A Profecia

André Mourão/The Players' Tribune
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Dia 21 de junho de 1970, um domingo. Era a final da Copa do Mundo no México. Bem de manhãzinha meu pai juntou a parentada de Nova Iguaçu e fomos todos pra Petrópolis. Um tio mais bem de vida morava lá e nos convidou pra ver Brasil x Itália.

Na quarta-feira daquela semana tinha sido meu aniversário de três anos, então eu acho que lembro mais das sensações do que dos fatos. Primeiro estranhei o frio que fazia conforme subíamos a serra, de ônibus. Na Baixada Fluminense não tinha aquilo. Lá era sempre calor. Depois, achei uma beleza a cor da casa do meu tio: inteirinha cor-de-rosa, bem clarinha e brilhante. Quando nós entramos ela já estava cheia de gente. A galera comendo, bebendo, falando alto, só alegria. Fiquei meio confuso. Não parecia ter diferença entre o que acontecia na casa e dentro da TV. Pra mim era tudo Estádio Azteca.

Aí vem o Pelé e pimba!

Brasil 1 a 0.

A casa explodiu. E a explosão continuou, nem sequer diminuiu quando o Bonisegna empatou. Um clima de euforia permanente. Eu, baixinho, via tudo de baixo pra cima. O Gérson fez 2 a 1 e um monte de copos de plástico e pratinhos de papelão cruzaram a sala sobre a minha cabeça. No gol do Jairzinho já não dava mais pra ouvir a TV. Uma quizumba maravilhosa.

Dá pra imaginar um negócio desses? Estrear no profissional do Flamengo substituindo um ídolo e dando passe pro gol de outro?! Não, não dá pra imaginar.

Zinho

Mas aí tudo parou. Um silêncio repentino baixou quando o Pelé, na frente da área, se virou e deslizou a bola pra direita. Ali, naqueles segundos de tempo suspenso, a minha vida tomou um rumo que só a minha mãe, Dona Litinha, foi capaz de imaginar. O Carlos Alberto apareceu voando, chutou, a rede estufou, Brasil 4 a 1, e todo mundo saiu pra rua. Meus primos, todos mais velhos, foram se afastando da casa, se juntando aos vizinhos e eu fui atrás deles, me misturando na multidão. Me misturando e… me perdendo.

Algum tempo depois, quando os primos voltaram, a casa ainda estava em festa e quase ninguém prestou atenção que faltava um. Só a minha mãe. A Dona Litinha foi logo perguntando:

— Ô, molecada, cadê o Zinho?

— Não vi não, tia.

— Mas, criatura, ele saiu atrás de vocês depois do gol do Carlos Alberto! Não me digam que perderam o menino na rua?!

O silêncio voltou, agora pesado e desesperado. Sim, eu estava perdido em algum lugar de Petrópolis durante a celebração do Tri. Um moleque de três anos de idade calçando só um pé de sapato, o direito, porque o esquerdo, bem o esquerdo!, tinha ficado pra trás na hora da bagunça. Ao se dar conta de que eu estava desaparecido, a minha mãe apertou esse pé de sapato esquerdo no peito e começou a orar:

— Deus, por favor, traz o meu Zinho de volta. Traz de volta porque ele vai jogar na Seleção e ser campeão do mundo.

Não foi uma promessa, porque não teve um SE. Tipo: Deus, SE o Senhor trouxer meu filho de volta eu prometo descer a pé pro Rio. Não foi isso.

Tinha mais jeito de profecia. Uma tremenda confiança da minha mãe de que as coisas iam acontecer daquele jeito. Ela simplesmente sabia. E Deus ouviu a prece de Dona Litinha.

Logo um casal me encontrou na rua, não muito longe. Eu balbuciei que morava na casa rosa e eles me levaram de volta. É uma história meio fantástica, tem gente que não acredita, mas aconteceu. O futebol tem dessas coisas, quem pode explicar? Só sei que de uma forma ou outra aquele estalo de confiança da minha mãe me acompanharia por toda a minha carreira. Vou contar pra vocês…

Os anos foram passando e, como qualquer moleque de Nova Iguaçu, da Baixada, do mundo inteiro naquela época pré-celular, eu gostava de jogar bola. No final da nossa rua tinha um campo e todas as tardes depois do colégio a gente se reunia lá. Um dia, o carteiro do bairro, o Paulo César Fala Fino, passou de bicicleta e parou pra assistir. Quando acabou a pelada, ele se aproximou e perguntou se a gente queria jogar no time dele. O Fala Fino era funcionário dos Correios, mas nas horas vagas treinava a equipe de uma ação social, o ICBEU, Instituto Cultural Brasil-Estados Unidos. Meus pais autorizaram. Eu tinha nove ou dez anos e guardo até hoje a minha primeira camisa desse time, que agora vou passar pro meu netinho. 

