Pacto Com o Diabo

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Alerta de conteúdo sensível: este artigo contém linguagem forte e descrições detalhadas de abuso sexual, violência doméstica, uso de drogas e suicídio.

Nas três primeiras vezes que a faca me cortou, ela estava tão afiada que nem percebi que eu havia sido esfaqueada.

Na verdade, pensei que tinha levado um soco debaixo do braço. Três socos rápidos — pá-pá-pá — foi tudo o que senti. Nada demais.

Mas aquela quarta facada…

Quando a faca cortou meu peito?

Foi aí que eu soube que estava em apuros.

Não por causa da dor. Eu nem me lembro de ter sentido qualquer tipo de dor.

Mas por causa do sangue.

Eu sangrei muito ao longo dos anos no ringue de boxe e fiz muitas outras pessoas sangrarem. Mas isso? Isso era diferente.

Era como uma fonte de sangue jorrando do meu peito. Esguichava tanto que parecia de mentira. Eu nunca tinha visto nada parecido.

Então, ao ver isso, o sangue escorrer tão rápido pra fora de mim e espirrar no carpete do quarto, foi quando me convenci de que estava prestes a morrer. Que era assim que tudo terminaria.

E parte de mim, naquele momento — por mais triste e doloroso que seja admitir —, parte de mim ficou de certa forma... Aliviada.

Quando a faca cortou o meu peito? Foi aí que eu soube que estava em apuros.

Christy Martin

Isso foi em novembro de 2010, pouco antes do Dia de Ação de Graças. Em Apopka, Flórida, onde morava com meu marido e treinador de boxe, Jim Martin. Vinte minutos antes do ataque, Jim estava na outra sala ligando para meus amigos e familiares pra dizer que eu era lésbica.

E uma viciada em drogas.

E que eu o troquei por uma mulher.

Eu realmente podia ouvi-lo falando com meus parentes que iria enviar mensagens com fotos minhas usando drogas ou fazendo sexo.

“Você vai ver com seus próprios olhos”, ele dizia. “Você vai ver quem ela realmente é.”

E o tempo todo, ligação após ligação, o Jim estava afiando uma faca. Eu podia ouvir aquele som de aço deslizando sobre pedra — whoooooosh, whoooooosh, whooooosh.

Então, neste momento, tudo ficou em silêncio. Alguns segundos depois, ele calmamente entrou no quarto, onde eu estava conversando ao telefone com a mulher por quem eu havia deixado nossa casa dias antes. Ele me olhou nos olhos, puxou a faca e, basicamente, começou a me esfaquear.

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Al Bello/Allsport

Quando algo assim acontece com você, acho que sua mente e seu corpo entram em pânico e você faz o que pode para se manter viva — ou pelo menos foi o que aconteceu comigo. 

Comecei a chutar e a me debater, qualquer coisa que pudesse fazer para tentar escapar. Mas, ao dar um chute nele, Jim arranca o músculo da panturrilha quase completamente da minha perna. Um corte seco, sem dó.

Agora há ainda mais sangue.

Mas, como você já deve saber, eu sou uma lutadora, certo? E por mais que pudesse existir uma parte de mim que não se importaria de morrer naquela tarde devido a todos os acontecimentos ruins na minha vida, é impossível tirar a luta de uma lutadora.

Então, alguma coisa dentro de mim mudou e eu decidi, tipo: Não, filho da p***, você não vai me matar. Hoje, não. Eu vou viver! Mesmo que seja apenas para mostrar que você é fraco demais para terminar o serviço.

Quando eu começo a lutar com ele em cima da cama, porém, de alguma forma as coisas continuaram piorando. Jim está batendo minha cabeça na quina da nossa cômoda. E como ele ainda tem a faca, ainda está dilacerando meus ombros com a outra mão. Então ele saca uma arma — minha arma, minha arma rosa — e me dá uma coronhada na cabeça.

