Minha Segunda Paixão

Gazeta Press

Oi, dona Evânia.

Se estiver lendo esta carta, isso quer dizer que nós duas conseguimos. 

Nós vencemos, mãe!

O quê? Vai me dizer que você não tinha uma pontinha de dúvida? 

Tô brincando, claro. 

Desde o começo, você entendeu como o skate se tornou parte de quem eu sou hoje, do que me define como pessoa e de como o esporte me levou para alguns dos lugares mais incríveis deste mundo.

Sabe, mãe, quem me vê assim com o skate, tão leve, mal pode imaginar que lá no início era mais uma brincadeira, uma coisa que eu fazia para me divertir. Já de criança eu não conseguia ficar parada e queria estar perto das pessoas, de preferência em movimento. Não importava se fossem minhas amigas ou amigos da minha irmã. E podia ser até mesmo futebol.

Sim, futebol, mãe.

Ah, eu sei que você não gosta nem de lembrar da fase em que eu ficava jogando bola por aí. Nessa época, dona Evânia tinha medo de que eu me machucasse. Não entendia muito bem… Eu achava, sei lá, que minha mãe não queria que eu me divertisse. 

Mas você também aprendeu já naquele momento que a minha vida estaria ligada ao esporte — e que o futebol foi a minha primeira paixão, e só quem viveu algo assim sabe como é difícil desapegar.

Não, eu não pararia por aí, só porque não queriam que eu não jogasse futebol. 



Acho engraçado porque talvez você não se lembre o quanto pegava no meu pé por causa do futebol. Ainda mais porque o motivo dessa minha paixão estava em casa, justamente ao seu lado: sim, foi meu pai que desde muito cedo me levava para assistir às partidas e jogava bola comigo. 

Pensando agora, é uma coisa tão simples, não? Incentivar uma garota a praticar esportes… E hoje, mãe, eu sei o quanto isso fez uma diferença enorme na minha história. Orra!, eu só queria saber de jogar bola o tempo todo, não tinha cabeça pra mais nada.

(Quer dizer, tinha só pra torcer pelo São Paulo… Ôh ôh ôh ôh ôôôh, tri-co-loooor!! Hahaha)

Pamela Rosa infancia skate
Cortesia de Pâmela Rosa

E pra falar a verdade eu nem ligava pro que as pessoas iam falar, que eu não podia jogar futebol, que era coisa de menino. Comigo não tinha tempo ruim. Era futebol o tempo inteiro, todos os dias. E mesmo os moleques que tomavam dribles meus não se doíam tanto assim — talvez um pouco, vai, mas é porque quando a gente está numa disputa não quer perder. 

O que eu quero te dizer, mãe, é que a única pessoa que não estava satisfeita era justamente... você, dona Evânia.

Como eu disse, demorei um pouco pra entender que esse medo de que eu me machucasse tinha a ver com proteção. E acho que você mal poderia imaginar que, mais tarde, essa minha paixão pelo esporte se transformaria em amor pelo skate, que também oferece riscos para quem pratica. Mas o que eu gostaria que você entendesse na época é que o esporte me pegou porque me mostrou o valor da perseverança, de fazer uma coisa até alcançar objetivos e, mais importante, de não desistir nunca.

Mais do que ninguém, mãe, você sabe que eu gosto de ganhar desde que me entendo por gente. E acho que o futebol ajudou a cultivar essa semente — que, pra minha sorte, deu frutos no skate.

E é curioso como o skate chegou na minha vida por acaso. Um amigo da minha irmã foi fazer um trabalho de escola lá em casa. Ele largou o skate do lado de fora. Eu fiquei encantada e pedi pra andar, mas ele disse que eu era muito nova e não deixou. 

Hmm, demorô…, eu pensei. 

Enquanto ele estava concentrado fazendo o trabalho, aproveitei a brecha, botei o skate no chão e já saí remando.

Uaaaau! Que daora!!

Meu, nem consigo colocar em palavras a sensação, só sei que, depois disso, eu apenas sonhava com o dia em que teria a chance de andar de novo.

Sim, eu queria ser jogadora de futebol, já tinha recebido até propostas para jogar em times, uma coisa que eu desejava muito, mas, quando eu comecei a andar de skate, a sensação de liberdade... Não tinha igual. Foi mais forte do que eu. 

O skate me escolheu antes que eu pudesse escolher o skate. 

Hoje eu sei que foi um dos muitos momentos mágicos que o skate me proporcionou: encontrar a minha voz. 

Eu sempre fui um pouco fechada, mãe, você sabe, apesar de gostar de estar em família e de sair com meus amigos. Mas o skate me deu a chave para abrir a porta dos meus pensamentos e eu pude mostrar quem eu sou na real.

Por isso, nunca duvidei do que gostaria de fazer. Você vai se lembrar, mãe, que eu tinha oito anos quando comecei. Afinal, nem tem como esquecer, né? Porque, mesmo com seu receio de eu praticar esportes, você e meu pai deixaram de pagar as contas de água e luz naquele mês só para me dar um skate de presente. 

