A Força Para Ir Além

Ulrik Pedersen ZUMA Press Wire via AP
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Dibradoras

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Defender as cores do Brasil é sempre um orgulho imenso para mim. Quando visto a camisa da seleção brasileira, eu sinto que represento não só o meu sonho, mas o de todas as meninas e mulheres que sonham em ver a nossa modalidade no topo.

Já faz bastante tempo, mas ainda consigo me lembrar da primeira vez que dividi o mesmo campo com lendas como Michael Jackson, Marta e Formiga. 

De repente estou correndo atrás de uma bola e olhando para o lado, como se estivesse hipnotizada: Caraca, mano, é a Formiga!! 

Só de jogar com referências como elas você sente uma energia diferente, tipo: “Vai, acredita e vive esse momento. Nós estamos juntas agora”.

Elas sonharam com um futebol feminino melhor, lutaram por isso ao longo de suas carreiras. E hoje, se podemos usufruir da maior valorização e visibilidade do esporte, é graças ao esforço de todas as pioneiras para deixar um legado além dos títulos.

Debinha Marta futebol feminino Brasil
Soccrates Images/Getty Images

Jackson e Formiga já não estão na seleção. Mas a Marta segue firme do nosso lado. Nesta Copa América, vamos em busca da vaga em mais um Mundial e com esperanças de manter acesa a chama da tão sonhada medalha olímpica. É o começo da caminhada. Mesmo assim, já temos a exata dimensão da responsabilidade.

Ao entrar em campo, representamos o nosso sonho e o delas. Jogamos por nós e por elas.

Todo mundo tem um sonho que merece ser respeitado. Se eu consegui realizar o meu, é porque a luta das que vieram antes de mim valeu a pena. E agora é minha vez de ajudar as próximas a lutar pelo delas também.



Encontrei minha inspiração no futebol bem cedo. Quando eu era pequenininha, minhas irmãs, Katia e Rubiana, e eu acordávamos de madrugada para assistir aos jogos da Seleção Brasileira. A galera na nossa rua em Brazópolis decorava as casas com bandeiras, pintava as calçadas e comemorava quando a Seleção marcava um gol. Não é mais a mesma coisa, mas naquela época todo o bairro fazia festa junto.

Ganhei minha primeira bola de futebol do Rogério, que era o meu professor de Educação Física, e que vivia do outro lado da rua, e logo na parte de cima tinha uma pracinha perto da padaria onde minhas irmãs, meus primos, meus vizinhos e eu jogávamos. Quando joguei bola pela primeira vez, eu queria ser como minhas irmãs e os meus amigos.

Só que eu me impus desde o começo. O pessoal lá na minha rua percebeu que eu era diferente, dizendo que eu tinha a garra necessária para fazer sucesso, mesmo antes de eu saber o que “sucesso” significava.

Só penso em conquistar meu segundo título da Copa América.

Debinha

Se impor nem sempre era uma coisa boa. Os meninos faziam piada quando eu jogava com eles e as meninas me provocavam porque eu usava roupas esportivas. Esse bullying preocupava minha mãe. Ela queria me proteger, então, ela me dizia para jogar com as meninas, para me vestir de forma mais feminina, para prender meus cabelos.

Mas eu só queria ser eu mesma. Queria sair na rua de pés descalços e jogar bola com meus amigos.

Queria jogar bola e deixar todo o resto pra trás.

Entendo mais a respeito do vício agora, mas naquela época eu não compreendia por que meu pai bebia tanto. Será que ele não percebia quão maravilhoso ele era quando estava sóbrio? Ele não sacava o quanto significava pra gente se ele parasse de beber?

Quando estava sóbrio e saía com a gente, ele era o melhor pai do mundo. Ele até mesmo me levava para pescar e andar de bicicleta. Mas na maior parte do tempo ou ele estava bebendo, ou ele estava trabalhando.

Meu pai jamais jamais foi violento ou representou perigo. Ele não batia na gente nem ameaçava — ele não é esse tipo de homem. Meu pai é cuidadoso, tranquilo e carinhoso.

Quer dizer, meu pai era o mais sensível da família. Quando minha mãe não queria que eu jogasse futebol por causa do bullying, era meu pai quem me apoiava. Talvez porque ele tivesse três filhas, ou porque ele jogava, ou porque ele sempre quis um filho homem que jogasse, mas ele tinha essa coisa de “deixa ela jogar”, sabe?

Em relação ao futebol, ele entendia tudo.

O vício do meu pai afetou nossa família. Virou uma situação tão comum que a gente até brincava: “Quando o pai tá bêbado, esquece…”

Nessa época, eu me dediquei totalmente ao futebol e tudo começou a mudar, inclusive o tempo que passava com minha família, enfrentando os problemas em casa.

Minha primeira peneira foi no Santos, quando eu tinha 14 anos. Fui selecionada, mas Santos estava a centenas de quilômetros de Minas Gerais. Eu tinha amigos, família, uma vida inteira lá. Como eu poderia deixar tudo pra trás de uma hora para outra?