Deitada no chão, sendo esmurrada, esfaqueada e espancada de todas as maneiras imagináveis, tudo que eu havia conquistado ao longo dos anos simplesmente desaparece. Nada disso importava — todos os nocautes, o grande contrato com Don King, subir no ringue do Madison Square Garden com fãs gritando meu nome, estar em um card com Mike Tyson, a capa da Sports Illustrated, tudo... Foi tudo reduzido a pó.

Nenhuma dessas conquistas iria me salvar, e não havia nada que eu pudesse fazer para virar o jogo. Era um caso perdido, com certeza.

Mas então, do nada, Jim simplesmente... Parou.

Parou de esfaquear, chutar e bater. Tudo de uma vez. Bem desse jeito.

Não, filho da p***, você não vai me matar. Eu vou viver! Nem que seja para mostrar que você é fraco demais para terminar o serviço.

Christy Martin

Eu não sabia o que estava acontecendo, até que vi o Jim olhar para sua mão jorrando sangue. Enquanto ele me cortava e eu lutava, a mão deve ter escapulido e toda a palma dele foi cortada de ponta a ponta. Jim percebeu isso, parou e saiu da sala pra cuidar do seu corte.

Estirada no chão sozinha, dada como morta pelo meu marido, eu podia ouvir meus pulmões borbulhando enquanto eu respirava. Ele perfurou meus pulmões em algum lugar, e agora eles estavam se enchendo de sangue.

Eu estou morrendo. Isso realmente está acontecendo.

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De vez em quando, Jim voltava e olhava para mim, acho que só pra ver se eu já tinha morrido. E toda vez que ele entrava, eu implorava a ele para não me matar e me levar ao hospital.

Ele não dizia nada. Não respondia. Apenas entrava e saia da sala.

Mas depois de mais alguns minutos sem que eu tivesse morrido, acho que ele percebeu que não havia como me deixar viva, porque eu iria à polícia e tudo estaria acabado pra ele. Então, ele voltou pela última vez, parou diante dos meus pés e apontou minha 9mm rosa para mim.

Ele olha para mim, de cima para baixo. Parado, perfeitamente imóvel, com a arma na mão.

“Você não tem coragem de atirar em mim!!!!!!!!”.

Lembro de gritar isso pra ele. Não sei se acreditei ou não, mas, na verdade, me senti muito bem por ter dito. E então…

Ele atira em mim.

No peito, à queima-roupa.

Ele voltou pela última vez, parou diante dos meus pés e apontou minha 9mm rosa para mim.

Christy Martin

Tenho certeza que desmaiei naquele momento, e Jim provavelmente pensou que eu estava morta. Bem, quem não gostaria? Depois de tudo isso?

Mas eu não estava morta. Não sou, ao que parece, uma pessoa fácil de matar. Continuei respirando e apenas rezei. Eu orei muito naquele momento. Eu dizia, na minha cabeça: Por favor, meu Deus, me deixa sair daqui de alguma forma! E então, instantaneamente, ouvi o chuveiro sendo ligado.

Essa foi a resposta de Deus à minha oração. Eu realmente acredito nisso.

Mas eu tive que reagir rápido. O problema era que toda vez que eu tentava me sentar, o sangue jorrava de vários lugares, e isso me assustava. Então, por alguns segundos, foi como se eu não conseguisse me mover. Mas de alguma forma, sabe-se lá como, consegui me levantar e fugir pela porta da frente, cambaleando e dando um jeito de manter minhas mãos cobrindo os cortes mais profundos para estancar o sangramento.

Corri para a rua, uma loucura. Imagine o que as pessoas que me viram devem ter pensado.

Sério, eu nem posso culpá-lo.

Mas o próximo carro... Rick Cole estava dirigindo aquela SUV, e esse cara, um completo estranho, se tornou o meu anjo.

Rick me deixou entrar no carro e ligou para o 911 imediatamente.

