Para a minha família

Ramon Lopez/The Players' Tribune

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Para mim, um dia sem futebol é um dia terrível.

Tem sido assim desde que aprendi a jogar bola.

Desde que rompi meu LCA (ligamento cruzado anterior), já tive 300 dias ruins seguidos. Quando o médico me disse que eu ficaria fora por 12 meses, desmoronei mentalmente. Graças a Deus, a pessoa que realmente me salvou durante esse tempo foram minha esposa, minha filha Helena e a espera pelo meu segundo filho, Daniel. Acho que, sem ela, eu teria enlouquecido. Nos primeiros meses de recuperação, eu praticamente vivia no sofá de casa. Eu descia de manhã me apoiando nas minhas muletas, e aquele era o meu mundo. Tratamento. Café da manhã. Tratamento. Almoço. Tratamento. Cochilo. Tratamento.

Minha filha tem apenas 3 anos, então ela vinha pegar seus brinquedos e os trazia para eu brincar com ela.

Eu dizia: “Não, me desculpe, meu amor. Eu tenho que ficar deitado aqui.”

Estávamos tentando ensiná-la o conceito de compartilhar naquela época, e um dia ela pegou minha muleta e começou a andar com ela, me imitando.

“Eu também estou dodói.”

“Você tem que me devolver isso, minha vida. Você vai se machucar.”

“Papai, o que nós conversamos? Você tem que compartilhar.”

Eu assistia aos jogos do Arsenal na TV, e para mim essa era a pior sensação do mundo. Todo jogador de futebol conhece essa ansiedade. Eu estava totalmente indefeso, como um torcedor. Toda vez que perdíamos uma chance de gol, eu jogava as almofadas no chão. Tudo o que você quer é ajudar, e não pode. Helena via que eu estava chateado, mas ela ainda não entende nada sobre futebol.

Ela começava a girar pela sala na frente da TV e anunciava para mim e para minha esposa: “Silêncio, por favor. Eu vou cantar.”

“Filha, o papai está trabalhando.”

“Eu vou cantar e dançar agora!!!!!! Silêncio, por favor!!!!!”

“Três palavrinhas só, 

eu aprendi de cor. 

Deus é amor. 

Lalalalala”.

Saka está com a bola na ponta e Helena está girando, bloqueando minha visão!

“Você não está assistindo!!!!”

Hahahah. Eu estava enlouquecendo.

Aí, dois minutos depois, ela ficava entediada e ia para o outro cômodo pegar alguma coisa.

“Você não quer assistir, filha? É o Arsenal.”

“Não, eu quero fazer Davi e Golias.”

Helena assiste a esses desenhos animados sobre a Bíblia no YouTube, e adora a história de Davi e Golias. Ela vai e pega uma meia enrolada no quarto e diz: “Mamãe, você é o Golias hoje. O papai não consegue ficar de pé.”

PPPEEEWWWWWW. Ela te acerta na cabeça com a meia, e você tem que cair. Então, ela fica de pé sobre o seu corpo, cantando vitória.

É muito fofo nas primeiras 200 vezes!

Cortesia da Família Jesus

Às vezes, conseguíamos fazer com que ela se sentasse um pouco no sofá, e ela assistia ao jogo comigo tempo suficiente para eu explicar: “Nós somos os de vermelho, lembra?”

Então ela via alguém parecido comigo, apontava para a TV e dizia: “Olha, o papai está jogando!!”

E eu tinha que dizer: “Não, meu amor, eu estou bem aqui. Aquele é amigo do papai. Eu estou machucado, lembra? Você tem que esperar mais um pouco e aí você vai poder me ver jogar.”

Ela apontava: “Papai.”

Hahahah :-)

Eu me lembro que o Jorginho foi uma das primeiras pessoas a me visitar, depois que o médico me disse o quão ruim estava. Todos que vinham à nossa casa, Helena recebia os meus amigos na porta e depois dizia: "Venha ver o dodói do meu papai!"