Zinho Players Tribune
André Mourão/The Players' Tribune

Bom, aí chegou um dia que o Fala Fino armou um amistoso nosso contra o mirim do Flamengo, no campo do 21º Quartel do Exército, em São Cristóvão. Nós fomos de Kombi, uns vinte moleques amontoados. Chegamos primeiro e ficamos esperando. Eu lembro como se fosse hoje, nunca me esqueci da cena: eu sentadinho ali num canto, estaciona um ônibus enorme e os garotos do Flamengo começam a descer, um por um, já uniformizados, o pano vermelho e preto das camisas deles brilhando sob o sol.

P****, aquilo me deu um negócio… Uma empolgação… Entrei em campo com uma baita confiança. Eu ia jogar contra o Flamengo! Joguei leve, feliz, seguro, como se eu soubesse que não poderia ser de outro jeito.

Não dava pra saber direito ainda, mas eu começava a cumprir algo que as forças do céu tinham determinado pra mim e sussurrado no ouvido da minha mãe. Eu realmente arrebentei no jogo. Fiz um gol, dei passe pros outros e nós vencemos por 3 a 0. Imagina só! No fim da partida, o professor Carlinhos, que era o treinador do mirim do Flamengo, chamou cinco ou seis do nosso time pra fazer um teste na Gávea. E assim, com 11 anos, começava a minha história no Mengão.

Eu me divertia muito jogando bola. Muito mesmo. Hoje eu penso bastante nisso. Será que a profecia da minha mãe, guardada em algum cantinho do meu inconsciente, me liberava pra jogar leve, confiante, só me divertindo? Vai saber, né?

Agora, a gente não é máquina e sente a pressão, sim. Teve uma vez na minha carreira de 29 títulos, 5 Brasileiros, 1 Copa do Mundo, 2 Copas do Brasil, 1 Libertadores e 4 Bolas de Prata que essa confiança quis escapulir. Mas foi rapidinho.

Nas quartas de final da Libertadores de 1999, Palmeiras x Corinthians. Disputa de pênaltis, 3 a 2 pra nós. Se eu fizesse, acabava. Malandro, eu não sei como consegui caminhar do centro do campo até a grande área. As minhas pernas pesavam duzentos quilos cada uma. O meu corpo inteiro tremia. Ali eu senti o peso. Chutei no meio do gol, o goleiro pulou pro canto e o Palmeiras passou pra semifinal contra o River Plate. Ufa! Foi um alívio.

De qualquer forma, eu não fugi da raia, né? Não deixei de bater o pênalti. Isso seria impensável pra mim. Depois, na final daquela Libertadores contra o Deportivo Cali, eu até desperdicei a minha cobrança. Mas a noção de responsa, essa nunca me escapuliu. Ela tinha sido forjada na base do Flamengo, com muita dedicação e disciplina.

Quando eu comecei a treinar na Gávea, a minha vida mudou radicalmente. O treino começava às sete da manhã, eu tinha que acordar às quatro. Eram dois ônibus de Nova Iguaçu até lá. Meu pai, motorista de caminhão, não podia me levar. Minha mãe, que cuidava da casa, também não. Eu tinha que ir sozinho.

No começo o Fala Fino ia comigo. Depois, dois amigos mais velhos. Meu pai pagava as passagens e sanduíches pra eles me acompanharem, porque eu tinha só 11 anos e um histórico de me perder por aí. Os dias eram cansativos, mas eu adorava. Na volta pra casa, eu ia lá pro fundo do ônibus e dormia sobre o tampo do motor. No único dia que achei um assento livre, cochilei na barriga de uma passageira grávida, dá pra acreditar? Acordei com ela berrando no meu ouvido:

— Que é isso, garoto?! Tá pensando o quê? Sai pra lá, meu filho!

Eu ria de tudo. Era um barato, apesar de todo fim de ano rolar uma tensãozinha quando decidiam quem ia subir de categoria e quem ia ser dispensado. Eu nunca tive medo de ser dispensado. Também não ficava pensando aonde aquilo tudo ia me levar. Eu via meus ídolos ali de pertinho, o Zico, o Adílio, o Andrade, o Júnior, estava jogando, me divertindo e isso era bom pra caramba. Pra mim, naquele momento, a profecia da Dona Litinha era só uma lembrança boa e distante.