Felizmente, o hospital não era muito longe de onde eu morava. Mas, durante todo o trajeto, lembro que estava apavorada. Eu só implorava: “Por favor, senhor... Por favor, por favor, por favor, não me deixa morrer. Por favor, não me deixa morrer. E, cara, eu realmente sinto muito por ensanguentar todo o seu banco de trás”.



Eu conheci Jim Martin 20 anos antes, em 1989, em sua academia de boxe em Bristol, Tennessee.

Eu tinha saído da minha cidade natal no sul da Virgínia com minha mãe e meu minúsculo Lulu da Pomerânia, Casey. Eu nunca tinha entrado numa academia de boxe de verdade antes. Era um território hostil. Por isso que levei minha mãe.

O cachorro? Sim, quem sabe?

De qualquer forma, eu tinha 21 anos na época e, depois de nocautear uma mulher em uma competição regional, recebi a notícia de um promotor local que um grande treinador chamado Jim Martin estava disposto a me transformar em boxeadora profissional. Parecia divertido. Tipo: por que não?

Mas quando eu entrei na academia, quero dizer... Imagine só. É como uma piada de boteco de mau gosto ou algo assim: uma menina, sua mãe e seu cachorrinho de madame entrando numa academia de boxe.

Todos os caras me olhavam como se eu fosse uma alienígena, e você poderia dizer imediatamente que Jim não demonstrava nenhum entusiasmo ao ver uma mulher entrando em sua academia.

Não ajudou em nada o Casey latindo loucamente.

Desde o início, Casey odiou o Jim. Odiou meeeesmo. Aquele cachorro pesava apenas três quilos, mas sabia como transmitir seu ponto de vista. (Pra você ter uma ideia, ele costumava fazer xixi no chapéu do Jim.)

Os cães sabem, cara. É verdade o que dizem. Os cães realmente podem dizer se alguém é bom ou mau.

É como uma piada de boteco de mau gosto ou algo assim: uma menina, sua mãe e seu cachorrinho de madame entrando numa academia de boxe.

Christy Martin

Infelizmente, Casey não podia me ajudar dentro do ringue. Quando subi lá naquele dia, ficou claro para todos o quanto eu era crua.

Eu não tinha habilidades reais de boxe. Não havia método nem estratégia nos meus movimentos. Eu estava basicamente tentando socar com meus braços o mais forte que podia.

Sempre dizem que os grandes boxeadores são jogadores de xadrez experientes — eles têm capacidade de preparar o adversário com três ou quatro movimentos de antecedência para o golpe que realmente querem dar.

Bem, eu?

Sim… Eu não sou uma boa jogadora de xadrez.

Isso eu não sou. Tampouco fui naquele primeiro dia. Eu sou uma besta enjaulada. Prefiro traçar uma linha reta na areia e vambora. Então, se for um jogo de xadrez, será um dia árduo para mim. Mas, se for algo em que eu dê um soco na sua cara e pronto, você pode acabar no hospital.

Essa era a minha vibe naquela época.

E Jim rasgou tudo que eu sabia e jogou no lixo naquele primeiro dia. Ele notou cada falha. Cada uma delas. E me disse que o que eu estava fazendo sozinha, sem sua orientação, não era bom o suficiente.

Christy Martin Jim Martin
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No começo, Jim foi incrível.

Ele era um ex-boxeador meio-pesado que treinou lutadores por 25 anos e me deu uma introdução impecável às habilidades básicas do esporte — um bom jab, o jogo de pernas adequado, como encaixar combinações, tudo isso. O lado técnico... Ele me ensinou tudo.

Mas, desde muito cedo, havia também esse elemento de controle que era totalmente abrangente. Eu nunca vou esquecer ele dizendo pra mim…

“Christy, se você me deixar, eu te mato.”

No começo, eu apenas ri como se fosse uma piada. Mas ele continuou dizendo isso. Uma e outra vez.

“Você sabe que, se você for embora, eu vou te matar, certo?”.