Debinha jogadora foto criança
Cortesia de Debinha

Eu não deixei. Não com aquela idade, tão jovem, quando pensava que teria outra chance algum dia.

Mas então as pessoas continuaram me questionando por que eu não fui. Comecei a me perguntar: Talvez essa fosse minha oportunidade... Será que joguei tudo fora?

Como saber o que fazer quando você é tão jovem?

Felizmente, tive outra chance no ano seguinte. Marisa e Juninho, meus professores, ajudaram a organizar uma peneira para mim no Saad, em Monte Sião. Tive que fazer minha mãe assinar um papel para que eu pudesse ir no dia seguinte. Pedir pra ela me deixar fazer esse teste não foi fácil…

A cena ainda pisca na minha memória como se fosse um filme.

Apareço no trabalho dela.

Imploro para ela me deixar ir.

Choro, e depois choro mais quando ela começa a chorar.

Naquela época, esses momentos pareciam durar para sempre. Sou a caçula da família, minha mãe não queria que sua filha saísse de casa, e eu sabia que essa seria a última vez que a veria por vários meses. Nós duas estávamos emocionalmente arrasadas, mas, no fim das contas, ela abriu mão de sua felicidade pela minha.

Deixar minha família foi a parte mais difícil de correr atrás do meu sonho. Foi muito dolorosa a cena da minha mãe chorando no portão da fábrica, e essa imagem ficou na minha cabeça por muito tempo enquanto eu estava fora.

Mas eu fiz o que tinha de ser feito.



Dois dias depois da peneira no Saad, eles me fizeram uma proposta. Dessa vez, eu disse a mim mesma: Não tem como voltar pra trás.

Não seria mais como jogar bola na pracinha da rua Sete de Setembro ou brincar com meus amigos na escola. Agora era fazer parte do Saad, um clube de futebol que ficou invicto de 1994 a 1996 e que conquistou os dois maiores títulos da época no futebol feminino brasileiro, o Troféu Brasil de 1989 e o Circuito Brasileiro de 2003. Era pra valer.

Sim, eu fui, mas não foi fácil. Era minha primeira vez fora de casa e o Saad ainda não estava pagando um salário pra gente, então, eu estava me esforçando muito para poder me sustentar. Às vezes, perguntava ao meu pai se ele podia me mandar 50 reais para ajudar com coisas como sabonete e xampu. Mas minha família também estava passando por dificuldades.

Minha família lutava para sobreviver, e minha mãe sofria muito comigo fora de casa. Eu não sabia o quão ruim era na época, mas ela estava enfrentando uma depressão. Aquele choro no portão da fábrica tinha sido apenas o começo...

Minhas irmãs não me contavam o quanto ela estava chateada porque não queriam que eu voltasse pra casa, para não desistir do meu sonho. Elas sabiam que eu teria abandonado tudo se achasse que poderia ajudá-la a se sentir melhor.

E elas estavam certas. Passei por isso pensando que o que estava fazendo era difícil, mas era uma chance de melhorar as coisas para minha família.

Para cada sacrifício que minha família fazia, cada vez que sofriam porque eu estava lutando pelo meu grande objetivo, prometi a mim mesma que elas seriam recompensadas por tudo o que fizeram por mim. Meu maior sonho não era só jogar futebol, mas também dar uma vida melhor à minha família.

Felizmente, encontrei outra família no time do Saad. Mariléia dos Santos, a famosa Michael Jackson, minha companheira de equipe, irmã mais velha, mãe postiça e psicóloga, tudo em uma pessoa só. A Jackson era de Campinas, a menos de duas horas de distância, então, ela me levava nos finais de semana, já que eu não tinha condições de ir pra Minas. A gente ia pra casa dela, jogava boliche, fugindo um pouco do ambiente do clube.

Michael Jackson jogadora futebol feminino
Matthew Ashton/EMPICS via Getty

Em campo, ela era uma das jogadoras mais calmas e alegres. E não tinha nenhum problema em cobrar a gente, corrigindo o que estava errado, sempre nos encorajando também, dizendo coisas como: “Vai pra cima mesmo!” e “seja feliz!”.

Uau, a alegria dela... me fez querer ser como ela. Quer dizer, quem não gostaria de ser como ela? Michael Jackson era perfeita.

Ela me ajudou a sair da minha concha como uma jovem jogadora com saudades de casa que, de repente, estava jogando entre estrelas do futebol feminino.

Foi uma loucura! Um dia estava sentada na frente da TV assistindo jogos, quando eu só queria correr descalça na rua com minhas amigas, e pouco tempo depois estava trocando passes com a Michael Jackson. Só queria aproveitar o momento e dar o meu melhor.



Essa não foi a última vez que senti saudades de casa. Depois de um ano no Saad, recebi uma boa proposta da Coreia do Sul. Dessa vez, eu estava a um continente inteiro da minha cidade natal. Aquela imagem da minha mãe chorando doeu duas vezes mais.