Mas um dia, em 1982, ela voltou pra dar um oi. Pra dizer, tipo, “Ei, Zinho, lembra de mim?” É que uma reportagem na revista Placar sobre “o novo Zico” apontava garotos da base com potencial de ser o herdeiro do Galinho. Citavam vários. Mas na fotografia da capa, junto com o Zico, tinha quatro meninos: o Gilmar Popoca do sub-20, o Wallace do sub-13, o China do sub-17 e eu do sub-15. 

Quando eu peguei a revista achei que a minha camisa vermelha e preta do Flamengo cintilava como a dos meninos descendo do ônibus naquele amistoso armado pelo Fala Fino. Então a ficha caiu: o troço era a sério. Havia uma grande possibilidade de que minha mãe estivesse certa.

Quatro anos depois, aos 18, em 1986, eu estreei no time profissional. Foi num jogo do Campeonato Carioca contra o Mesquita, em Caio Martins. Comecei no banco, mas logo no início o Adílio se machucou e eu entrei no lugar dele. Nós ganhamos por 3 a 1. O último gol saiu de um escanteio que eu bati e o Andrade marcou de cabeça.

Dá pra imaginar um negócio desses? Estrear no profissional do Flamengo substituindo um ídolo e dando passe pro gol de outro?! Não, não dá pra imaginar. Tem que estar lá dentro pra sentir. Eu entrava nuns jogos, começava outros como titular, mas ainda era amador e ia e voltava de Nova Iguaçu de ônibus. Se dormisse na barriga de uma grávida de novo, ia tomar esporro igual, porque, mesmo sendo campeão carioca, ninguém me conhecia. 

Aí vira pra 1987: eu assino meu primeiro contrato. Compro um Chevetinho 77 e, juntando o dinheiro dos bichos que eu ganhava e guardava, dou entrada pra comprar a casa de Nova Iguaçu em que a gente morava de aluguel. Foi uma mudança gigante pra minha família. Pra mim, um desafio imenso.

Zinho Flamengo Corinthians 1987
Acervo/Gazeta Press

E se eu for mal, os caras me emprestarem prum time pequeno, eu sumir e não dar conta das prestações da casa?

Seria uma preocupação legítima pra um garoto de 19 anos que tinha acabado de se tornar jogador profissional de um dos maiores times do mundo. Mas não teve isso. E sabe por quê? Porque a base do Flamengo é uma coisa especial, única no Brasil.

Quando um menino que começou lá no mirim chega no time principal, ele é acolhido com carinho e respeito pelos profissionais, porque eles percorreram a mesma estrada. Os caras fazem questão de deixar a gente à vontade, confiante e com os pés no chão. No meu caso, além de tudo, era um privilégio, né? Eu fui recebido por todos os meus ídolos. 

Lembro do segundo jogo da final da Copa União daquele ano, contra o Internacional. A gente na boca do túnel do Maracanã, pronto pra subir pro campo, o Edinho e o Leandro fazem assim com a mão pra mim e pro Aílton, que também tinha se profissionalizado aquele ano. O Edinho dá a resenha:

— Seguinte, vocês dois. O craque do nosso time é o Zico, eu nem preciso lembrar disso. O artilheiro é o Bebeto. O driblador é o Renato Gaúcho. Eu, o Leandro, o Jorginho e o Andrade vamos estar atrás dando suporte. Mas o motor são vocês dois. Vocês é que vão correr pra todo mundo e dar o equilíbrio que a gente precisa. Se vocês estão aqui hoje, se fizeram o percurso todo pra estar aqui neste momento, é porque merecem e a gente conta com vocês. Entra confiante, que tudo vai dar certo. 

Malandro, eu me arrepio só de contar. Naquele dia, o Leandro, sempre mais caladão, passa a régua na conversa:

— E aproveitem cada minuto do Maracanã com quase 100 mil pessoas empurrando o Flamengo numa decisão, porque vocês nunca mais vão se esquecer disso.