Em pouco tempo, eu estava morando com ele e alguns outros caras da academia. Não era uma vida glamorosa — dormir no sofá numa casa miserável com boxeadores suados entrando e saindo dia e noite —, mas eu não me importava. Jim fez uma previsão para mim, que parecia um sonho. Estávamos juntos 365 dias por ano, sete dias por semana, 24 horas por dia. Nós dois éramos uma equipe. E além de dizer que poderia me matar um dia, a outra coisa que Jim sempre me dizia era algo bem mais positivo.

“Christy”, ele frisava, “vou fazer de você a melhor lutadora de todos os tempos.”

Eu amei ouvir isso. E eu acreditei nele.

Eu estava convencida de que ele estava pronto pra fazer o que fosse necessário para me levar ao topo. Eu trabalhei pra caramba. Fiz tudo o que ele disse e nunca pensei duas vezes sobre isso. Quando você está ganhando lutas e dinheiro, isso é o que você faz. E, desde o início, com Jim no meu corner, eu estava mandando ver.

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Não apenas ganhando lutas. Eu estava destruindo pessoas, moendo minhas adversárias na porrada. Então, pra mim, vencer lutas e Jim Martin, essas duas coisas andaram de mãos dadas. Eu as via como duas metades do todo.

Em minha mente, Jim era o boxe. E o boxe se tornou tudo para mim.

Então, em 1992, por razões que nem consigo me lembrar ou entender plenamente, resolvemos escolher alianças e nos casar. A única maneira de explicar isso é que, quando tomei a decisão por impulso e me casei com Jim, na minha mente, foi como se eu estivesse me casando com o boxe.

Não era amor, paixão ou romance. Não havia nada disso. Meu amor era o boxe. Jim era 25 anos mais velho que eu. E eu era lésbica. E o Jim sabia. Nada daquilo fazia sentido. Mas nós nos casamos mesmo assim.

Em 1993, eu estava acumulando nocautes, e aí apareceu o Don King. Foi então que as coisas decolaram. King me fazia lutar praticamente a cada duas semanas. Ele elevou minha carreira a outro patamar. De repente, meu nome estava em todos os lugares, participei de quadros no Showtime, HBO... Então, em 1996, eu lutei contra Deirdre Gogarty no pay-per-view. Demos um show, de verdade — uma luta muito melhor que Mike Tyson destruindo Frank Bruno naquela mesma noite. Deixei todo mundo impressionado. Vários programas de TV ligaram no meu quarto de hotel. A Sports Illustrated fez uma sessão de fotos comigo para uma pequena matéria. Então eu continuei ganhando e do nada: Você vai ser a capa da revista!

Jim era 25 anos mais velho que eu. E eu era lésbica. E o Jim sabia.

Christy Martin

Tudo ficou, tipo... Muito grande.

Mas, ao mesmo tempo, foi como se eu tivesse sofrido uma lavagem cerebral enquanto tudo aquilo estava acontecendo.

Jim sempre me dizia que o meu sucesso era por causa dele.

E que tudo poderia desaparecer em um instante.

Durante esse tempo, era quase como se eu fosse seu próprio robô ou algo assim. Eu fazia o que ele dizia e dizia o que ele me mandava. Jim me programou para falar coisas provocativas e ser controversa diante da imprensa. Ele me fez dizer coisas que eu nunca, em um milhão de anos, diria. Coisas que lamento até hoje — provocações, insinuações, ofensa homofóbica.

Quando estávamos em casa, então, a portas fechadas, era um inferno.

Jim tinha controle total sobre tudo o que eu fazia. Eu ia ao Walmart ou ao supermercado, virava pra trás e ele estava parado no corredor, com um sorrisinho cínico no rosto. Ou eu ia cortar o cabelo, ou fazer as unhas, e ele aparecia. Puxava uma cadeira bem do meu lado.

Eu não tinha amigos. Ele sempre tinha que saber com quem eu estava falando, do que eu estava falando, onde eu estava... O tempo todo.

Tudo era uma questão de controle.

