A Vida Dentro do Furacão

Simon Bellis/Cal Sport Media via AP Images

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Certa vez um repórter me perguntou: "Você nunca se cansa de vencer?".

Olha, a resposta é não. Muito pelo contrário.

É muito melhor do que perder, né?

Cada título tem um sabor especial, e ganhar só te dá mais energia para continuar.

Quando você chega nessa mentalidade, quando você está totalmente focado na próxima vitória, é como se… talvez essa analogia soe um pouco estranha… é como estar no meio do furacão.

Seu senso de percepção é totalmente diferente daqueles do lado de fora, mesmo que você esteja sendo sacudido de um lado para o outro. Você entra na rotina e bloqueia o barulho, o vento, a chuva.

Nesse momento, você só precisa vencer e seguir. Vamos! Ok, ganhamos hoje, mas agora nós nos preparamos para o próximo jogo, o desafio seguinte. Não há tempo para reflexões nem para comemorar propriamente.

Todos os jogadores falam isso, né? Parece clichê, mas é a verdade. Você precisa ter esse comportamento para se manter na melhor forma.

No meu caso, estou no meio do furacão há muito tempo. Faz 15 anos desde que cheguei à Europa. 15 anos!

Acredito que conquistei o direito de fazer essa reflexão, sabe?

Um exemplo do porquê é tão importante manter essa mentalidade aconteceu com o City nesta temporada e uma conversa que acabei tendo com o elenco.

Vou te contar o que aconteceu.

Não sou um cara de grandes discursos, mas há alguns meses eu não tive outra escolha.

Era dia 31 de dezembro, noite de Ano Novo.

Estávamos na oitava colocação da Premier League.

Tínhamos acabado de treinar.

E o Guardiola não estava muito feliz.

Para entender toda a história, precisamos voltar ao início da temporada 2020/21.

Cara, foi uma época muito complicada para todo mundo. O jeito com que tivemos de voltar a treinar, após três meses de inatividade. Quase não tivemos pré-temporada direito… Nunca tinha acontecido aquilo nas nossas carreiras.

Você não imagina a quantidade de testes de Covid-19 que fiz até hoje. O meu nariz já era grande antes, agora, então… Haha!

Foi muito difícil fisicamente, mas foi bastante pesado mentalmente também.

Desde o começo da pandemia e a volta do futebol, tudo mudou na rotina dos jogadores. Tudo. Não podemos repetir pequenas coisas que fazíamos diariamente como parte do trabalho. Pequenos detalhes relacionados à comida, recuperação, socialização.

A realidade mudou completamente. E temos de nos adaptar. Tem sido difícil e houve um impacto em todo mundo.

Mas acredito que o que permitiu ao Manchester City seguir em frente e conseguir resultados, independentemente de qualquer coisa, foi a nossa força mental coletiva.

É isso o que nos colocou no topo. O que nos fez campeões no passado.

Fernandinho | Manchester City F.C. | The Players' Tribune
Michael Regan/Getty Images

Ainda assim, perto da virada do ano estávamos em oitavo lugar e tivemos o último treino de 2020.

Não foi um bom treinamento.

O comportamento, a linguagem corporal, a dedicação de alguns jogadores. Era óbvio. Você sabe do treino que estou falando, certo? Muitos erros de passes, jogadores não voltando para marcar, sem correr, desinteressados.

Nós não somos assim. Esse não é o time que foi campeão da Premier League duas vezes seguidas e quebrou o recorde de pontos.

Após aquele treino, o Pep veio conversar comigo, como capitão e líder do elenco. Ele estava cego. Ele me disse que nem todo mundo estava se entregando 100%. E, nesse time, ou você dá 100% ou fica no vestiário. Uma vez que você está no campo, não tem papo.

Ele estava certo. E deixou claro que a responsabilidade por manter esse padrão era minha.

Depois da saída do David Silva, no início da temporada, eu fui eleito o capitão. É uma honra gigante. Todos os jogadores e o staff votam. Não é decisão só do Guardiola.