Ela pegava na mão deles e os levava até o "paciente". Então ela dava um beijinho no meu joelho.

"Está melhor agora?"

Ela não compreende, mas, ao mesmo tempo, capta muita coisa no ar, sabe? Toda vez que preciso de um pouco de força, eu penso nessa lembrança e isso enche os meus olhos de lágrimas. Ela me ajudou a parar de ficar obcecado por futebol e pela dor, e a lembrar da vida.

Eu também tenho que agradecer a Deus pela minha esposa Raiane, porque nos dias mais difíceis ela provou ser uma verdadeira companheira para todas as horas. Quando eu não conseguia nem me levantar do sofá, Raiane corria pela casa para buscar gelo para o meu joelho. Nos meus dias mais sombrios, ela foi mãe, enfermeira e minha companheira assistindo futebol.

Acho que, como jogadores de futebol, muitas vezes podemos negligenciar a vida real.

Eu estava definitivamente negligenciando a minha. Antes da minha lesão, eu não era o marido ou o pai que eu precisava ser. Essa é a verdade.

Desde que eu era criança, crescendo no Jardim Peri, em São Paulo, sempre acreditei que Deus tinha um plano para mim. Sempre haverá respostas para tudo, as quais só saberemos mais tarde. Acho que isso também aconteceu quando me contundi. Na época, minha esposa estava grávida do nosso filho e estávamos muito ansiosos por causa disso. Eu nunca falei a respeito antes, mas o nascimento de Helena foi muito traumático para nós. Na época, eu estava vivendo a vida de um jogador de futebol e simplesmente não estava muito presente para minha esposa. Ela teve que dar à luz aqui na Inglaterra, longe de sua família, e sem falar o idioma. Durante o parto, houve uma complicação grave e ela perdeu muito sangue. Quando você enfrenta um problema médico como esse, os termos que as enfermeiras usam são assustadores, mesmo que seja na sua língua materna. É tudo muito rápido. Você se sente indefeso. Mas quando você está apenas aprendendo o idioma, e algo assim acontece, é ainda mais aterrorizante.

Graças a Deus, minha esposa conseguiu dar à luz Helena, e a equipe médica estancou o sangramento, mas ficamos traumatizados com a experiência. Segurei minha filha por apenas um dia. E logo na manhã seguinte, já estava arrumando minhas malas novamente. Eu tinha que pegar um voo para jogar pela Seleção Brasileira. O futebol nunca para.

 Para a minha família
Kin Cheung/AP Images

Como cresci sem pai, senti muita culpa. Jamais vou me esquecer de, aos 8 ou 9 anos, jogando futebol com meus amigos, ver os pais deles vindo se juntar a nós, e eu me perguntava: “Puxa, onde está o meu pai?”

Às vezes, passava o dia inteiro sem ver minha mãe, porque ela já tinha saído quando eu acordava para ir para a escola e, quando eu voltava para a cama, ela ainda estava fora, fazendo faxina em casa de família.

Quando comecei a jogar pelo Palmeiras, toda vez que marcava um gol, eu olhava para a torcida e não tinha ninguém lá. Um dia, eu marquei, e minha mãe me surpreendeu vindo ao jogo. Lembro que a vi sorrindo e foi como uma revelação. Foi um dos maiores momentos da minha vida...

Eu sempre prometi a mim mesmo: Quando eu me tornar pai, estarei sempre presente para os meus filhos.

Quando Helena nasceu, eu não estava cumprindo essa promessa. Eu estava lá, mas estava sempre distraído, sabe? Sempre pegando um voo.

Então, quando me lesionei, isso veio como uma bênção. O Arsenal teve o cuidado de permitir que eu viajasse com minha esposa enquanto estava me recuperando para que ela pudesse dar à luz em casa, no Brasil. Desta vez, foi totalmente diferente. Por semanas, Helena acariciava a barriga da mãe, dizendo: “Você vai sair logo?”