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No fim dos anos 90, Jim começou a trazer cocaína pra casa e, depois que fui fisgada, ele usou a droga para me induzir a fazer todo tipo de coisa que apenas um dependente químico concordaria em fazer. Umas paradas sexuais bem estranhas, por exemplo. A certa altura, encontrei câmeras por todos os lados e percebi que ele estava gravando tudo o que eu fazia na casa. Ele era capaz de vigiar cada movimento meu.

Às vezes, na academia, ele se oferecia para treinar comigo, e era muito... Bizarro. Sempre tive receio de bater nele — ele era muito mais velho, eu ficava hesitante em ir 100%. Mas Jim? Ele não media a força.

Ele me nocauteou quando treinamos. A sangue frio.

Apaguei.

Ele fingia que tinha sido apenas um treino de sparring que deu errado. Mas ele era um profissional. Ele sabia o que estava fazendo. Era ele me mostrando quem mandava no pedaço. Não importa o quão boa ou durona eu achasse que era. Ele poderia me nocautear quando quisesse.

Foi tipo: Opa! O que aconteceu? Eu devo ter escorregado com esse cruzado.

Em casa, no entanto, não havia necessidade de esconder nada. Uma vez, já no fim do nosso casamento, depois que eu disse que o deixaria, ele me bateu com tanta força que meus dentes ficaram encravados no lábio.

Sem novidades.

Encontrei câmeras por todos os lados e percebi que ele gravava tudo que eu fazia na casa.

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Na verdade, esse incidente só me convenceu de que Jim ia acabar me matando em algum momento.

Lembro de ter pensado muito bem em tudo, calculado como as coisas aconteceriam. Até deixei algumas manchas de sangue em nosso banheiro numa das vezes em que ele me bateu, e disse a um amigo próximo: 

Quando eu desaparecer, quero que você conte ao mundo o que está acontecendo. Em seguida, leve a polícia ao banheiro, e o sangue estará bem aqui. Eles vão coletar meu DNA e pelo menos saber que algo de errado estava acontecendo.

Nesse ponto, eu realmente fiquei resignada, sabia que morreria. Jim iria me matar ou eu mesma faria o serviço. Houve muitas noites em que segurei minha 9mm (a mesma rosa 9mm que ele usou) na boca e pensei em tirar minha própria vida.

A verdade é que eu já estava morta naquela época. Então, talvez não importasse muito, de uma forma ou de outra.

Eu claramente tinha feito um pacto com o diabo.



Eu fiquei sete dias internada no hospital antes que a polícia finalmente encontrasse Jim.

Ele ficou solto por uma semana depois de ter me esfaqueado e atirado em mim. Os policiais não conseguiram encontrá-lo e disseram que não tinham ideia do seu paradeiro. Enfim, ele poderia aparecer no hospital para terminar o que começou. Na época, só me lembro de como isso foi assustador para mim — não saber onde ele estava nem o que ele poderia estar tramando. Enquanto eu me recuperava dos ferimentos, o hospital me mudou para um local mais reservado por razões de segurança. Amigos e familiares apareciam para me visitar e me dar apoio, mas eles eram dispensados na portaria, ​​porque eu estava em total isolamento.

Então, quando a polícia entrou no meu quarto e me informou que finalmente haviam prendido meu marido, é claro que eu fiquei aliviada. Mas quer saber de uma coisa? Para ser honesta, no início, eu também me senti... Culpada.

Fiquei triste por ele, ou como se fosse a responsável por tudo.

Consegue imaginar?

O cérebro humano funciona de maneiras misteriosas.

Minhas cicatrizes eram tão profundas que realmente senti empatia pelo meu agressor.

No entanto, durou apenas alguns minutos.

Depois disso, tudo se tornou uma questão de provar que ele estava errado. Queria provar ao mundo, a Jim e, mais do que tudo, a mim mesma que eu poderia sobreviver. Que eu poderia vencer. E que eu poderia viver sem ele.

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A partir daí, tive que lutar. Era o único jeito.

Então, em junho de 2011, sete meses depois de ser baleada, esfaqueada e dada como morta, voltei ao ringue, ainda com a bala em minhas costas.