O papel de capitão na Inglaterra é bem diferente do que acontece em outros países, como no Brasil. Tenho ainda mais responsabilidades atualmente. Muitos detalhes relacionados à programação e disciplina, por exemplo. Você não tem ideia! Sou o responsável pelas multas dentro do elenco, como quando alguém usa o celular na fisioterapia. Agora preciso ficar muito atento aos e-mails, cara!

Mas é uma tarefa bacana e uma satisfação fazê-la em um clube como o City, onde o padrão é bem alto e todo mundo leva a sério.

Após aquele treino, voltei pra casa para comemorar a virada do ano, mas eu não conseguia tirar a conversa com o Guardiola da cabeça, sabe?

Até na hora de assistir à queima de fogos ao lado da família eu estava pensando no meu compromisso como capitão do Manchester City. 

Na manhã seguinte, às 7h do dia 1º de janeiro de 2021, eu mandei uma mensagem para o nosso Gerente de Futebol. "Prepare uma reunião com os jogadores. Precisamos conversar".

Cheguei ao CT e falei pra ele. "Avise o Pep que o treino começará um pouco mais tarde hoje". 

Era uma emergência.

Nesse time, ou você dá 100% ou fica no vestiário.

Fernandinho

Com todo mundo reunido, eu falei com o coração para eles. Falei como capitão, né?

Disse a eles o que o Pep tinha me dito, que algumas coisas são inaceitáveis. Disse que o que você faz no treino tem reflexo direto no que você vai fazer no jogo.

Fui muito honesto. Todo mundo sabia o que eu estava falando, mas precisávamos ouvir outra vez. Precisávamos de um chacoalhão. E foi importante acontecer naquele dia. Embora eu tenha puxado a conversa, todos os outros jogadores também falaram. E concordamos que era preciso algo mais.

Ainda tínhamos tempo de mudar o rumo da nossa campanha. Ou poderíamos apenas assistir passivamente ao título ir para outro time.

Nosso próximo jogo era contra o Chelsea, fora de casa, e eles estavam voando. Antes da partida, pensei comigo mesmo. "Se esses caras não correrem, estou lascado!". Eu poderia perder toda a moral com o grupo.

Mas, claro, vencemos. E jogando bem. Fomos para o intervalo com 3 a 0. Corremos até demais!

Desde então, graças a Deus, estamos em uma fase maravilhosa, quebrando recordes.

Voltamos ao meio do furacão.



O City elevou o sarrafo da minha mentalidade vencedora, mas eu já tinha isso comigo antes de me mudar para a Inglaterra.

Nunca fui aquele jogador de técnica refinada, mas jamais fugi da batalha. Meus companheiros, técnicos e torcedores sabem que podem contar comigo. Sempre darei o meu sangue. Sempre.

Eu já era assim desde a minha primeira transferência para a Europa, há tanto tempo.

Quando eu recebi a proposta do Shakhtar Donetsk para sair do Brasil eu tinha apenas 20 anos. Na época eu não sabia nada sobre futebol europeu. Imagine sobre a Ucrânia...

Eu não saberia te dizer qual era a moeda do país. Também não fazia ideia onde o país ficava no mapa. Para mim, a Europa era apenas esse lugar imenso, distante e com vários países diferentes.

Eu vivia boa fase no Athletico Paranaense, mas ainda era um garoto de Londrina com quase nenhuma experiência de vida.

Deixa eu contar um episódio. Uma vez fomos disputar um jogo da Copa Libertadores na Colômbia, e o clube nos pagou diária de US$ 30. Dólares americanos! Isso foi um acontecimento.

Meu amigo Alan Bahia e eu estávamos tão empolgados que decidimos escrever os nossos nomes na cama do hotel com as notas. Nunca tínhamos visto tanto dinheiro! Claro, para ele foi bem mais fácil por ter um nome curto, "Alan". No meu caso, eu tive de completar com notas de reais haha!

Quando chegou a proposta do Shakhtar, encarei como uma grande oportunidade para eu me provar como jogador profissional. E claro que também teve o lado financeiro. O Athletico usou o dinheiro da minha venda para reformar o centro de treinamento. E para mim tinha chegado a hora de eu poder escrever todos os nomes da minha família na cama!