Pamela Rosa skate
Marcello Zambrana/Divulgação

Também não esqueço, viu? Nunca vou esquecer. Até hoje guardo o shape em que aprendi minhas primeiras manobras lá no Poliesportivo do Jardim Cerejeiras, em São José dos Campos.

E poucos anos depois o que era pura diversão virou profissão. Entre 12 e 13 anos, a proporção que o skate tomou na minha vida não tinha comparação com qualquer outra coisa que eu já tivesse feito. Nem mesmo com o futebol.

Foi amor à primeira vista, e os resultados desse match logo apareceram: na primeira competição, fiquei em terceiro lugar. 

O skate me escolheu antes que eu pudesse escolher o skate. 

Pâmela Rosa

Mãe, você me conhece… Eu não andava de skate só para ganhar, mas, quando essas premiações aparecem, é impossível não ficar animada.

Eu me sentia bem.

Cada competição despertava em mim uma vontade de evoluir, de querer fazer mais e melhor. Com isso, minha paixão pelo skate só aumentava. 

Porém, você sabe também, mãe. Isso não quer dizer que não enfrentei algumas barreiras no caminho.



Quando comecei, eu via muitos meninos andando de skate, mas poucas meninas. Nas competições, então, nem se fala. Tanto que quando eu tinha nove anos rolou uma situação diferente. Você se lembra, mãe, daquele torneio em São Sebastião? Só meninos participando e nenhuma menina.

É verdade que eu nunca me intimidei, eu só queria andar de skate, e foi exatamente o que aconteceu naquele dia. Mas já no campeonato seguinte, em vez dos meninos mais velhos apenas, apareceram as meninas. 

Ainda naquele início, você deve se recordar, o skate não tinha a menor visibilidade como esporte de alto rendimento.

Por isso, mãe, se não fosse o apoio da nossa família, eu não teria ido muito longe. E a prova maior disso foi a minha mudança para os EUA. Porque no começo eu podia ficar treinando em São José, mas a real é que no Brasil faltava (e ainda falta) estrutura, não tinha pista direito. Então, o caminho natural foi seguir para a Califórnia. 

Olhando de fora, parece que é viver um sonho: morar na gringa, andando de skate, chegando aonde muitos desejam, mas nem todos conseguem.

Só que essa experiência pode não ser tão glamorosa assim. Eu nunca tinha viajado para tão longe. Mal sabia falar o português direito, quanto mais o inglês kkkk… Mesmo assim, deu tudo tão certo que logo na chegada já ganhei um amigo para o resto da vida, o Kelvin, que abriu a porta da casa dele para que eu pudesse treinar. G, tamo junto sempre, meu irmão!

E claro, né, mãe, só deu certo porque você estava lá comigo. 

Pamela Rosa mae skate Evania
Cortesia de Pâmela Rosa

Falando em viagens, e quando a gente viajou pela primeira vez para o exterior? Sim, na Argentina, para disputar o Campeonato Sul-Americano. Acho que nunca disse isso antes, ou se falei não foi o bastante, mas a sua presença ali me deu segurança, mãe.

Para a minha surpresa até, fui muito bem recebida. Foi a primeira vez que eu vi muitas meninas andando de skate numa competição internacional. 

Sim, mãe, foi incrível. E o mais extraordinário é que fui campeã sul-americana.

Esse título me proporcionou viver uma experiência que não consigo descrever, que é o sabor da vitória. E teve mais: depois do Sul-Americano, consegui realizar um sonho, que foi participar dos X-Games.

A gente não acreditou quando o convite veio, né, mãe? Uma competição tão importante, que eu assistia pela TV, e agora eu estava prestes a andar de skate naquelas pistas.

Nos X-Games, eu percebo como tudo é diferente do que eu tinha visto até ali. Tudo é novidade: as dificuldades, o nível das manobras, a qualidade dos skatistas que competiam comigo. Eu estou entre os melhores do mundo. Aos 13 anos idade, eu vejo um mundo de coisas novas passando pela minha frente. E você, mãe, está do meu lado para não me deixar acordar assustada daquele sonho.

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Nessas horas, é impossível não lembrar do que a gente deixa pra trás para viver essa história. 

Tive de abrir mão das minhas amigas. 

Tive de aguentar a saudade de casa e do Jardim Cerejeiras. 

Tive de curtir a adolescência em outra vibe por causa das viagens e competições. 

Eu sei, mãe, que você sempre me respeitou e por isso nunca quis saber se eu me arrependi em algum momento, ainda que por um instante. Eu preciso que você saiba, mãe, que TUDO valeu a pena — e eu não tenho do que reclamar. 

Faria tudo de novo.

E eu digo isso sem falar das Olimpíadas, uma competição que eu sempre quis participar devido ao meu amor pelos esportes. E você sabia disso, mãe, tanto é que comemorou comigo e com a nossa família quando surgiu a oportunidade de disputar os Jogos de Tóquio.