Eu voei para Los Angeles e lutei com a Dakota Stone. Mas é como se ela não fosse contra quem eu realmente estava lutando, sabe o que quero dizer? Foi assim: vou mostrar a você, Jim Martin, que posso fazer isso sem você. Dakota Stone? Ela foi somente uma coadjuvante nessa luta.

Sete meses depois de ser baleada, esfaqueada e dada como morta, voltei ao ringue, ainda com a bala nas minhas costas.

Christy Martin

No quarto assalto, eu a derrubei. Foi sua primeira queda em toda a carreira. Mas quebrei minha mão com o soco. E então, no último round, depois de ter resistido o resto da luta com uma mão quebrada, bem no final, estou ganhando e dominando, prestes a vencer e... Eu acerto um golpe com a direita que me faz estremecer um pouco.

Deu ruim.

Faltando 50 segundos para minha 50ª vitória no boxe, o médico interrompe a luta. O tiro saiu pela culatra. Nada poderia ter sido pior.

Aí fui para o hospital e... Merda, quebrei minha mão em nove lugares.

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Mark J. Terrill/AP Photo

Ela foi quebrada em tantas partes que os médicos não podiam nem dizer o que era — como se um osso estivesse aqui e outro ali. Até o meu dedo mindinho estava quebrado. 

Disseram que eu precisaria passar por uma cirurgia, mas a boa notícia é que levaria apenas duas horas.

E então, quando saí da cirurgia, sete horas depois, era como se eu não pudesse acordar completamente. Como se a anestesia ainda estivesse fazendo efeito. Eu não conseguia falar, minha visão estava embaçada e meu rosto todo torto.

O neurologista-chefe veio até o meu leito, me examinou e me mandou direto pra UTI. Lembro dele olhando pra mim, virando-se para as enfermeiras e dizendo:

“Ela sofreu um derrame.”

Os médicos me disseram para não lutar. Eu não dei ouvidos.

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Alguns meses depois, porém, eu já estava de volta ao ringue.

Os médicos me disseram para não lutar. Eu não dei ouvidos. Não me importei com a recomendação deles.

Precisava mostrar ao Jim que eu poderia vencer sem ele. Novamente. E, desta vez, daria certo.

Eu queria ter certeza, então escolhi uma adversária, Mia St. John, que eu sabia que poderia derrotar até mesmo no meu pior dia. Seria uma luta fácil, teria 50 vitórias na carreira e sairia por cima.

Tudo fazia sentido no meu plano.

O único problema é que não levei em conta o julgamento de Jim, que havia terminado poucos meses antes da luta. Eu não planejei como seria. E como isso me afetaria. Perdi a vontade de treinar, de fazer qualquer outra coisa.

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Esse julgamento, para mim, tinha de servir para que Jim recebesse o que merecia pelo que fez comigo. E, não vou mentir, eu queria tornar todo o processo mais doloroso para ele.

Um exemplo: Jim odiava Gloria Allred. Toda vez que a via na TV, ele xingava.

Então, é claro, contratei a Gloria como advogada. Ela estendeu a mão e me perguntou sobre isso: Sim, o Jim não te suporta. Vamos pra cima dele!

Eu só conseguia me imaginar entrando no tribunal com Gloria Allred e o Jim vendo aquela cena, furioso. Me deliciei com isso.

Mas quando chegou a hora, durante o julgamento, quando eu estava testemunhando, as coisas ficaram difíceis para mim, porque eu obviamente precisava passar por tudo o que tinha vivenciado. Todo o pesadelo voltou à tona.

Teve um momento em que o promotor me entregou um envelope lacrado e uma tesoura para que eu pudesse abri-lo. Dentro estavam as roupas que eu usava quando Jim me atacou. E, meu Deus, aquelas roupas estavam absolutamente cobertas de sangue.

Quando vi a blusa, meu coração foi na boca. Eu não conseguia acreditar que todo aquele sangue era meu.