Fernandinho | Manchester City F.C. | The Players’ Tribune
Alexander Khudoteply/EuroFootball/Getty Images

Ao final do meu primeiro mês na Ucrânia, eu ainda não tinha aberto uma conta no banco, e o clube pagava o bicho dos jogos em dinheiro vivo. Era uma pilha enorme de dinheiro. Para um moleque que pensava que US$ 30 era muita grana, aquilo era uma loucura. 

Eu ainda estava me hospedando em um hotel e não sabia o que fazer com aquilo. Eu mostrei para a minha esposa, aí ela enrolou uma toalha em volta e escondeu dentro da panela de pressão! Ela falou "Aqui ninguém vai achar, porque os ucranianos nem sabem o que é uma panela de pressão!" Haha!

Com os meus primeiros salários e luvas, comprei um apartamento para a minha mãe em Curitiba.

Em comparação aos meus companheiros, dá pra dizer que eu era um pouco mais cuidadoso com o dinheiro.

Isso à parte, passei oito anos maravilhosos na Ucrânia.

Lá eu abri a minha mente para uma nova cultura e um outro estilo de vida. Demorou, mas aprendi a falar russo. Ainda tenho contato com vários amigos. E o mais importante de tudo, o meu filho nasceu na Ucrânia, então uma parte de mim sempre será ucraniana.

Acredite quando eu disser que tenho um carinho especial pelo país e pelo povo ucraniano… mas cara… tenho que falar um negócio, lá é muito frio!

Na região onde cresci no Brasil, mesmo nos meses mais frios, raramente faz menos de 15ºC. Imagine o susto que eu levei no meu primeiro inverno em Donetsk. Eu nunca tinha visto neve antes!

Vou sempre lembrar do mês de janeiro quando voltamos da folga do Natal. Foi um dos mais gelados de toda Europa.

Estou falando de -26ºC, -27ºC. De verdade.

Tudo o que dava pra fazer era correr até o carro, dirigir para o centro de treinamento, treinar, voltar ao carro e ir pra casa. Era impossível passear em qualquer lugar!

Por mais difícil que fosse, você acaba se acostumando. Era um novo desafio e eu estava gostando.

O mesmo vale para o futebol. Era mais rápido, mais dinâmico, precisava correr mais do que eu corria no Brasil. Tive de me adaptar a isso também. Mas eu consegui, com a ajuda dos meus companheiros e treinadores.

Tanto como jogador quanto no âmbito pessoal, aprecio as dificuldades em busca da recompensa. Gostei de mudar os meus hábitos antigos e mergulhar em algo totalmente novo. Para realmente aprender e aproveitar, você precisa sofrer um pouco. Você acaba evoluindo, não só como profissional, mas como pessoa também.

Quando alcanço o sucesso, nos momentos em que levanto troféus, aquelas fases difíceis dão um sabor especial – o processo de adaptação, as lesões e até os treinamentos com a neve caindo no meu rosto.

Posso dizer que eu faria tudo de novo.

O meu filho nasceu na Ucrânia, então uma parte de mim sempre será ucraniana.

Fernandinho

Nesses oito anos, conquistamos muitos títulos na Ucrânia, mas a minha lembrança favorita, sem dúvida alguma, é o título da Copa da UEFA de 2009.

O clube, e o presidente em particular, haviam feito um alto investimento em jogadores brasileiros ao longo dos anos e tinham planos ambiciosos para tornar o Shakhtar um dos grandes nomes da Europa. Para alcançar isso, você precisa de títulos europeus.

Nos quatro anos antes de finalmente ser campeão da Copa da UEFA, nós sofremos bastante no cenário internacional. Tivemos diversas eliminações dolorosas. Em 2007, fomos eliminados pelo Sevilla com gol de goleiro… no último minuto. Sério, cara?