A expectativa de viver essa nova experiência fez com que os anos de 2018 e 2019 fossem vitoriosos, porque eu me sentia leve. 

De um lado, eu subia ao pódio em todas as competições que participava. De outro, me preparava e me cuidava ao máximo para chegar bem nas Olimpíadas. 

E daí veio a pandemia.

Foi um baque, né, mãe? Abalou o mundo inteiro, como é que não ia mexer com a minha rotina e a de todos os atletas? Ah, sim, teve o lado que eu aproveitei bastante, que era o de estar perto da família outra vez. “Pâmela de volta ao lar”, podia ser o nome desse filme :p

Mas pra falar a verdade eu sentia falta da intensidade das pistas e do clima das competições. 

Sim, sentia falta de viver o skate.

Ainda bem que a minha base esteve comigo o tempo todo e não me deixou sozinha.

Então, quando chegou a minha vez na Olimpíada, a emoção era gigante. De verdade, eu sentia que estava representando não só o Brasil, mas muitos atletas que estavam ali.

Pamela Rosa Brasil skate
Gazeta Press

Disputar uma Olimpíada, mãe, é carregar a esperança da torcida. Isso não me deixava pressionada, mas sim motivada. Eu estava vivendo um sonho que não era só meu, mas também de milhões de brasileiros.

Porém... nem sempre as coisas acontecem do jeito que a gente quer, não é mesmo?

Sim, mãe, você tinha medo de que eu me machucasse. E eu sempre fui destemida, corajosa e encarei qualquer desafio, como se o risco não me afetasse. Mas parece que estava escrito que eu iria me machucar em 2021, na véspera da minha ida para o Japão, quando, enfim, disputaria os Jogos Olímpicos.

Fui muito longe e consegui mais do que podia sonhar quando tudo começou.

Pâmela Rosa

Quase ninguém soube o que aconteceu, inclusive você, mãe, que até ficou chocada quando descobriu — foi mal, não quis te deixar preocupada. Então, vou te contar aqui. 

Dois dias antes do meu embarque, eu senti. Era uma lesão no ligamento que trazia uma dor que não ia embora. Sabe, mãe, eu queria escrever que consegui vencer esse obstáculo; que a dor é passageira, enquanto a glória da vitória dura para sempre. Mas eu não fui capaz. 

Quando cheguei em Tóquio, já sabia, lá no fundo, que não conseguiria dar o meu melhor na competição para a qual me preparei durante vários anos da minha vida. Antes de entrar na pista, eu aceitei que não estaria 100% para o momento que eu mais sonhava.

Pamela Rosa skate Olimpiadas Toquio
Patrick Smith/Getty Images

Ainda assim, eu não desisti. Tentei me recuperar e me concentrei para fazer algumas manobras, mas não deu.

Isso foi bem triste.

Mas eu queria dizer aqui, mãe, que eu também vi muita coisa legal acontecer no Japão.

Pude ver com os meus olhos o skate brasileiro no alto do pódio. Vibrei como se fosse uma vitória minha na hora que aplaudi meu amigo Kelvin, que brilhou e merecidamente ganhou a medalha de prata.

Posso dizer que fui muito longe e consegui mais do que podia sonhar quando tudo começou.

Mais do que as outras pessoas, você sabe, mãe, a competição comigo está no sangue. Logo depois dos jogos de Tóquio, eu não admiti ficar parada. 

Primeiro fui para Salt Lake City, ainda sem estar 100%. Por que eu fui? Ah, mãe, se eu ficasse em casa, eu ia pirar! Já não consigo ficar parada normalmente, naquelas condições, então, nem pensar.

Pamela Rosa campea skate SLS
Claudio Vieira/Divulgação

Essa competição me deu confiança para o que estava por vir no fim do ano. Em Jacksonville, consegui alcançar o meu objetivo, que era trazer o segundo título mundial pra casa. Como foi bom ganhar novamente, ainda mais depois de tudo que passei.

Sim, mãe, já estou pensando nas Olimpíadas de Paris, em 2024. Mas sem criar expectativas porque não quero ficar ansiosa. Sou competitiva o bastante pra saber o que tenho de fazer até lá.



Enquanto isso, quero ver surgir toda uma geração de novas skatistas, garotas que já estão sendo impactadas pelas imagens do que o esporte tem a oferecer: o lugar das meninas e das mulheres onde elas quiserem estar.

Numa pista de skate.

Numa quadra de futsal.

Num campo de futebol.

Onde a paixão delas mandar.

Pamela Rosa carta mae The Players Tribune
Cortesia de Pâmela Rosa

A minha me trouxe até aqui. Ela veio depois da bola, do São Paulo, de eu descobrir a minha verdadeira vocação… Mas hoje, para mim, é o skate que vem em primeiro lugar.

Sabe por que nós vencemos, mãe? Outras meninas já estão vindo por aí, tão apaixonadas como eu fiquei ao subir num skate pela primeira vez.

E se elas tiverem a sorte de ter o apoio que eu tive, ninguém vai ser capaz de derrubá-las.

Autografo Pamela Rosa

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