Senti mais saudades de casa durante o curto período em que estive na Coreia do que quando saí para ir jogar no Saad. E depois de apenas 10 dias, eu já estava doida pra voltar.

Eu era uma jovem em ascensão, então, pensei que teria mais oportunidades de jogar no exterior no futuro. Não queria ser negociada e depois ficar deprimida com isso.

Não valeu a pena. Eu não tinha vindo de tão longe só para jogar por um salário.

Lá atrás, aprendi na rua Sete de Setembro que o futebol era pra ser apreciado, que o futebol deveria fazer com que a gente se sentisse em casa, e eu ia correr atrás desse propósito mesmo que isso significasse ganhar menos dinheiro.

Debinha Players Tribune
Thais Magalhães/CBF

Então, assim que pintou uma oportunidade, fiz minhas malas.

Todas elas.

E não voltei mais.

Ainda bem que havia um lugar para mim no Centro Olímpico no Brasil. Fiquei lá até receber uma oferta para jogar na Noruega. E na Noruega tinha jogadoras brasileiras que me fizeram sentir em casa. A gente fazia comida juntas e rapidamente nos tornamos uma família.

Quando fui convocada para jogar pela Seleção Brasileira foi o melhor dia da minha vida. Um dos coordenadores da CBF me ligou para dizer que eu seria convocada, e eu corri para o meu quarto e chorei. Liguei para minha família imediatamente e todos começaram a chorar também.

Debinha seleçao brasileira feminina futebol
Alfredo Estrella/AFP via Getty

Não eram as mesmas lágrimas que minha mãe e eu compartilhamos todos aqueles anos atrás na fábrica... Eram lágrimas de alegria, de orgulho. Essas eram lágrimas que diziam: Tudo valeu a pena. Foram lágrimas que fizeram tudo — cada sacrifício — valer a pena.

Jogar a Copa do Mundo em 2019 foi algo incrível, e também a realização de um sonho. Eu já tinha disputado um Mundial sub-20, mas sabia que representar o Brasil com a Seleção principal seria o auge da minha vida de atleta.

O exemplo de todas que lutaram pelo futebol feminino é a minha grande inspiração como atleta.

Debinha

Depois do primeiro jogo na Copa, a pressão desapareceu e tudo começou a dar certo. Era como se eu não tivesse escolha a não ser viver o momento, aproveitar cada segundo. Acho que a ânsia e a emoção foram os sentimentos que me ajudaram a jogar bem.

Como eu estava jogando ao lado de craques consagradas — Formiga, Marta, Cristiane — eu só queria focar e me dedicar ao máximo, não só por mim, como eu disse, mas por elas.

Disputar uma Copa do Mundo me lembrou que o futebol era maior do que eu. Isso me fez recordar de brincar como se eu fosse uma criança nas ruas, correndo com minhas irmãs e amigas que admirava. Isso me lembrou de entrar em campo e esquecer todas as dificuldades. Me lembrou de viver cada instante daquele momento.



Não sou mais uma garotinha correndo atrás de uma bola nas ruas. Tenho 30 anos e jogo pelo North Carolina Courage. Desde a minha primeira convocação em 2011, fiz mais de 60 jogos pela Seleção Brasileira. Agora, só penso em conquistar meu segundo título da Copa América.

Uma longa jornada, e quero me lembrar disso o máximo possível.

Fiz várias tatuagens ao longo dos anos. Cada uma me lembra o que foi necessário para eu chegar aonde estou.

Tenho tatuado FAMÍLIA no meu antebraço.

RESILIÊNCIA na minha perna.

Os Anéis Olímpicos no meu pulso.

Mas aquela que significa mais para mim, que explica quem eu sou e toda minha jornada, está na minha panturrilha esquerda.

Está escrito assim: QUANDO PENSO QUE CHEGUEI AO MEU LIMITE, DESCUBRO QUE TENHO FORÇAS PARA IR ALÉM.

Debinha tatuagem jogadora
Sam Robles/The Players' Tribune

Não importa onde eu esteja, não importa o quanto as coisas sejam difíceis, isso me lembra que tenho o que é preciso para continuar.

Quando falo com minhas irmãs sobre o passado, focamos principalmente em como as coisas estão melhores agora. É tipo: Cara, olhe para tudo o que aconteceu e veja onde estou agora. Lembra como era ruim antes?

Conseguimos, todas nós. Sou jogadora profissional, a depressão da minha mãe está melhor e meu pai se recuperou do alcoolismo.

Ele é meu fã número um, sempre dizendo às pessoas da cidade quando estou jogando e quando estou voltando pra casa.

A família moldou minha resiliência. E o exemplo de todas que lutaram pelo futebol feminino é a minha grande inspiração como atleta. Minha força para ir além e continuar sonhando.

Por nós e por elas.

Autografo Debinha jogadora futebol

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