Zinho Flamengo jogador
Fernando Pilatos/Gazeta Press

Eu nunca esqueci mesmo. O dia estava lindo, a massa rubro-negra fazia uma festa espetacular que poucas vezes vi igual. Tudo perfeito. O Renato até tirou um urubu do gramado. Ganhamos de 1 a 0 com um gol que nasceu justamente de uma bola que o Aílton tocou pra mim na entrada na área. De primeira eu passei pro Andrade, que enfiou pro Bebeto e ele deu um totozinho por baixo do Taffarel.

O Leandro estava certo sobre a força da torcida do Flamengo no Maracanã em dia de decisão. Foi emocionante demais. Como se não bastasse, eu dei a volta olímpica ao lado do Zico.

Caraca, eu fiquei em estado de graça. Nas fotos daquele dia eu pareço meio atônito. E não era pra menos. Campeão brasileiro jogando ao lado do meu maior ídolo! Eu flutuava. Levantei a taça pensando nas peladas no fim da rua em Nova Iguaçu, no Fala Fino e a bicicleta de carteiro dele, no professor Carlinhos, que me aprovou no teste e agora era meu treinador de novo, nos meus pais, na casa cor de rosa do meu tio em Petrópolis, na Dona Litinha rezando abraçada ao meu sapato esquerdo. Eu me senti um cara abençoado e orgulhoso do meu trabalho.

Mas o melhor ainda estava por vir. Na campanha do título Brasileiro de 1992, o grande protagonista do Flamengo era o Júnior. Já veterano, jogando o fino, ele conduziu a orquestra com aquele talento que a gente conhece. E eu, desculpe a falta de modéstia, fui o primeiro violino dele.

Uma que, de fato, fiz um baita campeonato e ajudei a segurar as pontas no meio de campo. E outra que fui o elo entre o profissional e a molecada que chegava da base. Era a minha vez de receber os garotos, ser o porto seguro deles, transmitir a confiança que cinco anos antes o Edinho e o Leandro tinham me transmitido. Com uma “pequena” diferença: quem estava subindo eram os bagunceiros Paulo Nunes, Marcelinho Carioca, Júnior Baiano e Marquinhos. Jogavam demais, mas davam um trabalho danado.

O título brasileiro de 1992 me deu a real noção da minha trajetória e da minha missão na Terra.

Zinho

Muitas vezes levei os quatro para minha casa em Nova Iguaçu. Ali dava pra segurar um pouco os moleques. Meu pai, seu Crizam, ajudava: pegava no pé, orientava, ficava de olho. Era um cara carinhoso, mas bravo. Vigiava todo mundo. 

“Tão indo onde? Voltem cedo. Tá na hora do almoço.”

Foi muito legal, mas os quatro deram um baita prejuízo pra gente, porque comiam pra burro cada vez que ficavam hospedados lá hahaha… Então foi até natural que depois do título, que nós conquistamos com um 3 a 0 e um 2 a 2 contra o Botafogo, a melhor parte da comemoração acontecesse lá em casa, na Baixada.

A diretoria do Flamengo até fechou uma boate, teve festa lá, mas os momentos mais legais, os mais inesquecíveis, aconteceram em Nova Iguaçu. A minha mãe fez uma peixada e uma feijoada. Vieram uns birinaites. Meu pai descolou uma piscina dessas de armar e o Gaúcho levava todo mundo pra desfilar de buggy pela vizinhança. Foram dois ou três dias no melhor estilo Flamengo: simplicidade, alegria genuína e companheirismo. Um momento inesquecível entre tantos momentos inesquecíveis que o futebol me deu.

Zinho medalha tetra Brasil
André Mourão/The Players' Tribune

E foi nesse ambiente que eu tive finalmente noção de quem eu era. Eu já tinha sido campeão antes pelo Mengão, seria mais tarde por Palmeiras, Grêmio, Cruzeiro, no Japão e na Seleção Brasileira. Mas foi o título do Brasileiro de 1992 que me deu a real noção da minha trajetória e da minha missão na Terra. Ali, no meio dos amigos queridos, na minha casa, com a minha família, pensando nos milhões de rubro-negros que também celebravam no Rio e em todo canto do Brasil, eu disse pra mim mesmo: 

“Eu tô aqui.

Eu eu fiz por merecer.

Eu sou de verdade.”

Vinte e dois anos depois dos pratinhos voando na casa rosa de Petrópolis, do silêncio profundo entre o toque do Pelé e o gol do Carlos Alberto, do garotinho perdido na multidão, eu tinha definitivamente plantado a minha semente para a conquista do Tetra. A profecia da minha mãe se cumpriria. 

Era só confiar.

Autografo Zinho

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