Esse tipo de derrota te faz pensar em desistir, mas nós seguimos na luta. Sabíamos que tínhamos qualidade e ambição, e no dia 20 de maio de 2009, contra o Werder Bremen, em Istambul, finalmente conseguimos.

Aquele troféu foi um grande feito para o clube. Foi a realização de um sonho coletivo.

Para nós, brasileiros – cinco foram titulares na final –, foi a confirmação do projeto do clube e da aposta que fizeram em nós.

Hoje, quando você fala sobre o Shakhtar no Brasil, as pessoas sabem o que você está dizendo. Ajudamos a colocar o clube no mapa, e isso é muito especial.

Essa mentalidade de nunca desistir e jamais permitir que o padrão caia, esses fatores me trouxeram ao City e ao patamar onde estou hoje.



Por mais que a Premier League seja uma das ligas mais televisionadas ao redor do mundo, tenho de admitir que eu não acompanhava muito antes de jogar pelo City.

Eu era viciado na Champions League, mas não tinha tempo de acompanhar outras ligas nacionais.

Apesar disso, eu aceitei a proposta porque era outro novo desafio, um projeto muito animador, e eu queria dar aquele passo na minha carreira.

Na Ucrânia, tínhamos um time muito bom, que dominava os torneios locais. Por isso, não tinha muita pressão da torcida nem da imprensa. Nosso nível estava acima do padrão da liga.

Basicamente, eu estava navegando em águas tranquilas, enquanto na Premier League é sempre uma tempestade.

Todos os times têm poder financeiro e a liga em si é muito frenética. Você pode jogar três jogos por semana, todos em uma intensidade absurda, e esperam que você entregue tudo em todas as partidas. E vença todas elas!

Um cara que teve enorme influência na minha carreira na Inglaterra, moldando a minha mentalidade, é o Pep.

Estamos trabalhando juntos há seis anos e aprendi muito nesse período. Claramente, ele é um dos melhores técnicos da história. Um revolucionário.

Fernandinho | Manchester City F.C. | The Players’ Tribune
Press Association via AP Images

Ele é muito inteligente e detalhista, mas, mais do que isso, é um professor brilhante. Às vezes, você tem professores com muito conhecimento, só que não conseguem transmitir a informação. Bom, o Pep tem a capacidade de passar a mensagem que ele quiser, seja técnica, tática ou qualquer outra coisa. Todo mundo simplesmente o entende – o que não é nada fácil em outro idioma, é bom deixar isso bem claro.

A porta da sala dele está sempre aberta, e você tem a liberdade de conversar abertamente com ele sobre quase tudo.

Para mim, porém, ele é genial porque exige 100% em todos os momentos. No campo, nas reuniões, em tudo.

Ele me avisou que o padrão não estava muito bom naquela noite de dezembro, e disse que dependia de mim, como capitão, ajustar da maneira que fosse ideal para a equipe.

Alcançamos feitos incríveis nesse clube nos últimos anos. Conquistas históricas.

Quebramos recordes.

Fizemos 198 pontos em duas temporadas.

Passaram a nos chamar de "Centurions", né?

Nem mesmo o Liverpool fez isso no ano passado!

Somos o resultado de tudo o que colocamos em prática nos últimos anos, dentro e fora de campo.

Muitas pessoas me perguntam como foram aqueles anos sensacionais de 2017/18 e 2018/19 no Manchester City. Se realmente entendíamos o que estávamos conquistando.

Honestamente, acredito que ainda vai demorar um pouco para perceber, de fato, o que aconteceu. Talvez aconteça só quando eu me aposentar e olhar para trás. Talvez demore mais 15 anos!

Um dia, porém, sentarei com os meus filhos – ou netos – e passarei a limpo tudo o que conquistei nesse continente.

Nesse dia, vou servir camarão, água de côco gelada, sentar na minha cadeira favorita e contar tudo a eles.

Os invernos na Ucrânia.

A panela de pressão.

Aquele treinamento.

Os títulos.

Cara, vai ser um momento sensacional.

Mas não vou fazê-lo agora. Pelo menos por enquanto.

Ainda há muito a conquistar.

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