O parto foi totalmente tranquilo. Nosso filho Daniel veio ao mundo saudável e sorrindo. Quando a babá trouxe Helena para o hospital, ela correu para o quarto e disse: “Ah!!! Meu irmão, Daniel!! Ele é tão pequeno!! Oi, Danielzinho!!”

Sim, meu sonho na minha vida profissional sempre foi ser jogador de futebol. Mas meu sonho na minha vida pessoal era ser pai.

Como jogador de futebol, você só é abençoado uma vez.

Mas como pai, eu fui abençoado duas vezes.

Este tem sido o ano mais surreal da minha vida. Justo quando eu sentia que estava voltando a jogar o meu melhor futebol, senti um estalo contra o Manchester United, e meu mundo desabou. Mas eu acredito que Deus não me daria um desafio do qual eu não pudesse voltar mais forte. Ele me deu muitas bênçãos para me ajudar a superar isso: minha esposa, meus filhos, meus companheiros de equipe e a equipe médica do Arsenal, que foram incríveis.

Gabriel Jesus
Jacques Feeney/Offside/GettyImages

As pessoas me perguntam: “Por que você simplesmente não vai embora? Por que não vai para a Arábia Saudita? Ou de volta para casa, no Brasil?”

Um dia, eu gostaria, sim, de voltar a jogar pelo Palmeiras, mas não hoje.

Eu sinto que tenho assuntos inacabados no Arsenal. Não quero sair. Quando vim para cá me juntar ao Mikel Arteta, meu propósito não era apenas marcar gols. Meu propósito era ganhar títulos, como fizemos no Manchester City. Se você olhar para a minha carreira, acho que ela é interessante. Quando cheguei à Premier League, acredito que a reação da maioria das pessoas foi: “Ah? Quem é esse garoto?” Eles me viam como um artilheiro nato. Mas não é assim que eu me vejo. Minha característica mais forte é que farei o que for preciso para ajudar o time a ganhar títulos. No Manchester City, desempenhei muitos papéis. Às vezes, eu dividia a responsabilidade de marcar gols com Agüero. Outras vezes, joguei na ponta. Outras vezes, usei meu físico para ligar as jogadas. Eu acho que é por isso que Mikel me trouxe para cá, anos atrás. Eu nem sempre preciso ser o camisa 9 para ajudar a equipe.

Eu não estou aqui por causa do clima, hein?

Estou aqui para fazer história.

E eu sei que vocês não acompanham o futebol brasileiro aqui na Inglaterra, mas deixem-me dar uma breve lição de história! Quando, aos 18 anos, cheguei ao time principal do Palmeiras, o clube não ganhava o Brasileirão havia 22 anos.

Nós acordamos o “gigante adormecido” e conquistamos o título, e agora eles não conseguem parar de vencer. Eu volto lá às vezes e ando pelos corredores do clube, e tudo o que se vê são troféus, troféus, troféus.

Fotos de antigas lendas e fotos das “novas lendas.”

Acho que pode ser o mesmo no Arsenal. Podemos acordar o gigante adormecido. Podemos criar uma nova história. Eu trabalho com Mikel desde que cheguei na Inglaterra, e sei o que ele exige de mim. É algo no mesmo nível de comprometimento que ele exige do chef de cozinha. Tudo, todos os dias.

Com este treinador e este elenco, podemos conseguir. Confio no meu futebol. Confio nos planos de Deus. E sei que, se tiver uma chance, posso ajudar a equipe com o campeonato.

E ei, Helena… Agora você pode finalmente me ver jogar de verdade.

Pare de dançar só por um instante!! Guarde seus brinquedos!!

Aquele não é um dos amigos do papai na TV, filha! Sou eu mesmo. Finalmente.

Amo vocês,

Gabriel

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