Então, ele trouxe uma caixa. Dentro estava a arma. E eu tenho que dizer…

Sou uma pessoa bem durona ou sei lá o quê, lutadora, casca grossa... Mas quando abri aquela caixa e vi minha arma de novo, toda coberta de sangue? Tipo, esta é a arma com a qual ele atirou em mim.

Senti um aperto no peito, juro que até me faltou ar.

Mas, ao mesmo tempo, eu não ia deixar o Jim me ver chorar. Era como: eu não posso deixá-lo saber o quanto ele me machucou. Por 20 anos, toda sua conduta foi para me ferir, me colocar pra baixo e me manter sob seu controle, e era como se... Agora é hora de eu agir por conta própria. É hora de mostrar a ele que sou forte…

Mesmo que eu estivesse perdendo o controle por dentro e não fosse tão forte assim, eu disfarcei o melhor que pude.

E quando testemunhei fiz questão de olhar diretamente nos olhos de Jim o tempo todo. Essa era minha missão. E Jim, é claro, tentava desviar o olhar de mim. Mas eu simplesmente não deixava.

“Olha pra mim”, eu dizia a ele. “Olha pra mim enquanto eu falo.”

Eu queria que ele sentisse alguma coisa, entende?

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Ao longo de todo o processo, nunca me preocupei minimamente sobre como as coisas iriam acabar. Eu sempre fui assim: eu sei o que aconteceu, eu sei a verdade, então claramente ele vai passar um bom tempo na cadeia. Eu não tinha dúvida.

Mas então, bem no final, prestes ao anúncio da sentença do júri, por algum motivo, toda a minha convicção mudou.

Sempre achei que seria como o fim de uma luta, quando você sabe que venceu e está apenas esperando que eles oficializem o resultado e anunciem para o público. Você está em paz. Você se sente bem, se sente leve.

Mas não foi nada disso.

De repente, comecei a ficar muito ansiosa. Era quase como se eu estivesse em pânico. Era como: Oh, meu Deus, talvez aqueles jurados não tenham acreditado em mim. Talvez aqueles jurados pensem que eu estava mentindo. Talvez haja uma pessoa nesse grupo que, de alguma forma, pense que o Jim não fez nada de errado.

Talvez eles o deixem ir pra casa!

Fiquei uma pilha de nervos por cerca de cinco ou dez minutos.

Mas, antes que eu percebesse, o juiz leu o veredicto, e toda aquela preocupação foi embora. Então... Aquele filho da p*** acabou indo de vez para a prisão.

Ele pegou 25 anos pelo que fez comigo.

Se cumprir toda a pena em vida, ele terá 92 anos quando sair.

E ele é tão estúpido que tenho quase certeza de que vai viver muito tempo, sairá da cadeira e então… Ele estará em uma cadeira de rodas, em um andador ou o que quer que seja, vindo atrás de mim e tentando me matar de novo.



Eu perdi a luta contra a Mia.

Simplesmente perdi o controle. Eu não treinei, fiquei estressada com o julgamento e estraguei tudo. Esse foi o meu fim de carreira. Honestamente, é constrangedor para mim, o ponto mais baixo em toda minha trajetória no boxe. 

Mas tem um momento da minha última luta profissional que eu sempre vou recordar. Aconteceu muito rápido, bem perto do fim, e mesmo que você estivesse assistindo àquela luta, pode não ter percebido.

Restavam cerca de 10 segundos e eu fiz algo que nunca tinha feito em toda a minha vida.

Eu desisto.

Abaixei minhas mãos, comecei a chorar e desisti.

Esse foi o meu fim de carreira. O ponto mais baixo em toda minha trajetória no boxe. 

Christy Martin

Mas, ao mesmo tempo, fiz mais do que isso. Ou, pelo menos, havia algo além disso.

Mia, é claro, aproveitou esse momento e acertou seis ou sete diretos no meu queixo. Foi realmente impressionante. E era isso o que eu queria, porque o que aconteceu a seguir foi exatamente o que eu sabia que aconteceria.

