2 a 0. Era o começo do Jorge Jesus e a gente tinha acabado de perder a Copa do Brasil. Por isso, no dia seguinte, meu pensamento era mais ou menos assim: “A Nação vai comer o nosso fígado! O trabalho do Mister mal começou e já vai por água abaixo”. 

Mas não. A torcida botou a gente pra cima: “Estamos com vocês, confiamos em vocês e nós vamos vencer. Façam dentro do campo o que vocês sabem fazer e o resto deixa com a gente”.

Arrepia só de lembrar… 

Resultado: o time entrou com a confiança no talo. Na hora ninguém fala, pra não dar zica, mas cada um ali sabia que a gente ia ganhar. Metemos 2 a 0 no tempo normal e nos classificamos nos pênaltis. Foi uma loucura. Eu nunca vi nada parecido num estádio de futebol. Foi ali, naquele fim de jogo, com a Nação numa espécie de transe, de apoteose infinita, a cantoria das arquibancadas funcionando como motor, que nós arrancamos pra nossa jornada de conquistas do Mengão.

Everton Ribeiro Flamengo Players Tribune
Pedro Martins/The Players' Tribune

Houve altos e baixos dali em diante. Na minha opinião, mais altos do que baixos, porque a gente continua disputando títulos.

Título nunca é demais. Quanto mais a gente tem, mais a gente quer… O oposto do medo, lembra? Mas esta temporada, definitivamente, não foi do jeito que planejamos. Precisamos reconhecer isso. Assumo a minha parcela de responsabilidade e compartilho da frustração de todo o grupo por ter decepcionado nossa torcida. 

Por tudo que vencemos, o torcedor esperava mais de nós. Afinal, jogar no Flamengo exige um compromisso permanente com a vitória, o que me faz recordar que um ano atrás, quando ganhamos a segunda Libertadores da nossa geração lá em Guayaquil, tínhamos certeza de que ainda havia muito mais para conquistar. E eu sigo acreditando nisso.

Agora, títulos outros clubes também ganham. O que é único do Flamengo, patrimônio, é o inexplicável de ser Flamengo.

Sei que é grandioso e histórico o que eu vivo aqui, mas tenho dificuldade de explicar. Aí acabo simplificando. Se aquele garotinho voltar no estacionamento do CT e me perguntar o que é ser Flamengo, eu vou responder que é como tomar um picolé com os filhos num fim de tarde: simples, terno, memorável e poderoso. 

Ser Flamengo é como a vida. 

Uma vez e para sempre.

Autografo Everton Ribeiro

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