Eu não vacilei por um segundo.

Ela não me derrubou.

Eu nem sequer dei um passo para trás.

Eu apenas fiquei lá apanhando e... Resisti.

Na minha cabeça era como se eu estivesse dizendo: Olha, você pode ter me vencido, e pode vencer, mas você não pode e nem vai me machucar. Essa sou eu! Essa é a minha vida! 

Eu tomei muita pancada na vida, nem sempre dei a volta por cima, mas eu ainda estou aqui. Você não pode me machucar. Ninguém pode.

Posso aguentar o seu melhor soco.

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Jed Jacobsohn/Getty Images

Antes mesmo da decisão ser anunciada, peguei o microfone e me retirei do ringue.

Eu estava acabada. Eu estava cansada de lutar. 

Não tinha nada a perder naquela luta, então sabia que eu nunca mais seria como antes. Algo mudou dentro de mim. Isso era certo.

E, para ser honesta de novo, quando penso naquela época, há uma parte de mim que se pergunta se perdi aquelas duas últimas lutas pelo fato de Jim ainda exercer um certo poder sobre mim. Era como se, por alguma razão maluca, eu tivesse subconscientemente decidido que não me deixaria vencer sem ele. Ou, pior, que eu não poderia vencer sem ele.

Ele havia dito por tanto tempo que eu não poderia fazer nada sem ele.

Ele fez uma lavagem cerebral em mim para que eu pensasse que não era nada, que meu sucesso, na verdade, não tinha nada a ver comigo. Que era tudo sobre ele.

E talvez nesse ponto, quem sabe, talvez eu ainda compre toda aquela merda de discurso.

Mas estou segura em afirmar que esses dias ficaram para trás.

Já se passaram nove anos desde aquela luta e eu estou mais feliz do que nunca.

Isso não quer dizer que tudo está perfeito. Ainda estou lutando para manter a confiança que preciso para fazer tudo o que gostaria daqui pra frente. Ainda é uma batalha diária. Uma luta. Mas estou chegando lá.

Eu fundei minha própria empresa de eventos de boxe, a Christy Martin Promotions, e quero competir com os gigantes dessa indústria. E, além disso, em termos de vida pessoal, estou finalmente... Feliz. Não me preocupo em ter que corresponder às expectativas de outra pessoa. Menos estresse, menos ansiedade.

Eu cortei meu cabelo — depois de mais de 20 anos ouvindo que eu não poderia. Eu me sinto bem fisicamente. Melhor do que há muito tempo. E tenho uma esposa linda e carinhosa, Lisa Holewyne, que me permitiu descobrir o que é uma parceria real, genuína e amorosa.

Lisa Holewyne Christy Martin
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O engraçado é que antes éramos rivais, lutamos uma contra a outra, mas o destino realmente quis que nós duas ficássemos juntas.

Até mesmo as cicatrizes do esfaqueamento e dos tiros quase desapareceram. O buraco por onde o tiro atravessou meu peito é quase imperceptível. Na única parte do meu rosto que ele cortou, havia uma pequena cicatriz, que foi embora com o tempo.

Ainda existem algumas marcas aqui e ali, onde você pode dizer que algo aconteceu, mas praticamente todas as feridas cicatrizaram.

Agora, é claro, restam as marcas mais profundas…

Isso é um pouco mais complicado.

Às vezes, ainda fico ofegante, tenho recaídas e flashbacks quando vejo alguém pegando uma faca ou quando ouço o som de alguém afiando uma navalha. Coisas desse tipo despertam um gatilho em mim. 

Mas eu vou sobreviver. Sou dura na queda, não vou permitir que o passado me prejudique por muito mais tempo.

No fim das contas, sou uma lutadora em todos os sentidos da palavra. Uma lutadora que segue resistindo.

A história de Christy Martin também é contada na série Untold, produzida por The Players' Tribune, Propagate e Stardust, já disponível na Netflix.

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